Capítulo III - Deus e o Universo

20. Para Leão Hebreu a existência de Deus é um postulado imediato, uma intuição, que a fé garante e o mundo na sua origem e finalidade revela; e o seu conceito tão elevado, em relação à pequenez do espírito humano, que este mal podia antevê-lo se não fosse iluminado pela própria sabedoria divina. Vãs todas as tentativas de demonstração, não curou igualmente o nosso filósofo de ordenar um sistema de determinações positivas dos atributos divinos; todavia, esparsas, aqui e além, o leitor depara com uma ou outra atribuição, onde se fundem, em regra, a dogmática do judaísmo com conceções platónicas. O que palpita nos Diálogos é um místico amor divino, e sobretudo, a íntima necessidade de unir Deus ao mundo, substituindo palidamente, receosamente, o Deus transcendente da tradição por um Deus em certo modo imanente. Assim é que Deus é o primeiro ser, de cuja «participação» todas as coisas existem, o ato puro e o supremo entendimento, do qual dependem o entendimento, ato, forma e perfeição, e o fim para que tudo tende.

É o verdadeiro bem-aventurado, que de nada carece, e agindo, procede sempre por livre omnipotência, nunca por necessidade. É a fonte donde todo o ser deriva: as coisas, o universo, não podem existir nem conceber-se sem Deus. A razão e palavra humanas não conseguem representar-se «a pureza intelectual das coisas divinas»; mas, apesar desta radical incapacidade, a razão surpreende claramente que no intelecto divino «estão todas as coisas essencialmente, não só em razão do intelecto, mas ainda causalmente, como em primeira e absoluta causa de todas as coisas que existem; de modo que é a causa que as produz, a mente que as governa, a forma que as informa, e para o fim que as dirige são feitas: dele vêm e para ele finalmente volvem como último e verdadeiro fim e comum felicidade». Essência primeira tudo depende dele, e nele se contêm espiritualmente, sem divisão nem multiplicação, antes em simplicíssima unidade.

21. Deus é, pois, o princípio de todas as coisas: sê-lo-á também do seu entendimento, isto é, assim como o sábio precede a sabedoria, Deus precede o seu entendimento? Para Aristóteles o entendimento primeiro é uno com Deus, e só a palavra «e maneiras de filosofar de nós outros acerca da sua simplicíssima unidade» os fazem ser diferentes. A essência divino identifica-se com a suma sabedoria e entendimento e «sendo puríssima e simplicíssima unidade produz o único universo com todas as suas partes ordenadas à união do todo, e assim como o produz o conhece todo, as suas partes e partes destas num simplicíssimo conhecimento, isto é, conhecendo-se a si mesmo, que é suma sabedoria». O conhecimento divino abrange assim numa simples mirada o universo, no seu conjunto e detalhe, e duma forma mais perfeita e completa que o conhecimento-síntese. Este «é causado pelas coisas conhecidas e em conformidade com elas diviso, multiplicado e imperfeito, enquanto que aquele conhecimento é causa primeira de todas as coisas e de cada uma delas de per si e portanto livre; e não tendo necessidade dos efeitos para o conhecimento, pode pela unidade e simplicidade do entendimento ter um conhecimento infinito e perfeitíssimo, assim de todo o universo como de cada uma das coisas produzidas, até à sua última parte».

«Filosofando por esta via peripatética da essência divina», é óbvio que Deus é a sua própria sabedoria, primeiro entendimento, ideia do universo e formosura.

Nem todos os filósofos, porém, assim pensam, não faltando quem afirme que «a sabedoria, entendimento divino, ideia do universo é de alguma maneira distinta e outra que o Sumo Deus». Esta opinião «parece» ser de Platão, porque para ele «entendimento e sabedoria divina (que é o verbo ideal) não é propriamente o Sumo Deus,... mas uma coisa sua dependente e imanente, como a luz do sol, não apartada nem dele distinta realmente. A este seu entendimento ou sabedoria chama opífica do mundo,... em cuja simplicidade e unidade se contêm todas as essências e formas do universo, às quais chama ideias... O Sumo Deus (a quem algumas vezes chama sumo bem) diz ser sobre o primeiro entendimento, isto é, a origem donde o primeiro entendimento emana, não ente, mas super-ente, porque a essência primeira é o primeiro ente e o primeiro entendimento, a primeira ideia; e acha-o tão oculto à pura e abstrata mente humana, que mal encontra nome que lhe dê. Por isto, a mais das vezes, lhe chama Ipse, sem outra propriedade de nome, temendo que algum outro que a mente humana possa produzir e a língua material pronunciar seja capaz de alguma propriedade do sumo Deus».

Por fim, além destas soluções extremes, Leão Hebreu, apresenta ainda a de alguns «peripatéticos», como Avicena, Algazel, Maimónides, ecleticamente composta «das duas vias teologais de Aristóteles e Platão». Veremos mais tarde as suas opiniões; por agora notaremos apenas, resumidamente como o nosso filósofo, que para eles «o motor do primeiro céu (corpo que contém todo o universo) não é a primeira causa, mas o primeiro entendimento ou inteligente primeiro, imediatamente produzido pela primeira causa, a qual é sobre todo o entendimento e motores dos corpos celestiais».

Apreciar o valor exegético destas interpretações levar-nos-ia muito longe. Basta fixar que se acentuou em Platão e Aristóteles uma diferença que uma melhor análise dos textos não consente, pois as suas doutrinas de certo modo se completam, exprimiu, pelo contrário, o verdadeiro sentido do pensamento de Maimónides e dos filósofos árabes. Dos fundamentos intrínsecos destas opiniões não curou Leão Hebreu; e de crítica limita-se superficialmente a afirmar que a última opinião apresentada «é mais baixa, diminuta e menos abstrata» que qualquer das duas vias com que se formou e a censurar Aristóteles pela ignorância da «sabedoria» hebraica. Para a doutrina platónica vai a sua adesão, não pelo valor intrínseco, mas porque traduz a sua crença e patenteia a antiga sabedoria, que o Estagirita desconheceu. «Sabida coisa é que sou mosaico, na sabedoria teologal me abraço com esta segunda via, porque é verdadeiramente Teologia Mosaica, e Platão, que teve maior notícia desta antiga sabedoria que Aristóteles, seguiu-a. Aristóteles, cuja vista nas coisas abstratas foi algum tanto mais curta, não tendo o ensino dos nossos teólogos antigos, como Platão, negou àquela o culto que ele não pôde ver e juntou à suma sabedoria a primeira formosura, da qual, saciado o seu entendimento, sem ver mais adiante, afirmou que era o primeiro princípio incorpóreo de todas as coisas. Mas Platão, tendo aprendido com os velhos do Egipto, pôde avançar mais; mas não alcançando ver o oculto princípio da suma sabedoria ou primeira formosura, fê-la o segundo princípio do universo, dependente do sumo Deus, princípio de todas as coisas. E embora Platão fosse mestre de Aristóteles tantos anos, afinal, nas coisas divinas, tendo sido Platão discípulo dos nossos velhos, aprendeu de melhores mestres e mais que Aristóteles dele, porque o discípulo do discípulo não pode alcançar o discípulo do mestre. Aristóteles foi subtilíssimo, mas eu creio que na abstração o seu engenho não podia subir tanto como o de Platão, e não quis, como outros, crer no mestre naquilo que as próprias forças do engenho não lhe descobriam».

Mais interessante ainda é a prova que «Moisés e os outros santos Profetas» significaram esta verdade platónica. Transcrevê-la-emos pela forma como ilustra o sincretismo de Leão Hebreu e documenta a sua conceção do platonismo.

«As primeiras palavras que Moisés escreveu, foram: No princípio criou Deus o céu e a terra. A antiga interpretação caldeia, onde nós outros dizemos — no princípio — diz: com sabedoria criou Deus o céu e a terra —, porque a sabedoria se diz em hebreu princípio, como disse Salomão — princípio é a sabedoria — e a dicção in, pode significar cum. Vê como a primeira coisa que nos mostra é que o Mundo foi criado por sabedoria e que a sabedoria foi o primeiro princípio criante, para nos declarar que o sumo Deus criador, mediante a sua suma sabedoria, formosura primeira, criou e fez formoso todo o universo criado. Assim as duas primeiras palavras do sábio Moisés exprimiram os três graus do formoso — Deus, Sabedoria e Mundo — e o sapientíssimo rei Salomão, como sequaz e discípulo do divino Moisés, declara esta suprema sentença nos Provérbios, dizendo: O Senhor com sabedoria fundou a terra, compôs os céus com suma ciência; por seu entendimento foram rotos os abismos, e os céus distilam rócio…

Os nossos primeiros... não disseram, criou Deus sábio ou sabiamente, mas sim criou Deus com sabedoria, para mostrar que Deus é o sumo criador, e a sabedoria meio e instrumento da criação. E isto verás mais claro no dito do devoto rei David: com a palavra do Senhor foram feitos os céus e com o espírito da sua boca todo o seu exército. O verbo é a sabedoria, semelhante ao espírito que sai da boca, que assim emana do primeiro sábio a sabedoria, não sendo a mesma coisa, como diz Aristóteles. E para maior evidência, considera como claramente o apresenta o rei Salomão, nos Provérbios, quando principia dizendo: Eu sou a sabedoria; e declara como ela contém todas as virtudes e formosuras do universo, ciências, prudências, artes e virtudes abstinentes.

Repara, ó Sofia, com quanta clareza nos mostrou este sapientíssimo rei, que aquela suma sabedoria emana e é produzida do sumo Deus, (não sendo a mesma coisa, como quer Aristóteles) e à qual chama «princípio do seu caminho», porque o caminho de Deus é a criação do Mundo e a suma sabedoria o princípio pelo qual foi o mundo criado...».

Leão Hebreu expõe esta identificação com um desenvolvimento raro, senão único, na história da filosofia, e por uma forma onde mal se distingue se hebraizou Platão ou platonizou a Bíblia — embora, em consequência, uma e outra atitude se fundissem no mesmo resultado. Apoiado na ideia duma degradação da antiga sabedoria, dos hebreus a Platão, de Platão a Aristóteles, esta harmonização é um dos últimos ecos da velha doutrina, cara aos judeus helenistas, da inspiração mosaica de toda a filosofia grega; mas apesar de não ser original, tem contudo o mérito de chamar a atenção para este aspeto do platonismo, ignorado ou esquecido na sua época, e de o defender com tanto vigor que Tulha d'Aragona, no Dialogo della infinitá di amore, julgando superiores os Diálogos a toda a literatura amorosa, elogia-o «massimamente quando entra nelle cose della fede giudaica».          

22. O entendimento divino, posterior a Deus, como acabamos de ver, é a própria sabedoria, verbo e mente de Deus, porque se em todo o entendimento atual produzido, sabedoria, coisa entendida e entendimento, constituem uma única coisa em si, embora nós outros representemos esta pura unidade sob três modos diversos, muito mais o deve ser «no sumo e puríssimo entendimento divino, que é em todos os modos uno com a sabedoria Ideal». Espelha-se este entendimento na perfeição do mundo, mas não se identifica com ele, embora o sustente perenemente e nele se distribua «em unidade multifária... em tão grande distância da sua perfeição, quanto é a do efeito à eminente causa».               

23. O Mundo é assim uma obra divina; mas se «a vida de Deus é a criação do mundo» porque não será este eterno, se aquele o é? A diferença seria ainda grande, porque «ab eterno Deus teria sido produtor e o mundo ab eterno produzido. Só ele é gerador, não gerado; só ele é o verdadeiro eterno, pois é, foi e será sempre princípio e causa de todas as coisas, sem que nele se dê alguma sucessão temporal: tudo o mais é eterno por participação».           

Leão Hebreu, porém, não aceitou a conclusão que o problema, esclarecido com a restrição final, impunha. Crente, como podia repudiar o relato bíblico da criação, aceite por todas as escolas hebraicas e defendido veementemente por seu pai, no já citado Miphelaloth Elohim (As Obras de Deus)? Por isso, como filósofo que pretendia ser, justificou-o racionalmente, ou melhor, repetiu e sintetizou a brilhante argumentação de Maimónides, de tão grande influência na escolástica cristã.               

Para a compreensão das páginas que seguem a origem histórica do problema, basta notar que se o homem procurou sempre abranger numa intuição ou visão geral a totalidade de problemas que a contemplação do universo lhe desperta, se de Tales a Plotino, a despeito da crítica de Sócrates, as soluções se sucedem, nenhuma, porém, teve mais rica fortuna histórica que a de Aristóteles. Nesta conceção, simultaneamente ampla e detalhada, Deus era a inteligência eternamente imóvel, o simples motor duma matéria primeira eterna como ele, causa primeira e final dos movimentos celestes, circulares, perpétuos e necessários, — movimentos que na sua incessante periodicidade determinavam todos os movimentos do mundo sublunar. Em face desta síntese, erguiam-se as teologias judaica, cristã e árabe, uniformemente afirmando a livre criação do mundo por Deus, que dirige a sua obra com omnipotente providência. O desacordo, a oposição era flagrante; tão flagrante, que o crente a quem as luzes e uma certa cultura rasgassem o espírito não poderia aceitar que a verdade tivesse sido revelada na Bíblia ou no Alcorão e demonstrada nas obras do Estagirita. Partindo de origens diversas, os ataques destas teologias convergiam quase todos para o mesmo ponto: a noção de matéria, especialmente de matéria primeira, eterna, sem começo no tempo, porque dela derivava a eternidade do Mundo e consequentemente a impossibilidade da criação.

Leão Hebreu, seguindo Maimónides, classificou as conceções cosmogónicas que admitiam a existência de Deus e sua eficiência no Mundo — as únicas a que atendeu — em três grupos:

a) Opinião de Aristóteles e dos peripatéticos.

O mundo é, como Deus, eterno. Todavia há uma diferença profunda: Deus é «produtor ab eterno, e o mundo produzido ab eterno», aquele, causa eterna, este efeito eterno.

b) Opinião dos fiéis (todos os que «creem a sagrada lei mosaica»).

O Mundo não foi produzido ab eterno, mas criado do nada em princípio temporal.

c) Opinião de Platão e de «vários filósofos».

No Timeu afirma a criação do mundo por Deus, produzindo-o do caos, matéria confusa donde todas as coisas foram geradas. Só a matéria primeira ou caos é eterna; o Mundo teve princípio temporal.

a) Opinião de Aristóteles

Leão Hebreu expõe laconicamente os fundamentos da opinião atribuída ao Estagirita, porque «a suficiência» levá-lo-ia muito longe; contudo apresenta ainda sete argumentos, assimilados em Maimónides, que não cita.

I) ARGUMENTOS NATURAIS

1) Eternidade da matéria primeira.

A matéria primeira não poderia ter tido princípio, porque nihil ex nihilo oritur. Se tivesse sido criada, duma outra teria a sua origem, e assim sucessivamente; mas como a série de causas não é infinita, é necessário admitir uma matéria «verdadeiramente» primeira, sem começo temporal.

2) Eternidade da geração e corrupção.

A geração e corrupção que desta matéria derivam são eternas, porque sendo a matéria primeira de ser imperfeito é necessário que seja sempre informada «por alguma forma substancial», pois toda a geração é precedida pela corrupção e vice-versa.

3) Eternidade do céu.

Se o céu não fosse eterno seria corruptível; mas o céu não tem contrários, como se prova pela sua imutabilidade em substância, qualidade e forma esférica — a única que carece de contrariedade; portanto é eterno, pois a corrupção e geração resultam de «superação» dos contrários, como se verifica nos elementos e seus compostos.

4) Eternidade do movimento.

O movimento é eterno, porque se o não fosse teria princípio. Mas a sua geração, que é movimento, seria anterior ao pretendido movimento primeiro, o que é contraditório. Não podendo dar-se um processus in infinitum nos movimentos gerados é necessário admitir o movimento eterno. No movimento circular acresce que qualquer ponto pode indiferentemente considerar-se como princípio ou fim.

5) Eternidade do tempo.

O tempo sendo a medida do movimento deve ser como ele eterno. Demais, não pode marcar-se um instante como princípio primeiro, porque seria simultaneamente fim do passado e começo do futuro.

II) ARGUMENTOS TEOLÓGICOS

6) Natureza de Deus.

O conceito de Deus, cuja natureza é eterna e imutável, exige que a sua obra, o universo, seja eterna, pois o efeito deve corresponder à causa.

7) Fim da obra divina.

Deus criando o mundo quis realizar o bem; ora este bem deve ser eterno, porque nada obsta à omnipotência de Deus, que é o sumo criador.

b) Crítica destes argumentos pelos fiéis. (Judeus)

No campo atual da nossa experiência, naturalmente, estes argumentos aristotélicos impõem-se, pois do nada, nada se pode fazer; mas miraculosamente, pela omnipotência divina, todas as coisas podem derivar do nada, não positivamente, isto é, o nada constituindo a matéria das coisas, mas no sentido de que Deus pode fazer as coisas sem precedência de qualquer matéria. Criar do nada significa, pois, uma passagem do não-ser ao ser. Se este é o modo de produção expresso no conceito de criação, é evidente que Deus pode criar a matéria primeira e consequentemente dar começo ao tempo e aos processus que da matéria primeira resultam.

Leão Hebreu não resolveu, como Maimónides, separadamente os argumentos de Aristóteles, nem procurou demonstrar a possibilidade da criação. Afirmou-a apenas, limitando-se a contestar, pela liberdade divina, a necessidade do mundo (6.° argumento) e a negar a possibilidade do conhecimento que o 7.° argumento pressupõe Limitada como é, não pode a razão desvendar a sabedoria divina nem alcançar o «próprio fim» que ela manifesta nas suas obras; e conquanto o bem eterno seja para nós mais digno que o transitório, quiçá a omnipotência e liberdade criadora de Deus se revela mais claramente na criação ex nihilo que ab eterno, pois esta pareceria «uma dependência necessária» e não patentearia que o Mundo foi feito por livre graça e esplêndido benefício de Deus, como diz David.

Finalmente, como razão «universal» contra toda a argumentação peripatética e explicação da sua deficiência, aduz Leão Hebreu o insignificante conhecimento que Aristóteles alcançou «da suma sabedoria de Deus», não conseguindo surpreender-lhe a intenção nem a finalidade.

Conhecendo, como conhecia, o Guia de Maimónides, surpreende à primeira vista a superficialidade desta crítica — tão superficial que Sofia, a sua interlocutora, comentando-a, lhe diz: «Bastam-me as tuas razões para me defender do Peripatético, que não para o ofender». Mas formulado o problema no restrito campo da fé, exigiria porventura uma maior justificação racional? Ele próprio declara que a fé, desde que «não seja ofendida pela razão» não necessita de prova, «porque então seria ciência e não fé».

c) Opinião de Platão

Ao espírito crédulo e platonizante de Leão Hebreu não acudiram as dúvidas que hoje dividem, e por certo dividirão sempre, os intérpretes do platonismo e em especial do mítico Timeu. Herdando esta interpretação de Maimónides, numa tão grande boa-fé que nem procura comprovar a sua veracidade, analisou-a como se fosse a expressão exata do pensamento de Platão. Eclética na forma e no fundo, o que a aproxima da solução fideísta, afasta-a da aristotélica e vice-versa: com aquela tem de comum a criação temporal do mundo, com esta, a eternidade do caos (matéria primeira). Não se pense, porém, que este ecletismo platónico esteja a igual distância daquelas soluções. Não. Entre Platão e Aristóteles a diferença é profunda; mas entre Platão e a Bíblia é só exterior, porque se afirmou a eternidade do caos, à primeira vista contrária ao relato bíblico, «foi para pôr a criação mosaica não despida de razão filosófica, porque ele quis ser e parecer ainda mais filósofo, que crédulo da lei». Num sincretismo assim entendido não havia contraditórios que não encontrassem a sua harmonia numa síntese! Não se apoiou, como já dissemos, no texto do Timeu, contudo conhece-o; todavia esta interpretação era-lhe tão cara, que empregou o melhor da sua dialética em explicar porque Platão postula a eternidade do caos, afirmando depois que «o mundo foi feito de novo». Em primeiro lugar não contradisse «aquele dito dos antigos tão largamente afirmado» que de nada nada se pode fazer, e respeitou o velho princípio, expresso já pelos «primeiros que fabulosamente teologizaram dos Deuses» da anterioridade do «grande Deus Demogorgon», da eternidade e do caos, à criação do Mundo. Mas a verdadeira razão, aquela pela qual «tantos excelentes antigos» aderiram ao fundador da Academia, baseia-se em que o Mundo, no conjunto como em cada uma das suas partes, é composto duma substância comum informe e de uma forma.

É da participação destes dois elementos que resultam as coisas; e se o informe preexiste à formação do mundo, «segue-se e é necessário conceder que assim como o mundo formado foi feito de novo, o caos informe não o foi jamais, antes haja tido ser ab eterno. Agora poderás entender a razão de aquele dito dos antigos, que de nada nada se faz, pois o fazer exprime formação nova, e a forma é relativa ao informe de que se faz, pois sem informe nada se pode fazer. É pois necessário que assim como o mundo formado foi feito de novo, assim o informe caos tenha sido ab eterno produzido por Deus». É produzido por Deus — conclusão que não estava nas premissas —, porque não pode conceber-se sem «causa produtiva» que seja ao mesmo tempo a forma mais universal. Precisando a opinião atribuída a Platão, no fundo, de Leão Hebreu, poderemos agora dizer que Deus produziu ex se e ab eterno a matéria primeira ou caos, formando mais tarde com ela o mundo. Mas um novo problema surge: o das relações entre a forma e a matéria.

Serão simultâneas, ou a matéria será primeira «em origem natural» e «antecipação temporal»?

Não existindo informe puro, isto é, matéria sem forma, as soluções que à primeira vista se apercebem são as de Aristóteles (eternidade da forma e matéria) e dos fiéis; mas numa como noutra a matéria é primeira naturalmente e não em antecipação temporal. Leão Hebreu, porém, admite a prioridade absoluta da matéria em relação à forma, porque se essencialmente aquela é anterior a esta, como o sujeito ao atributo, também o é cronologicamente, porque, como provou Aristóteles, a matéria contém sempre em potência qualquer forma. É certo que o Estagirita restringia a matéria sucessivamente informada ao mundo inferior da geração e corrupção, negando-a ao mundo celestial, onde subsistia eternamente informada; mas esta dualidade é inconcebível, porque, como provou Platão, um corpo não pode formar-se sem a pré-existência duma matéria informe. Consequentemente, é a mesma matéria que povoa o mundo celestial e constitui os corpos inferiores  e assim como o universo tem um pai comum a todas as suas partes, que é Deus, tem uma mão comum, que é o caos ou matéria primeira.

d) Opinião de Leão Hebreu

Não se pronuncia abertamente Leão Hebreu por nenhuma destas opiniões; mas pela forma como expõe e comenta Platão, parece não violentar-se o seu pensamento convertendo-o num discípulo da Academia. A opinião de Aristóteles, como provara Maimónides, minava os fundamentos da religião; mas a de Platão? Não podia porventura o crente aceitá-la sem renunciar à mínima consequência do dogma? Maimónides afirmara-o, e em todo o longo decurso da especulação judaica a diversidade de opiniões sobre a existência e conceito da matéria primeira provava-o. Se, portanto, a doutrina do Timeu concordasse com o relato bíblico, que obstaria a que o crente a aceitasse como expressão do pensamento divino?

Ora Leão Hebreu compraz-se, neste ponto também, em converter Platão num discípulo de Moisés. «Este vocábulo — In principio, pode significar em hebraico, antes; dir-se-á, pois, — antes que Deus criasse e apartasse do caos o céu e a terra —, isto é, o mundo terrestre e celeste, a terra, que é o caos, estava sem fruto e vazia; e mais propriamente, confusa e descomposta, isto é, oculta, e era como um abismo tenebroso de muitas águas, sobre o qual soprava o Espírito divino, como um grande vento sobre um pélago, que aclara as tenebrosas, íntimas e ocultas águas, tirando-as fora com sucessiva inundação. Assim fez o Espírito divino, que é o sumo entendimento cheio de ideias, o qual comunicado ao tenebroso caos criou nele a luz por extração das substâncias ocultas iluminadas de formalidade Ideal. No segundo dia pôs o firmamento, que é o céu, entre as águas superiores, que são as essências intelectuais, as quais são as supremas águas do profundíssimo caos, e entre as inferiores, que são as essências do mundo inferior gerável e corruptível. E assim dividiu o caos em três mundos: intelectual, celeste e corruptível. Depois dividiu o inferior dos elementos, a água da terra, e descoberta a terra fez brotar as ervas, árvores e animais terrestres, voláteis' e aquáticos. E depois no sexto dia, alfim de tudo, criou o homem. E desta maneira, sumariamente dita, entendem estes [cabalistas] o texto da criação mosaica e creem denotar que o caos fosse antes da criação confuso e pela criação diviso em todo o universo.

É certo que, como lhe objeta Sofia, a sua interlocutora, nem «a razão absoluta», nem «determinada fé» impõem a sua aceitação; mas tudo, desde o desenvolvimento que lhe dá até à sua conceção do platonismo e tendências sincréticas do seu espírito, permite supor que aderia a esta opinião. Se por um lado ela concorda com a Bíblia, por outro facilmente se harmoniza com Aristóteles, porque, contendo alguns dos seus fundamentos, como os dois argumentos teológicos, não a atinge a argumentação peripatética, v.g., a impossibilidade da criação ex nihilo. É. na identidade da eternidade do caos de Platão com a matéria primeira de Aristóteles, da forma aristotélica com as ideias platónicas, da teoria da periodicidade do mundo do Estagirita com a afirmação platónica do perecimento de todas as organizações do mundo inferior, que Leão Hebreu encontra os elementos principais da harmonização destes dois filósofos, no problema que nos interessa; mas apesar disto algumas diferenças subsistem ainda, embora não essenciais.

Assim Platão concebendo o caos sem forma, afirmando a eternidade da geração sucessiva de vários mundos, a dissolução do céu por ser composto de matéria e forma, e a eternidade do tempo, não como resultante do movimento celeste, mas do «eterno movimento germinativo do caos», opunha-se a Aristóteles; mas contudo as diferenças não se lhe afiguravam essenciais. Não notaria Leão Hebreu que procedendo a crítica a Aristóteles ela procedia também contra a matéria primeira de Platão? O sincretismo obscurecia-lhe a visão destas contradições e, como Filo Hebreu (assim o designavam os nossos clássicos), a sua razão hesitava entre os dados da fé e a adesão a uma doutrina. Original só o foi na forma e desassombro com que conciliou o Timeu com o relato bíblico da criação; no resto exprimiu palidamente uma necessidade do seu tempo.

24. Considerado o universo no seu conjunto — e aqui platoniza Leão Hebreu —, oferece a imagem dum ser vivo, dum indivíduo; mas apesar da solidariedade e íntima conexão de todos os elementos, distingue-se a parte imaterial da corpórea, e nesta ainda duas regiões: a celeste e a terrestre.

Os elementos que entram na composição ou constituição do Mundo são quatro: terra, água, ar e fogo. A terra, o mais pesado e mais preguiçoso dos elementos, demanda o repouso, longe do céu, que está num contínuo movimento, e fugindo dele e do fogo, agrada-lhe a companhia da água e do ar, que a cercam.

A água, menos pesada e preguiçosa que a terra, também foge do céu, e o seu lugar é sobre a terra, mas debaixo do ar.

Ao ar, leve e subtil, agrada-lhe a proximidade do céu, mas como não é de substância tão pura como o fogo, ama a vizinhança da terra, água e fogo. São estes dois últimos elementos inimigos irreconciliáveis e por isso, como amigo de ambos, obstando a que se guerreiem numa luta contínua, se situa entre eles.

O fogo é o mais subtil e purificador de todos os elementos, e só ama o ar e o céu, não repousando nunca enquanto não atinge este último. A esta física, de evidente filiação platónica (Timeu) embora contenha numerosos conceitos aristotélicos, chama Leão Hebreu o amor social; e a sua explicação adequada encontra-a nas propriedades destes elementos.

É que o céu, pelo movimento contínuo, pelos raios do sol e dos outros planetas e estrelas fixas do oitavo céu, aquece o mundo sublunar diversamente, sendo do maior ou menor grau de vizinhança que com ele mantêm os elementos que resulta o amor e o ódio. Nesta hierarquia, a terra é o mais pesado, frio e seco dos elementos, o mais baixo e vil e o mais afastado «da fonte da vida, que é o céu»; mas como é que nela se geram tantas e tão diversas coisas, desde as pedras e metais até ao homem, de admirável perfeição, o que não se verifica nos outros elementos? Ocupando o centro, recebe todas as influências e raios das estrelas e planetas e atrai a virtude dos outros elementos, que nela encontram o teatro das suas ações. Nestes termos, a terra é com rigor «a mulher do corpo celeste, enquanto que os outros elementos são as suas concubinas» Evidentemente que nas coisas que se geram destes elementos, os próprios elementos são a matéria e fundamento; mas quando dum se gera outro, como do fogo a água, qual é a matéria fundamental?

Esta matéria, comum a todos os elementos, com a aptidão de devir um ou outro, não é mais que a matéria primeira dos filósofos e o caos dos antigos poetas, porque contêm potencialmente e em confusão todas as coisas, e causa a contínua geração das formas que lhe faltam e a corrupção das que possui. Por isso, alguns lhe chamaram «meretrix», porque não é constante; mas com «este adúltero amor se adorna o mundo inferior de tanta e tão admirável variedade de coisas formosamente criadas», produzindo os quatro elementos, de cujas combinações tudo resulta.

Apesar de contrários e divididos — o fogo e o ar são quentes e ligeiros, procurando o alto, a água e a terra são pesados, demandando o baixo —, pela «intercessão do benigno céu, mediante os seus movimentos e raios» podem conjugar-se amistosamente e por vezes atingir a perfeição dum corpo uniforme e de uniforme qualidade, tanto maior quanto mais intenso for o grau de combinação amistosa. O primeiro grau e mais ténue desta amizade produz as formas dos mistos não animados, como as pedras e metais, cuja variedade e perfeição resulta da maior e mais harmónica amizade dos elementos ao combinarem-se.

Num segundo grau, já mais intenso, geram-se as formas animadas, cuja manifestação mais simples é a alma vegetativa, e no terceiro, as formas da alma sensitiva, nos animais, com os sentidos, movimentos, fantasia e apetite. Finalmente, no quarto grau, além de todas estas formas, porque o superior contém sempre o inferior, essa combinação devém capaz da forma mais pura, alheia à vileza dos corpos corruptíveis, a alma intelectiva. São estes os graus típicos, fundamentais; mas além deles, há formas intermédias, variando com o maior ou menor grau de combinação. Esta amizade e conformidade dos elementos, a que alguns com os pitagóricos chamam música e harmonia, promovendo a concórdia entre os elementos, é a causa da geração de todas as coisas; assim como a inimizade, fonte da discórdia, é a causa da sua dissolução. Assim se justifica que Empédocles afirmasse que as causas da geração e corrupção das coisas inferiores fossem seis: os quatro elementos, a amizade e a inimizade.

No processus da geração no mundo inferior, se a terra é o corpo da matéria primeira, «recetáculo de todas as influências do seu elemento masculino, que é o céu», a água a humidade que a cria, o ar o espírito que a penetra, o fogo o calor natural que a vivifica, o céu desempenha também a sua parte. Em si incorruptível, segrega o sémen fecundante de tudo o que existe no mundo inferior, pelo contínuo movimento e pelos planetas, sendo assim o «perfeitíssimo marido da terra, que com todos os seus membros orgânicos e homogéneos (planetas) se move e esforça em pôr nela o seu sémen e gerar tão belas e diversas gerações».

25. Uma coisa, porém, escapa a este processus gerador: a luz, pois não sendo corpo, nem qualidade ou acidente corpóreo, é a sombra ou resplendor da claridade intelectual. Prova-o a Bíblia, porque, no Génesis, quando o «sábio profeta Moisés» refere que no princípio da criação tudo estava numa confusão tenebrosa e que o espírito divino aspirando as águas produziu a luz, significa que do resplandecente entendimento divino foi feita a luz no primeiro dia da criação e mais tarde, no quarto, aplicada ao sol, e por participação deste, às estrelas.

A luz solar é assim uma forma espiritual, dependente da luz intelectual e divina, e se luz existe nos corpos diáfanos do mundo inferior, simples «veículos da luz», é como ato separável, e não como qualidade.

A verdadeira luz é, pois, a luz intelectual, iluminando simultaneamente o mundo corpóreo e incorpóreo: neste, pela alma e «vista intelectual», naquele, comunicando-se ao sol, que «formalmente e atualmente» a irradia para o mundo corpóreo.

26. Pela sua dignidade e função, o céu é para o universo o que é a alma para o homem. Diferente do mundo terrestre entram na sua composição um elemento subtil e espiritual, o éter, parte principal, já pela imensidade, pois espraia-se por todos os orbes, já porque «segundo Plotino de mente de Platão» penetra todo o universo, e uma substância lúcida, capaz de receber e reter a luz existente no sol, nas estrelas e planetas.

Seres inteligentes, os astros são compostos de alma e corpo, e a sua vontade, sempre reta, não admite o pecado. Os orbes celestes que os «astrólogos» alcançaram conhecer são nove: os sete planetas e os dois orbes superiores, dos quais um, o oitavo, é o céu das estrelas fixas, e o outro, o diurno «que num dia e numa noite, isto é, em 24 horas, volteia todo o seu circuito e neste espaço de tempo volve consigo todos os corpos celestiais».

Aristóteles afirmara num passo célebre da Metafísica (XII, 8) que cada orbe tinha como motor uma substância imaterial; mas sobre a causa do movimento celeste os textos eram imprecisos, pois ora o atribuía ao próprio céu (De Caelo, II, 2), ora à natureza inerente aos orbes (De Ccelo, I, 2), ora a explicava pelo desejo que estes têm de se unir à inteligência suprema (Met., XII, 7). Que união ou fim- é este? Será um motor, ou será o próprio Deus? «A primeira academia dos árabes» — Alfarabi, Avicena e Algazel — e Maimónides, no Moreh, dizem que a cada orbe estão apropriadas duas inteligências: uma, movendo-o efetualmente, é a alma motora intelectual; outra, movendo-o finalmente, constitui o fim para que aquela alma motora move o seu orbe.

Mas Averroes, e os que depois dele comentaram este lugar de Aristóteles, restringiram o número das inteligências aos orbes, sustentando que o primeiro e único motor era Deus, e que o fim de cada orbe nele próprio estava imanente. Esta limitação, diziam, em nada desmerece o conceito de Deus, porque ele contém todo o universo, abraça e move todos os outros céus e por sua virtude agem todas as outras inteligências motoras.

Esta divergência é, em síntese, resultante duma conceção diferente da processão dos seres: como é que do ser uno, Deus, deriva o mundo múltiplo? Dominante o princípio no neoplatonismo árabe que do uno, só o uno pode derivar, era necessário descobrir o processo que permitisse deduzir o múltiplo do uno, dum modo mediato. Com este propósito, Avicena, Algazel e Maimónides, afirmavam que a causa primeira, Deus, produzira imediatamente, apenas, a primeira inteligência, motora do primeiro céu. Esta inteligência tinha duas contemplações: a da sua causa, por cuja eficiência e amor produz a segunda inteligência, e a da sua própria beleza, pela qual produz o primeiro orbe, composto dum corpo incorruptível circular e duma alma intelectiva, amante daquela inteligência, perpétuo motor deste orbe.

Esta segunda inteligência contempla a beleza divina não imediatamente, mas mediante a primeira, «como quem vê a luz do sol por um vidro cristalino», e como ela tem duas contemplações: a da sua causa, por virtude da qual produz a terceira inteligência e a da sua beleza, da qual se gera o terceiro orbe. Desta forma, explicam a origem das inteligências e orbes celestiais — ou sejam oito, como afirmavam os gregos, ou nove, como os árabes, ou dez, como os antigos hebreus e alguns modernos.

A inteligência motora da lua, a última das inteligências celestiais, produz o intelecto ativo — a inteligência do mundo inferior e informadora da matéria primeira. É deste intelecto que deriva o entendimento humano, o último dos entendimentos, primeiro em potência e mais tarde em ato, pelo íntimo desejo de se copular com o intelecto ativo e de gozar com deleite do supremo fim do universo criado.

«Desta forma, fazem os árabes uma linha circular do universo, cujo princípio é a divindade e dela derivando encadeadamente de um para outro chega até à matéria primeira, o mais distante dela; depois, ascendendo e afastando-se desta gradualmente termina naquele ponto que foi princípio, a suma sabedoria divina, pela copulação com o entendimento humano». Averroes, porém, mais ligado ao texto e ao espírito do Peripato, não via ilogismo em que da unidade e simplicidade divina dependessem imediatamente todas as essências do universo. Se estas estão unidas entre si como membros dum indivíduo, não pode porventura esta pluralidade depender da unidade divina em cuja mente existe todo o universo, como a forma dum objeto na mente do artífice? Por isso, concluía o comentador cordovês como verdadeiro pensamento de Aristóteles, «a divina formosura imprime-se imediatamente em todas as inteligências motoras do céu» e nos eternos do mundo inferior: matéria primeira, espécies e entendimento humano.

Imediata a ação divina, nem por isso é idêntica, pois Averroes concebe também o universo hierarquicamente. E assim é que «a divina formosura se imprime na primeira inteligência mais digna, espiritual e perfeitamente e com maior conformidade de semelhança que na segunda, e nesta mais que na terceira, e assim sucessivamente até ao entendimento humano, a última das inteligências. Nos corpos imprime-se dum modo mais baixo, porque ali é feita dimensível e divisível; contudo imprime-se no primeiro orbe mais perfeitamente que no segundo e assim sucessivamente até passar ao orbe da lua e vir à matéria primeira, na qual se imprimem também as ideias da formosura divina,... não com aquela claridade e resplendor, mas dum modo umbroso, isto é, em potência corpórea... E não há outra diferença nestas duas impressões senão que na matéria primeira são inferiores todas as ideias formais em potência corporalmente, por ser a mais infinita dos corpóreos, e no entendimento possível são impressas em potência não corpórea, mas espiritual, isto é, intelectual».

Leão Hebreu, não se pronuncia abertamente por nenhuma destas interpretações, embora pareça aderir à primeira, tanto mais que lhe aproveita a conceção circular do universo (38, e), afirmando, sem o provar, que no pensamento do Estagirita Deus é simultaneamente o primeiro motor e o fim a que tendem os motores dos outros orbes. Esta afirmação preludia já uma conceção imanente da Divindade; mas antes de a analisarmos, o que faremos em breve, vejamos o que o nosso filósofo pensava do destino do universo material.

27. Oferece o mundo terrestre o intérmino espetáculo da geração e corrupção, e o celeste, pelo contrário, uma tão impressionante continuidade que a razão humana é levada a concebê-lo como eterno. Mas se é a mesma, a matéria que constitui o substractum daquele processus no mundo inferior e povoa o superior não serão também os orbes celestiais corruptíveis? No Timeu, o Demiurgo, depois de organizar o universo, diz aos deuses inferiores (céus, terra, oceano, etc.) que, apesar de compostos, lhes dá imortalidade. A conclusão é óbvia; todavia Leão Hebreu interpreta este discurso no sentido de que os céus, transitórios, se gerarão e corromperão sucessivamente, como os corpos inferiores, embora, pela maior beleza formal, sejam mais duradouros. Os céus são assim corruptíveis, e conquanto durem mais que qualquer corpo inferior perecerão quando perfizerem «a sua natural idade».

Neste conceito suspende Leão Hebreu o seu pensamento; todavia para contentar a interlocutora que curiosamente deseja saber qual será esta duração, expõe, a puro título histórico, sem convicção, a doutrina cabalista. «Os teólogos mais antigos que Platão, dos quais foi discípulo», dizem que se corrompe e renova em 7000 anos. Durante 6000 anos dos corpos inferiores brota o caos, que nos restantes mil anos concebe uma nova geração. Corrompendo-se o mundo inferior — e corrompe-se pelo predomínio dum dos quatro elementos, o fogo, ou talvez a água —, sete vezes em períodos de 7000 anos cada um, isto é, ao fim de 49000 anos, o céu dissolver-se-á então, volvendo, desfeito, todo o universo ao caos ou matéria primeira.

Nesta material dissolução o mundo intelectual e angélico tem o destino que a sua constituição lhe impõe. Se se entender que são simples, sem participarem do caos, vivendo apartados dos corpos na contemplação da divindade, serão como ela eterno; mas se, pelo contrário, forem compostos de matéria e forma como diz o «nosso Albenzubron no seu livro De fonte vitae», regressarão ao fim de 49000 anos às fontes donde provieram: a matéria, ao caos, a forma, a Deus. Mas em qualquer caso, o que se dará depois? «É atrevimento falar de coisas tão altas e incógnitas»; mas sustentam que subsistindo durante certo tempo o caos, a divindade torna a fecundá-lo, brotando de novo o mundo. O universo é assim sucessivamente periódico, durando em cada período tanto quanto durar a oitava esfera em fazer uma revolução completa. A opinião mais segura porque se baseia «numa experiência mais larga» é a que lhe atribui uma duração de 49000 anos, embora outros afirmem 36000 e os «astrólogos mais antigos» menos ainda.

Enquanto se afirma simplesmente a corrupção do Mundo julgam ter um fundamento racional; mas quando indicam estes limites à duração do universo, além da «evidência astrológica» difícil seria encontrar «razão filosófica» e por isso recorrem à «divina disciplina» concedida a Adão, confirmada a Moisés, oralmente e na Sagrada Escritura, e transmitida pela tradição oral: a cabala. Conquanto Leão Hebreu não a admita neste ponto, referindo-a só para «comprazer» a sua interlocutora, desenvolve com familiaridade a argumentação cabalista. Basta-nos acentuar que, considerando os seis dias da criação no sentido de mil anos por cada dia, pois como diz David (Salmo 89, 4) mil anos para Deus são um só dia, os cabalistas interpretavam «os seis dias naturais da obra da criação de Deus» com «a virtude de 6000 anos de duração germinativa no mundo inferior» e o sétimo como o repouso do caos —, interpretação que os ritos hebraicos da Páscoa, a xemita e o jubileu confirmavam.

Expondo com manifesto conhecimento estas fantasmagorias, tão caras ao espírito semita, julga suficiente o que disse — e muito mais poderia dizer — para definir a «posição destes teólogos» e salientar «o seu atrevimento na limitação dos tempos e vida do Mundo».

28. O universo é um pensamento de Deus, como a criação do mundo a sua vida; e se do princípio divino derivam todas as coisas, para ele igualmente aspiram voltar como fim último a atingir na escala das perfeições. Na natureza palpita a inteligência, porque se o intelecto se une ao corpo é «para trazer a luz divina do mundo superior eterno ao inferior corruptível, para que esta parte mais baixa do Mundo não esteja privada da graça divina e eterna, e para que este grande animal não contenha uma parte que não seja viva e inteligente». Se de Deus resultou gnosiologicamente e geneticamente o universo, se Deus existe nas coisas e as coisas em Deus «causalmente» e «essencialmente», como não formulou Leão Hebreu o panteísmo?

«Deus assim como produz o universo assim o conhece todo, e todas as suas partes e partes destas, num simplicíssimo conhecimento, isto é, conhecendo-se a si mesmo...»; «nele é o mesmo o cognoscente e o conhecido, o sábio e a sapiência, a inteligência e o intelecto e a coisa dele entendida».

A sapiência divina é o verbo, intelecto e a própria mente de Deus, sendo a nossa inteligência que vê esta unidade na tríplice reverberação — intelecto, inteligente e coisa entendida, que apesar de serem «três em potência» são «um em ato ». Produzindo todas as coisas, Deus sustenta-as «no seu ser, porque se as abandonasse por um momento, converter-se-iam em nada... Ë o pintor do mundo, fonte da vida,... a vida de todas as coisas», contendo «... em si numa puríssima unidade toda a variedade e todos os graus do ser». Como se distinguem, assim, Deus e o Mundo? Não se sente um vago panteísmo nestes conceitos? Todavia Leão Hebreu, receoso desta conclusão, responde, à maneira neoplatónica, que «o efeito carece da perfeição da sua causa, a consequência da perfeição do princípio, o acidente da perfeição da essência». Crente, aceitando a tradição hebraica, pergunta: «Que comparativa proporção pode ter o nada com aquela fonte do ser, que por si produz do nada o ser, em excelentes graus de perfeição»? Leão Hebreu está pois muito longe do panteísmo, no sentido spinozista da Ética; mas se não chegou à fórmula Deus sive natura, exprimiu com rigor as de Dio intelletto e cosa intesa, Dio amore e cosa amata, Dio bellezza e cosa bella, isto é, o panteísmo intelectualista —, prelúdio de Bruno e Spinoza. Como intelecto, Deus é imanente, — tão imanente que vendo-se a si próprio conhece tudo e o intelecto humano unindo-se a Deus, a «todas as coisas se une». Deus não é, pois, no pensamento de Leão Hebreu, imanente como substância infinita do universo, mas apenas como inteligência; mas apesar deste dualismo o Criador não assiste impassível à sua obra.

Fonte donde todo o ser promana, as ações humanas nele encontram também o seu princípio, meio e fim. É princípio «porque a nossa alma intelectiva não é mais que um pequeno raio da infinita claridade de Deus, apropriado ao homem para o fazer racional, imortal e feliz. É meio em reduzir a efeito todo o ato virtuoso e honesto... É fim por que é exemplo imitativo de todos os que procuram proceder virtuosamente».

E mais frisantemente ainda: «O Sumo Deus não só quer ser causa eficiente do Mundo, mas ainda causa formal e final: causa eficiente em produzi-lo, causa formal em conservá-lo e causa final em reduzi-lo em si, como última perfeição e fim». Imanente sempre a ação de Deus no universo, este volveria ao primitivo caos se aquela ação cessasse; mas do mesmo modo que o criou conserva-o, amando-o como se seu filho fora. O supremo fim do universo é Deus, — a reintegração na beleza primitiva; mas como pode este atingir esta «redução perfectiva»? Os atos do universo são corpóreos e incorpóreos, e se naqueles não encontra os meios de atingir Deus, só pela parte intelectiva o conseguirá.

Tendo vários graus o entendimento, conquanto «todos sejam atos perfectíveis que ajudam a redução da criatura ao seu criador; contudo o ato intelectual que diretamente a causa é o que tem por objeto a essência divina e sua suma sabedoria, porque nele consiste e se compreende toda a coisa entendida e todo o grau de entendimento». Os outros graus, — o conhecimento da sabedoria divina e o desejo de a gozar com união —, são apenas os estádios preliminares da última perfeição do universo, que é a fruição unitiva do entendimento produzido com o sumo produtor.

Será, porém, o amor do universo para com Deus que o guia a esta integração na divindade, ou, pelo contrário, o amor que o criador tem ao universo? Não se pode negar que assim como o amor do universo é que o guia à deleitável e feliz união do Criador, assim o amor de Deus a esse universo é que o atrai à sua divina união, na qual com supremo deleite se torna bem-aventurado.» Em Deus há assim um duplo amor ao universo: um, anterior, é o amor que Deus tem a si próprio, acompanhado do desejo de comunicar a sua beleza ao universo produzido à sua imagem e semelhança; outro, posterior, é o que, já criado o universo com aquele amor, o conserva e, sobretudo, guia à «fruição unitiva». Verdadeiro amor paterno, se não fosse o amor divino, nem o homem nem o universo seriam capazes de atingir tão alto grau de perfeição, porque ele «aviva e levanta o amor do universo iluminando a sua parte intelectual, para o poder guiar à felicidade unitiva com a sua formosura».

Sustentando esta doutrina, como já reconheceu Solmi, Leão Hebreu mostrou bem sentir a necessidade de unir Deus ao Mundo, substituindo o Deus transcendente da tradição por um Deus, como ele próprio diz, «manente».


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