9. Anotações histórico-bibliográficas [ao libro de Algebra en Arithmetica y Geometria]

O ano de 1567 assinala-se singularmente na história da nossa cultura. Domina-o, sem contestação, o signo da Contra-Reforma, bastando como testemunho, tão evidente é o fato na índole das ideias e no predomínio dos temas, a circunstância de quase metade dos vinte e dois livros saídos dos prelos portugueses no seu decurso se modelar pela pauta e norma do Concílio Tridentino; no entanto, a publicação, no país, da Crónica do Príncipe D. João e das partes III e IV da Crónica de D. Manuel, de Damião de Góis, do Memorial da Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, do Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Morais, e, no estrangeiro, em Antuérpia, a impressão da versão latina dos Colóquios dos simples e drogas da Índia, 1563, de Garcia de Orta, feita por Carlos de l'Ecluse e a do Libro de Algebra, de Pedro Nunes, conferem-lhe um lugar destacado na bibliografia histórica, literária e científica. Atentemos, como cumpre, no último destes livros, considerando em primeiro lugar os problemas de ordem extrínseca.        

Dá-se com o Libro de Algebra o caso invulgar de apresentar duas edições que se dizem feitas em Antuérpia no mesmo ano, uma En casa de la Biuda y herederos de luan Stelsio, outra En casa de los herederos d'Arnoldo Birckman a la Gallina gorda, o que, como é óbvio, suscita reparos.      

A data, 1567, afigura-se-nos certa, o que implica reconhecer com o comum dos bibliógrafos que o Libro de Algebra viu pela primeira vez a luz pública neste ano e não anteriormente, corno equivocadamente escreveu Picatoste y Rodriguez, confundindo o ano de 1564, que é o ano da dedicatória da obra ao cardeal-infante D. Henrique, com o da primeira impressão.        

A dualidade dos frontispícios, porém, já se não explica tão facilmente, pois enquanto há quem a considere sinal da existência de duas edições diferentes, não falta quem, acertadamente, julgue ter havido apenas uma única edição, com dois frontispícios distintos .       

Com efeito, o confronto mostra sem sombra de dúvidas que os dois textos têm o mesmo número de páginas (XVI inumeradas + 341 só numeradas na frente) e são idênticos no formato (in-8.° pequeno), nas dimensões da mancha tipográfica (0,140 m x 0,075 m), no tipo e caracteres de imprensa, que são latinos, na qualidade do papel, sem filigranas nem marca de água, nos desenhos, nos erros de caixa, divergindo apenas na indicação e na marca dos impressores, respetivamente a de J. Steelsius, duas gralhas voltadas para um ceptro erecto sobre um altar (ou mesa), com a divisa, em exergo, Concordia res paruae crescunt, e a de Arnaldo Birckman, uma galinha gorda junto de uma árvore e sobre o terreno uma filactera com o nome ARNOLD BIRCKMAN, tendo ainda na parte superior do ornato, de forma rectangular, a data de 1557.

Houve, pois, uma única edição com duas marcas tipográficas diferentes e consequentemente a composição de toda a obra, incluindo o próprio frontispício e os termos do privilégio, que apenas divergem na indicação das casas, e a impressão foram feitas na mesma tipografia. Bosmans diz ter sido por então de uso corrente nos Países Baixos o emprego de marcas editoriais diferentes no frontispício de uma mesma edição, mas esse fato, se é exato, como é de crer, dada a idoneidade do autor, não atinge outras dúvidas, designadamente acerca da oficina que recebeu o encargo e por conta de quem o cumpriu.

Pode pensar-se, com verosimilhança, na sucursal que Amoldo Birckman estabelecera em Antuérpia.

É certo que se não desconhecia a oficina de Steelsius, quanto mais não fosse pela impressão das Obras, 1554, e do Segundo cancionero espiritual, 1558, de Jorge de Montemor, mas tudo concita a opinião de que pelos anos em que se imprimiu o Libro de Algebra a preferência teria recaído na sucursal de Birckman, apesar de o fundador não ter permanecido ortodoxo. Os seus prelos tinham boa fama entre nós; em 1559, deles se tirara, na casa-mãe de Colónia, a História de menina e moça, de Bernardim Ribeiro, em 1565, na sucursal de Antuérpia, a Diana, de Jorge de Montemor, que era vendida em Lisboa por Francisco Grafeo, representante da casa e pertencente a uma família antuerpiense das relações de Damião de Góis, em 1567, João de Molina, ou de Espanha, estabelecido com livraria na capital, fornecia-se de edições da oficina à la Poule grasse e em 1573 foi da oficina antuerpiense dos herdeiros de Amoldo Birckman que se exarou ter saído a reedição da Practica d'Arismetica, de Gaspar Nicolas, o que temos por falso.

A sucessão destes fatos dissipa, de certo modo, a estranheza de se haver procurado tão longínqua oficina, apesar da fama e da prosperidade que as artes gráficas alcançaram em Antuérpia no século XVI e que Plantin elevou ao apogeu. É possível que para a preferência houvesse concorrido, direta ou indiretamente, o prestígio do impressor João Blávio, de Colónia, cuja sucursal tipográfica de Lisboa editou entre 1555 e 1564 diversos livros de categorizados e influentes autores, mas é intuitivo que devem ter predominado considerações de ordem técnica e, sobretudo, motivos de ordem pessoal, que hoje nos escapam.

Ao contrário de Jorge de Montemor, que aproveitou a estadia em Antuérpia para vigiar diretamente a impressão do seu Segundo Cancionero (1558), Pedro Nunes teve de confiar na revisão alheia, porventura a da própria oficina. Quem sempre se mostrou rigoroso na exatidão dos raciocínios e da respetiva expressão gráfica, a ponto de não dar ao prelo alguns livros por as oficinas portuguesas não disporem dos recursos das suas congéneres de Paris e da Alemanha, e havia atingido aquela altura da vida em que já crepita a chama do passado e as derradeiras forças procuram dominar o assalto da decrepitude cingindo-se ao duradouro e ao definitivo, é óbvio que só entregaria o manuscrito do Libro de Álgebra a quem lhe desse garantias de probidade e de exação. Trabalhariam acaso na oficina de Birckman operários que houvessem vivido em Portugal ou nela seria corretor de provas pessoa em quem Pedro Nunes confiava? Não sabemos, mas quando se imagina a possibilidade destas circunstâncias, dada a existência em Antuérpia de uma apreciável colónia portuguesa  e em Lisboa de tipógrafos flamengos que possivelmente tivessem regressado à capital da sua província, e, sobretudo, se se atenta na abundância de grafias lusitanas, é-se levado a pensar que os deslizes ortográficos não procediam do manuscrito, mas de quem o compôs ou reviu fora das vistas do autor, sob o contágio inconsciente da familiaridade com a língua portuguesa. Poderia um tipógrafo nado e criado na Flandres compor o original de Pedro Nunes? Não é crível que revisse as provas quem desconhecesse as duas línguas peninsulares.      

Quaisquer que tenham sido, porém, as circunstâncias da publicação, a maneira como o original chegou à oficina, assim como o indivíduo ou entidade que custeou as despesas tipográficas, é fora de dúvida que com o presente volume o Libro de Álgebra logra a segunda edição, não sendo, portanto, de estranhar que nos trezentos e setenta e oito anos decorridos se tivessem tornado raros os exemplares estampados em Antuérpia.


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