Quando saiu a público o Libro de Álgebra, havia cinco anos que Pedro Nunes estava aposentado do ensino universitário, bastando o simples lance de olhos pela sua produção bibliográfica de então para se tornar claro que o sábio vivia no legítimo desejo de legar aos vindouros o fruto amadurecido das suas meditações e vigílias: em 1566 publica em Basileia a primeira edição latina do De arte atque ratione nauigandi e das anotações ao De motu navigii ex remis e as Theoricx noux planetarum de Purbáquio, reimpressas em Coimbra em 1571-1573; em 1567, o Libro de Algebra, e em 1571 reimprime em Coimbra, o De crepusculis e o De erratis Orontii Firtaei. Destas publicações, só o Libro de Algebra era verdadeiramente inédito, mas em rigor o texto nem era de redação recente nem tão pouco desconhecido.
“Esta obra ha perto de XXX annos que foy per my cõposta, mas porque despois fuy ocupado em estudo de cousas muy diferentes, de mera especulação, posto que alguãs vezes a reuisse, & conferisse com o q outros despois escreuerão, a deixei de pubricar ategora, que debaxo do nome & tutela de V. A. a mando fora”, disse na dedicatória (supra, p. XIV) e, consequentemente, a primeira redação remonta aos anos de 1535-1536, mais ou menos contemporaneamente da conceção, senão da redação, do Tratado da Sphera (1537). Assim, é de crer que o Libro de Algebra seja um dos livros a que alude o alvará de 27 de Setembro de 1537, inserto no Tratado da Sphera (ver Obras, I, p. 2), no passo em que Pedro Nunes é autorizado a mandar “emprimir todas as obras que tem feytas: assi em Latim como em Lingoagem das sciencias Mathematicas & Cosmografia”.
Com permanecer inédito durante cerca de trinta anos, o Libro de Algebra nem por isso foi desconhecido, porque, como o próprio Pedro Nunes declara, “antes que entendiese en lo hacer imprimir, y auiendolo communicado a murchos, que dei sacaron lo que bien les parescio, vino otra summa de Hieronymo Cardano, la cual compuso con emulación de Fray Lucas, porque hace vn capitulo de sus yerros” (vol. VI, p. 393).
Gerolamo Cardano (1501-1576) não escreveu obra alguma com o título de Summa, designando P. Nunes por tal o Artis magnae siue de regulis algebraicis liber unus, Nuremberga, 1545 , em virtude de nele se encontrar o resumo, a exposição ou a crítica de algumas produções algébricas de Mohamed ben Musa, Leonardo de Pisa, Luca Pacciolo, Scipião Ferro, Nicolau Tartaglia, António Maria Florido e Ludovico Ferrari.
O apuramento deste fato importa, como é óbvio, o estabelecimento da data — 1545 — antes da qual Pedro Nunes dera a conhecer o Libro de Algebra, mas sobre os indivíduos “que dei sacaron lo que bien les parescio” não temos indicações extensas nem precisas. Sabe-se apenas que, em 1554, Jacques Peletier du Mans (1517-1583) declara no L'algebre departie an deus liures. A tres illustre Signeur Charles de Cosse, Marechal de France, A Lion par Ian de Tournes, MDLIIII, p. 2, que “I'ay encores oui dire de Pierre None, Mathematicien de Lisbonne en Portugal, qu'il l'auoit aussi traictée [a Algebra] en son langage Espagnol; mais ie n'ay veu son Liure”. Bosmans, que cremos ter sido quem primeiramente chamou a atenção para este passo, perguntou se o Libro de Algebra não teria circulado em manuscrito", e Martín Escobar não hesitou em dar uma resposta conclusiva: “Luego entre Peletier y Nútíez debieron existir relaciones de amistad, sintiendo el primero por el segundo una profunda admiración. Asi lo comprueba una carta que trae Peletier en su Geometria (In Euclidis Elementa Geometria demonstrationum), publicada en 1557, en la cual dice: Sed has ipsas Demonstrationes sine maiori mete erga te beneuolentix testimonio exire nolui. Ac velim intelligas, me nihil magis optare, quam te meorum scriptorum censorem mihi dari.
“En esta misma carta dice también lo siguiente: Non enim puto te ante hoc tem pus de me audivisse, qui patrio sermone hucus que fere scripserim: cuiusmodi et ars nautica abs te in tuorum manibus versatur; et Algebram etiam abs te scriptum audio. En donde como se ve, no hace màs que confirmar lo que habita dicho en el Algebra sobre el libro de Núfíez. Es estrafío que Peletier, que,conocia todas las obras publicadas por Núñez, segundo se deduce de la citada carta, no hubiere conocido este manuscrito de Núñez a que venimos refiriéndonos, ya que este, según hemos visto, se le habia dado a conoscer a otros autores” .
Pedro Nunes correspondeu, também publicamente, a estes testemunhos de admiração, pois apesar de dissentir de Peletier a propósito do “ângulo de contingência” (ver a anotação à p. 83, 1. 11) manifestou por ele uma consideração que recusou a outros matemáticos seus contemporâneos, cujos nomes as tubas da fama divulgavam. Ignora-se se se corresponderam epistolarmente; não obstante, não pode dizer-se que tenham mantido relações de amizade, como afirmou Martín Escobar, nem que Peletier aludisse ao Libro de Algebra por “circular” o respetivo manuscrito, como aventurou Bosmans, porque as referências do matemático francês baseiam-se apenas em informes de outiva — “I'ay encores ouI dire (...) Algebram etiam abs te scriptam audio” —, o que evidentemente apenas implica a existência de uma pessoa que viu o manuscrito e dele lhe falou com louvor. Essa pessoa foi Elias Vinet.
Carecemos da prova documental, decisiva e terminante, mas temos o fato por sem dúvida, dadas as relações que Elias Vinet manteve em Coimbra com Pedro Nunes e em França com Jacques Peletier.
Aproximava-os o interesse pelo estudo das matemáticas, mas enquanto na obra de Pedro Nunes realça a “doctrina de sciencia especulativa”, para empregar uma sua expressão bem significativa (hic, p. XIV), nos seus coetâneos franceses, considerados sob o ponto de vista histórico-matemático, sobressai a intenção pedagógica. Ambos foram eruditos e literatos de nomeada na França do seu tempo, prezando mais o cultivo das letras humanas, ao que parece, do que o das ciências exatas, a ponto de se poder pensar que só o dever docente de mestres de artes os levou a aplicarem a pena às disciplinas matemáticas.
Em Vinet o fato é transparente. Regressado a França em 1549, passou a ensinar em Janeiro do ano seguinte a classe de matemáticas do Colégio de Guyenne, de Bordéus, e traduziu pouco depois para latim, e sem dúvida para uso dos seus alunos, a Anotação sobre as derradeiras palauras do Capitulo dos Climas que Pedro Nunes fizera seguir à versão do Tratado da Esfera de Sacrobosco, aditando-a à edição da Sphxra Ioannis Sacro Bosco emendata que deu ao prelo em 1552. Esta tradução assinala um dos primeiros marcos do renome de Pedro Nunes para além das fronteiras portuguesas. Foi feita, sem dúvida, sob o impulso da consideração científica, mas a amizade também lhe não foi estranha, pois decorridos trinta anos ainda Vinet se comprazia, no livro La maniere de faire les Solaires, que communemant on apele Quadrans (Bordéus, 1583), em recomendar a leitura do “De erratis Orontii Fintei, qu'vn mien ami Pero Nunez Cosmographe du Roi de Portugal Iehan le Tiers, publia et fit imprimer a Coimbre Vniuersité de Portugal, l'an M. D. XLVI”.
Como se vê do título destes livros, foi a teórica da esfera que cativou predominantemente a reflexão de Elias Vinet; a de Peletier, porém, orientou-se para a álgebra e para a geometria, ou mais rigorosamente para a explicação de Euclides. Como o seu colega bordelês, a quem Scalígero reconhecera superioridade no saber e nos dotes , foi o intento de modernizar o ensino que o levou a publicar L'Algèbre, em 1554, e os In Euclidis Elementa Geometrica demonstrationum, em 1557.
Anos antes destas publicações, em Setembro de 1549, pretendera Peletier ser mestre no Colégio de Guyenne, para o que, ao que parece, viera expressamente a Bordéus. João Gelida, então principal do colégio, contrariou a pretensão, preferindo-lhe Elias Vinet, que acabava de regressar de Portugal e cuja atividade literária e docente desde então ficou ligada ao colégio que André de Gouveia reformara com alma de pedagogo e saber de humanista e Montaigne recordaria no De l'institution des enfants, dos Essais, com afeto e reconhecimento intelectual.