Fr. Heitor Pinto e Fr. Luís de León. Nota biográfica sugerida pelo livro de Aubrey F. G. Bell, Luis de León. A study of the spanish Renaissance. Oxford, 1925.

Este novo livro do insigne lusólogo e hispanizante, sr. Aubrey Bell, feito com espírito sereno e cujos límpidos períodos não insinuam uma atitude polémica, de odium theologicum ou censura inquisitorial, oferece ao estu¬dioso da cultura lusitana numerosas sugestões e valiosas notícias e juízos, como, por exemplo, a possível influência da Canção autobiográfica (Vinde cá...) de Camões na poesia Dei conocimiento de si mismo de Luís de León (p. 226). É, porém, em torno duma notícia acerca de Fr. Heitor Pinto, cuja biografia é narrada em quatro linhas e cuja atitude mística e saber escritu¬rário jamais foram estudados, que fazemos esta nota, comentando um período do notável livro do sr. Bell.

Na Portuguese Literature (p. 236), ao biografar H. Pinto, dissera o sr. Bell que o autor dos diálogos Da imagem da vida cristã, depois de doutorado em teologia pela Universidade de Siguenza — que ao tempo não merecera ainda o pejorativo epíteto seiscentista de universidade silvestre —, concorrera em 1567 a uma cátedra da Universidade de Salamanca, mas fora vencido pela oposição de Luís de León e pelas lutas entre os padres jerónimos e agostinhos.

Na monografia desenvolve este ponto, escrevendo: «[Fr. L. de León] incorreu também na inimizade dos jerónimos que ansiosamente desejavam que o português Fr. Heitor Pinto, cujas obras são quase tão estimadas pelos apreciadores da língua portuguesa como as de Luís de León o são pelos da castelhana, obtivesse uma cátedra de teologia em Salamanca. Fr. Luís pode ter visto nisto um ataque às esperanças do seu amigo Grajal, que já anteriormente tivera desinteligências com os jerónimos e desaprovando a criação duma nova cátedra, por desnecessária, pela Universidade, opôs-se formalmente às pretensões de Fr. Heitor a essa cadeira, e apoiou Grajal, contra este, na substituição da cadeira de Bíblia. Deve observar-se de passagem que Pinto, a quem uma tradição posterior atribui a frase: «El rei Felipe bem me poderá meter em Castela, mas Castela em mim é impossível», estava longe de mostrar em 1568 esta aversão. Mandou dizer a Luís de León que se comprometia por escrito a não concorrer com ele quando a cadeira de Bíblia vagasse, desde que lhe fosse garantido um partido, mas Fr. Luís não aceitou tal contrato e Pinto saiu de Salamanca afrontado. Heitor Pinto vinha recomendado pelo rei e pelo Conselho Real e é possível que os jerónimos se tivessem queixado ao rei, assim como a Fr. Diego Lopez, prior do Convento agostinho de Salamanca (pp. 122-123).

Estas notícias avivaram-nos a curiosidade de esclarecer este capítulo da biografia de Heitor Pinto, tanto mais que os factos na sua crueza dissentiam do parentesco espiritual dos dois contendores, revelado quer no método de interpretação das Escrituras, quer na atitude mística De los nombres de Christo e da Imagem da vida cristã; e foi ainda o Sr. A. Bell quem liberalmente nos forneceu alguns extratos documentais de dois livros que não tínhamos ao nosso alcance.

Em 1568 aparece-nos Heitor Pinto em Salamanca, se é que, como parece lógico, já lá não estava tempos antes. À velha cidade universitária, um dos centros de peregrinação intelectual de todo o português culto, levou-o porventura, a necessidade de imprimir os In Ezechielem Prophetam Commentaria que realmente imprimiu nesta cidade e neste ano; mas seduzia-o também a possibilidade de reger uma cátedra. A natureza dos seus estudos — além dos Commentaria in Ezechielem tinha publicado em León, em 1561, os In Isaiam Prophetam Commentaria — vinha ao encontro das necessidades da Faculdade de Teologia. Em 1560, Gregório Gallo jubila-se na cátedra de Sagrada Escritura, ou Bíblia (Esperabe Arteaga, Hist. de la Univ. de Salamanca, II, 351-352), mas era costume ou lei universitária conservar a cátedra em nome do proprietário até à sua morte, provendo-se interinamente por períodos de quatro anos, pelo processo das oposições (Getino, Vida y procesos de Fr. L. de León, 264). Neste ano de 1568 deveria haver, portanto, concursos (oposições), vindo assim as circunstâncias estimular os desejos de Fr. H. Pinto que eram também os da sua ordem. Ao findar o ano de 1567, Fr. Rodrigo Hiespes prefaciando em Madrid os In Ezech. Commentaria não receia afirmar que «Inter [prophetarurn enarratores] nostra hac tempestate principem locum tenet reverendus pater Hector Pintus, patria Lusitanus» confessando, demais, que «ubi simul integritatis suae, religionis, pie tatis, ac eximiae prudentia, prout sacerdotem monachum, theologumque decent, exemplo ac conversatione plurimum recreati sumus».

Gaspar Grajal era o catedrático interino desde a jubilação de mestre Gallo. Em torno do seu nome e das suas opiniões de hebraizante urdia-se a intriga teológica que o arrastaria, com Fr. Luís de León, aos cárceres da Inquisição. Os jerónimos do Convento de la Victoria de Salamanca, que já em 1562 tinham denunciado Grajal, não fariam tudo para evitar a recondução neste segundo quadriénio, conquistando a cátedra para a sua ordem? Pelas peças do primeiro processo de Fr. L. de León parece não haver dúvidas. Seja como for, Heitor Pinto ia aplicando as horas livres em conferências, como hoje diríamos, e via formar-se uma aura de prestígio. Os estudantes pareciam ser os mais entusiastas e entre eles é natural que se distinguissem os portugueses, cujo número então ainda era apreciável em Salamanca, a despeito dos esforços nacionalizadores da Universidade de Coimbra (vide o doc. pub. por Teixeira de Carvalho, in Rev. da Univ. de Coimbra, vol. III, p. 265).

Espontaneamente ou movidos por um habilidoso, solicitaram da Universidade a criação dum partido suficientemente remunerado para o livre-docente ficar em Salamanca, ensinando a sacra-página, as línguas e artes liberais, nas quais se mostrava tão diserto, e cautelosamente se instruiu desta deliberação o rei e os membros do conselho real. Simultaneamente com estas representações dos estudantes, de fundamental importância porque eram os seus votos que conferiam as cátedras universitárias, procurava-se vencer a resistência dos professores. No 1.° processo, Luís de León pergunta «si saben que el doctor Hector Rodriguez vino a la celda del dicho fray Luís de León, y le pidio que no contradijese el partido que pedia el dicho Pinto, y de su parte le ofreció que no se folpondria con el dicho fray Luís de León a la catedra de Bíblia si vacase, y dello le daria seguridad firmada dei dicho Hector Pinto; y el dicho fray Luís de León no lo guiso hacer ni cesar en la dicha contradición», citando, dentre várias testemunhas, o médico português, seu colega na Universidade e amigo certo, Ambrósio Nunes (Col. de docs. Inéd. para la hist. de Espana, XI, 262-263). A petição dos estudantes foi apresentada em 17 de Maio de 1568 ao claustro universitário, cujos votos se dividiram, e embora 8 membros, entre eles o reitor e mestre-escola, a aprovassem, a maioria decidiu, senão repudiá-la, pelo menos diferi-la. É o que parece confirmar a imediata convocação do claustro para o dia 20 do mesmo mês, no qual o mestre Gaspar Torres deu por escrito o seguinte voto: «Dixo que no convenía al bien de la Universidad, ni se podia de presente votar en lo que el Sehor Rector tiene propuesto, lo uno porque fué pedido este salario por no parte, porque la petición y firmas que en Claustro se dió, era de canonistas, y si algunos theólogos firmaron, fué por importunación de unos portugueses, que anduvieron muchos dias cobrando firmas... Y lo otro por la variedad de oyentes de diversas facultades que tiene el P. Maestro Hector Pinto, porque en el número se conoce claro no ser solo theólogos, es evidente razón para pensar que lo que hace el P. Pinto es más predicar que no interpretar Escritura, porque a interpretaria como conviene en Escuelas, sólo podrán oir los que ia entendieren, que habian de ser artistas ó theólogos... Lo otro porque para que esta Universidad insigne se conserve en la limpieza de errores como haste aquí, conviene que se evite ia ocasion de do tanto datío ha venido en otras universidades que sin teologia escolástica, sólo con lenguas se han metido muchos á explicar a Escritura y pretendido que todos la pueden oir é tratar, de do vino el principal daí-jo de Alemania, é asi es necessario primero conste de ia suficiencia que tiene el P. Maestro en Theologia scholástica presidiendo en atos é sustentándolos, de lo cual nadie ha visto muestra ninguna en esta Universidad» (Getino, ob. cit., 123-125).


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