D. Francisco Manuel De Melo, Tacito Portuguez. Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-Rei Dom João IV. Segundo apógrafo inédito da Biblioteca Nacional [do Rio de Janeiro], com introdução, informação e notas de Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Pedro Calmon. Rio de Janeiro, 1940, Centenário da Restaura

Na imponente relação de publicações com que o Brasil se associou às nossas festas centenárias de 1940, duas se destacam dentre as que nos chegaram às mãos: o Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, sabiamente anotado pelo Comandante Eugénio de Castro  e magnificamente publicado pela Comissão Brasileira dos Centenários Portugueses de 1940, e o Tacito Portuguez. Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-Rei Dom João IV, de D.S Francisco Manuel de Melo, editado pela Academia Brasileira de Letras na sóbria e distinta Coleção Afrânio Peixoto.

Há de comum entre estes livros, tão diferentes na matéria e na índole, o afeto com que são oferecidos à nação portuguesa e a dignidade com que são apresentados; agradecê-los, isto é, render aos editores o nosso reconhecimento e aos anotadores o nosso aplauso pelas reflexões históricas e literárias com que enriqueceram velhas páginas manuscritas, é dever que se nos impõe.

D. Francisco Manuel de Melo é um escritor afortunado, aliás merecidamente; salvo P.e António Vieira, nenhum outro seu contemporâneo logrou no nosso século mais numerosos editores nem tão acurado biógrafo. Esta atualidade literária não implica de forma alguma a excelência das edições, e tanto assim que de há muito se aguarda uma edição satisfatória dos Apólogos Dialogais e a publicação dos inéditos do famoso polígrafo. Um deles era o Tacito Portuguez. Em rigor, esta obra não era desconhecida , e até se deu o. caso de simultaneamente se iniciarem edições independentes no Rio de Janeiro e em Lisboa .

A edição brasileira não tem, assim, inteiramente, a surpresa do inédito, nem se pode dizer que é definitiva — o que aliás não foi intenção dos ilustres académicos que nela colaboraram: bastaria a circunstância de existirem, pelo menos, 11 códices, mais ou menos divergentes, ao que parece, e a edição reproduzir apenas o manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, para que as suas páginas se convertessem em instrumento subsidiário, embora de capital importância para uma futura edição crítica. Sem dúvida, é uma edição notável, pela fidelidade escrupulosa da reprodução, pela vasta erudição das anotações, pela sugestão de várias hipóteses, pela sobriedade e limpidez gráfica; no entanto, cientificamente, é instrumental, isto é, vale pelos problemas que suscita e pelos elementos que fornece. Com efeito, não são porventura densos de interrogações o título singular de Tacito Portuguez, o subtítulo estranho de Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-Rei Dom João IV — D.S Francisco escreve esta obra em 1650 e o Rei Restaurador faleceu seis anos depois —, e a incerta estrutura literária da obra, isto é, o não sabermos se estamos perante uma obra «truncada», como pensa Pedro Calmon, ou se incompleta, e, sobretudo, se a constituem páginas definitivas — o que não cremos —, se rascunhos e esboços, embora aquém e além com a marca inconfundível do estilo que D.S Francisco considerava digno de si e do seu público?

Vejamos apenas, por agora, a primeira destas interrogações, sobre a origem do título.

Tacito Portuguez—, assim intitulou D.S Francisco Manuel esta biografia de D.S João IV. É um título singular, tão intrigante que suscita naturalmente a curiosidade das hipóteses explicativas.

Afrânio Peixoto, na Nota preliminar (pág. XIII), sugere a seguinte explicação:

«Tácito Português», diz logo de livro de história que não pode ser publicado, na ocasião. Tácito, com efeito, falou para o futuro. Vingou o presente. Vem de Tibério a Domiciano para apenas publicar sob Nerva e Trajano... Por prudente, tácito... Chateaubriand pôde, entretanto, escrever aquela vingadora frase simbólica, de todos os escritores, a quem a discrição é imposta pelo perigo: «É em vão que Nero prospera — Tácito já nasceu no Império...».

«Não que Dom Francisco se vingasse de D. João IV. Não há disso aí. Aí a lenda se desmentiria. Mas a história, com ser verdadeira, por isso mesmo, não pode logo ser publicada, se não for vã apologia... Dom Francisco depõe de factos reais, que seriam inconvenientes no tempo, porém indispensáveis, depois, ao conhecimento...».

Esta explicação de Afrânio é assaz subtil e engenhosa para poder ser exata. A realidade, senão sempre, pelo menos na grande maioria dos casos, é simples, e como tal só tolera, coerentemente, explicações simples.

«Pinto para os tempos a imagem de um rei» — é a frase inicial, o anúncio programático da obra, cuja execução D. Francisco se propõe levar a cabo objetiva e veridicamente, — «nem sangue, nem Pátria, nem respeitos se interpõem entre mim e a verdade».

D. Francisco propusera-se, pois, escrever a biografia de D. João IV, e, como qualquer biógrafo, como todo o historiador, para além da colheita dos factos carecia de algumas ideias gerais que lhe orientassem o trabalho e de seguir um método na ordenação e narração dos acontecimentos. A primeira hipótese que me acudiu foi a de procurar a razão do título no paralelo com a Vida de Júlio Agrícola, de Tácito, e, com efeito, algo de comum existe na estrutura mental das duas biografias. Não obstante, segui outro rumo. Em conversa com o Dr. A. da Costa Pimpão, este meu ilustre e prezado colega, de sólido e claro saber, sugeriu-me que a explicação talvez se encontrasse nos Apólogos Dialogais, e, na verdade, assim é.

No Hospital das Letras, no colóquio sobre a História e a arte de a escrever, põe na boca de Justo Lípsio uma fala que é a justificação teórica do Tacito Portuguez, designadamente o passo em que reconhece os «historiógrafos que se empregam na escritura de uma só ação, como se disséssemos a vida de um príncipe, o sucesso de uma guerra, a relação dos movimentos e transferência de uma república, a estes tais afirmo ser lícito e obrigatório salpicar de sentenças, observações e juízos a sua história, porém com tal siso e mesura, que não seja o esmalte mais que o ouro, pena degenerarem de historiadores a discursantes».

Deste admirável passo resulta claramente que o método do Tacito Portuguez é consciente e meditado, isto é, funda-se em razões de preferência e de exclusão, notadamente do de Tito Lívio, e consequentemente pode supor-se que o título encontraria a sua explicação na imitação do método de Tácito, o qual «requer no historiador que entreponha seu juízo quando refere as ações, e sobre elas levante discursos, como não sejam alheios ou prolixos» .

Estes passos do Hospital das Letras justificam, sem dúvida alguma, a conceção histórica, ou melhor, a arte da biografia de que o Tacito Portuguez pretendeu, na intenção, que não na realização, ser transunto, mas deixam larga margem de dúvida quanto ao problema que nos ocupa, — a razão do título.

A explicação, segundo cremos, fornece-a o próprio D.S Francisco de Melo no mesmo Hospital das Letras, no seguinte diálogo:

«Autor. Sois chegado ao Tácito Francês, livro de grande opinião por ser escrito por um dos mais eloquentes homens que hoje vivem no mundo. Bocalino. Quem é esse?


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Vamos corrigir esse problema