Capítulo V - Estética

34. Leão Hebreu distingue, com a tradição, o belo natural, das coisas criadas, do belo artificial, obra do artista; mas com serem diferentes pela formação, têm a mesma raiz e só por necessidade dialética os opõe. Nada o prova tão claramente como a origem deste conceito.

Será a beleza uma propriedade das coisas? Que o vulgo o pense, admite-se, porque não vê para além do que os olhos e ouvidos lhe oferecem; mas aqueles cujo entendimento «tem olhos claros» sabem bem que «a formosura corpórea é sombra e imagem da espiritual...». Se a beleza fosse um atributo material seria uniforme, pois una é a matéria em todo o universo; e se dependesse dos corpos, vária, porque os maiores deveriam ser mais belos —, o que a realidade não comprova, pois o excessivamente grande, como o excessivamente pequeno, é disforme. Só pela inteligência pode surpreender-se a beleza e «assim como os cegos dos olhos corpóreos não podem compreender as figuras e cores formosas, assim os cegos dos olhos intelectuais não podem compreender as claríssimas formosuras espirituais nem deleitar-se nelas». Não sendo, assim, o belo inerente à matéria ou aos corpos, resultará da equilibrada proporção das partes componentes dos corpos? Este conceito, vulgar nalguns «modernos filosofantes», é duma evidente falsidade, porque os corpos simples, isto é, não compostos de diversas e proporcionadas partes, como o sol, as estrelas e as pedras preciosas, não seriam belos, e os proporcionados, como o rosto, alterando-se, por vezes, perdem a formosura. Se a beleza fosse harmonia, como na música, onde encontrá-la nas coisas intelectuais? E se derivasse puramente da razão humana, «que diriam da inteligência das coisas simples e da puríssima divindade, que é a suma formosura»?

Não consistindo, portanto, o belo na proporção, equilíbrio e harmonia, embora a desproporção, a desarmonia sejam feias, deve logicamente investigar-se num princípio superior e diferente dos corpos. A matéria, «fundamento de todos os corpos», é de per si feia, e só «as formas, que, como raios de sol, descem até ela do entendimento divino e da alma do mundo, ou do mundo espiritual ou do celestial,... lhe tiram a fealdade e lhe dão formosura». Não há corpo sem formosura; mas apesar da universal participação das formas, os corpos não são igualmente belos, porque as formas não infundem no mesmo grau os corpos ou, noutras palavras, não apagam do mesmo modo a fealdade da matéria. Nas coisas imateriais e aparentemente sem forma, como a luz, o sol, a música, o canto, a poesia, e em geral toda a obra de imaginação e razão, é ainda pelo mesmo princípio que são belos. «Assim, a formosura em todo o mundo inferior procede do mundo espiritual pelas formas, (...) as quais estão abstratas de matéria, que lhes impeça a sua formosura e por isto as virtudes e a sabedoria são sempre formosas; mas os corpos informados umas vezes são formosos e outras não, consoante a matéria se acha obediente ou resistente à formosura formal» O belo artificial, que só aparentemente se furta a este princípio, deriva também de formas, embora artificiais, pré-existentes no espírito do artista.

Num, como noutro, o prazer é a consequência psicológica da perceção do belo, porque é convertível com o bom, apesar da recíproca não ser verdadeira.

Conhecidos estes elementos comuns — origem formal e identidade de efeitos —, pode definir-se a beleza dos corpos formados, natural ou artificialmente, como «graça formal que deleita e move ao amor quem a compreende».

Restrita apenas às coisas criadas, esta definição não explica a efusão do belo no universo nem acentua a sua essência. Esta, encontra-a Leão Hebreu, platonicamente, nas ideias, porque se as coisas artificiais pressupõem a mente do artífice, as coisas naturais exigem também um criador em cujo entendimento pré-existem as suas formas. As ideias ou «pré--notícias divinas das coisas produzidas» constituem portanto a verdadeira beleza.

Dir-se-á à primeira vista que sendo as ideias inumeráveis pela sua variedade, não poderiam fundar o belo, que é uno; mas não se nota que no entendimento divino as ideias formam uma unidade, porque o universo é uno, embora se multipliquem idealmente ao informarem-no. O que é admissível é que a ideia de universo, todo-íntegro, preceda as ideias das suas partes, e como ideia primeira seja a verdadeira beleza donde as outras derivam gradualmente, não adquirindo, porém, uma existência autónoma, uma diversidade essencial.

Deste modo, no intelecto divino o múltiplo é uno e a diversidade, identidade, donde derivam respetivamente a multifária causalidade e a variedade de coisas do universo produzido. Como a luz solar, em si una e simples, mas que se pulveriza na variada gama das cores e graus de luz, o intelecto divino transfunde a sua ideia no universo criado, desdobrando-a nos vários graus de beleza que as coisas oferecem à contemplação do homem.

Não há nesta estética, como em geral nas numerosíssimas dissertações, tratados, poéticas, diálogos, etc., em que o Renascimento foi fértil, o vislumbre duma verdadeira teoria da arte, embora os Diálogos sejam, como reconheceram Menéndez y Pelayo e Croce — e tem na matéria a especial autoridade que lhes confere o espírito e a rasgada cultura —, uma das mais notáveis produções do género.

Uma única coisa é digna de nota: o ter-se cruzado no espírito de Leão Hebreu, numa certa confusão, o pensamento medieval e helénico (Platão e Aristóteles) —, este, acusado nas distinções e fundamentação do belo, aquele, no misticismo que envolve a suprema formosura.


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