O meu último encontro com Joaquim de Carvalho

Ao afastar-me da Rua do Pinhal, afluíram à minha rememoração outros encontros com o Mestre que não desdenhara nunca discorrer e dialogar com o simples estudante, que eu fora e continuava a ser, acerca de livros, temas de cultura, ocorrências do passado e do presente, projetos de investigação e... de omni re scibili. Recordei um outro encontro de três anos antes, ali mesmo, naquela casa da Rua do Pinhal, em que me exprimiu a sua solidariedade com um colega meu, de grande cultura, perante a desenvoltura com que as autoridades oficiais o haviam transferido da Sorbonne para um liceu português de província. Lembrei-me, depois, de uma troca de ideias no comboio, numa viagem, em 1948, da Figueira para Coimbra e do longo debate enquanto, na estação de Alfarelos, aguardávamos a ligação ferroviária para a cidade do Mondego. Revia-o, agora na cátedra, argumentando na Sala dos Capelos perante um público que a enchia toda: defendia, com a sua palavra ardorosa, o primado da Razão que Descartes convertera, no Discours de la Méthode, em princípio e pedra de toque para definir a essencialidade de toda a pesquisa intelectual. O candidato que, na tarde do dia precedente, colocara em dificuldade o arguente da Universidade de Lisboa permanecia silencioso e rendido escutando em silêncio a lição magistral. Remontando mais longe nos anos, apareceu-me, na recordação lábil e fluida, o seu vulto nobre, exaltando o amor da verdade que tinha inspirado a Galileo Galilei o estudo analítico dos satélites de Júpiter através da luneta astronómica.

Surgiu-me depois num outro contexto, tomando-me pelo braço e acompanhando-me num fim de tarde até ao miradouro, mesmo ao lado do portal da Biblioteca Joanina, donde se avistavam «os saudosos campos do Mondego», dissertando sobre Universidades famosas da Europa, que comparava naturalmente com a sua. Por associação de contiguidade aparecia-me, logo a seguir, dentro da própria Biblioteca, com Joseph Piel junto a um exemplar da Vita Christi de 1495, a elogiar as virtudes da grande Rainha que fundara as Misericórdias para os pobres, apoiara para divertimento de ricos e cortesãos o génio de Gil Vicente e promovera a publicação, para todos, de tantos livros importantes, o maior dos quais não podia deixar de ser aquele que estava ali, na estante, ao alcance da minha mão.

De outra vez, junto à Porta de Minerva, chamara-me de longe. Sabendo que eu frequentava em Roma a Biblioteca Vaticana pediu-me que transcrevesse um documento, cuja indicação constava de um verbete, que não tinha, como julgava, em seu poder. (O Dr. Almeida e Sousa forneceu-mo, umas horas depois na Biblioteca Geral e verifiquei que se tratava de um manuscrito relativo a Pedro Nunes).

No Outono de 1946, procurando alunos que ele julgava capazes de escutar e apreciar Marcel Bataillon que se aprestava a falar-nos de Erasmo, levara-me pelo braço até à pequena sala onde uns vinte ou vinte e cinco estudantes esperavam, ao lado das máquinas do Dr. Armando Lacerda que começasse a apresentação daquele que, alguns anos mais tarde, viria a ser em Paris o Administrador ou Reitor do Collège de France.

E quantas quantas outras recordações me não acudiam à memória! Certo dia, na Biblioteca Geral, propus-me submeter-lhe, por via da sincera e viva admiração intelectual que lhe votava, um escrito meu (que hoje considero péché de jeunesse...) sobre Antero de Quental. Eu sabia bem o que, no plano crítico, devia ser-lhe ou não agradável. Li-lhe, portanto, duas páginas com reparos um tudo-nada provocatórios que punham em causa dois ensaístas de talento: um, não universitário, que Joaquim de Carvalho estimava; e o outro, que fora universitário mas deixara de sê-lo, por quem ele sentia amizade pessoal mas de quem discordava frontalmente.

Joaquim de Carvalho sorriu com a experiente argúcia e a complacente bonomia de quem tudo logo compreende e disse-me, mais ou menos, estas palavras: «— A vida há-de ensinar-lhe que nem sempre é desejável que objetivemos o que seria justo louvar ou criticar, porque não se esqueça de que Ventas filia temporis e o que hoje é aceitável poderá ser inaceitável amanhã. Quanto à justeza do seu juízo, acertou no alvo. Mas valerá a pena para a sua própria imagem, ser iconoclasta destruindo imagens, reais e autênticas umas, e outras artificialmente fabricadas? A não ser que a ciência ganhe com isso. Ganhará? Admiro, porém, a finura das suas apreciações. Quer um conselho? — Despersonalize os seus reparos. Intemporalize a sua discordância. Situe a sua análise no plano problemático e problematizante». Estava, pois de acordo, mas punha em causa a oportunidade da minha crítica.

Foi a partir deste discurso que me decidi a orientar as minhas reflexões mais numa perspetiva de ideias-matrizes e motrizes ao serviço de um debate problemático do que numa angulação mental de discordância ou reparo ad hominem. Roma, onde eu então residia, era um miradouro apaixonante sobre a Europa das pátrias, uma Europa que ainda não existia como entidade política nem mesmo como simples comunidade económica, mas que os intelectuais italianos já sonhavam. As minhas fobias coimbrãs, redutoramente provincianas, pareciam-me agora rabugices de aldeia, quezílias pueris sem qualquer significado à luz de uma realidade europeia de diálogo. Joaquim de Carvalho, na sua estatura de homem e de universitário redimensionava na sua insignificância e insignificação exatas o palavreado bem-falante (mas empolado e vazio) de tantos ensaístas portugueses, fátuos e pretensiosos. E também o meu polemismo ingeneroso, nascido, todavia, de um propósito idealista (mas irrealista), acabava por ser remetido, na lição aprendida à sua dimensão de jogo lúdico-dialético, filosofante e psitacista. Eu recordava, depois do meu encontro com Joaquim de Carvalho em Agosto de 1954, outros encontros que para mim tinham sido uma lição viva, que moveram e movem a minha gratidão para com o mais insigne professor universitário português dos anos 40 e 50: e procurei, embora sem o conseguir, saldar a minha dívida dirigindo os trabalhos que se impunha levar a cabo com vista à edição da sua Obra Completa, agora coroada neste volume VIII.

Outros encontros emergiram ainda, na rememoração daquela hora, como se uma longínqua intuição premonitória me sugerisse vagamente que não voltaria, nos caminhos da existência, a encontrar-me com Joaquim de Carvalho. Com efeito, quatro anos depois, no dia 27 de Outubro de 1958, a sua presença terrena iria para sempre apagar-se como uma sombra, para reaparecer, porém, pura e viva, na memória tenaz da História, porque a dos homens é quase sempre como a água que flui e tudo leva consigo para a grande noite silente. Mnemósine não deixa, todavia, morrer aqueles que bem serviram um ideal de fraternidade e uma causa tão nobre como a da ciência e a do magistério, o mesmo que é dizer da investigação e da Universidade. Joaquim de Carvalho pertence, pelo que operou e investigou, a esse número restrito de eleitos.

Lisboa, Biblioteca de Estudos Humanísticos, 10 de Junho de 1996.

JOSÉ V. DE PINA MARTINS


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