9. Anotações histórico-bibliográficas [ao libro de Algebra en Arithmetica y Geometria]

Só em 1572, e aliás por pouco tempo, viu Peletier realizada a pretensão, por ter sido nomeado neste ano principal do colégio. É crível que o insucesso tivesse esfriado as relações afetivas entre os dois mestres de artes e eruditos humanistas, mas se assim foi, o esfriamento não chegou ao extremo de se evitarem intelectualmente e de Vinet lhe ocultar a notícia das novidades científicas que encontrara em Portugal.

Com efeito, a leitura do Petri Nonii Salaciensis Demonstrationem eorum, que in extremo capite de climatibus Sacroboscus scribit de inaequali climatum latitudine, eodem Vineto interprete, aditada, como dissemos, à edição da Sphfflra loannis Sacro Bosco emendata que Vinet publicara em 1552, atraíra a atenção de Peletier, e que outro seu compatriota tão qualificado lhe poderia por então dizer quem era e o que valia Pedro Nunes?

Somente Elias Vinet estava nas condições pessoais e possuía autoridade científica para o informar que Pedro Nunes havia escrito uma Álgebra “en son langage espanhol”, que se conservava inédita, e uma Ars nautica, isto é, os dois tratados sobre a carta de marear, que haviam saído a público no Tratado da Sphera, em 1537, e ao tempo ainda não tinham sido vertidos, com amplo desenvolvimento do segundo, para latim.

Ignora-se se os leitores do manuscrito da Algebra apresentaram ao autor quaisquer observações críticas. Se o fizeram, de todo desapareceram os respetivos indícios; mas tivessem ou não sido apresentadas, o que, aliás, só é meramente conjeturável, a verdade é que Pedro Nunes não careceu de advertências alheias para rever, corrigir e, por fim, trasladar para castelhano as laudas primitivamente escritas em português. Compreende-se.

Durante os largos anos em que o manuscrito esteve guardado na gaveta da escrivaninha, aprofundou e dilatou os conhecimentos matemáticos, assim puros como na aplicação, especialmente à cosmografia, e por isso o texto do Libro de Álgebra que saiu a público não podia corresponder inteiramente ao da primitiva redação. Di-lo a razão lógica, alentada pelo sentimento da responsabilidade intelectual, e confirma-o expressamente o próprio Pedro Nunes ao declarar na dedicatória ao cardeal-infante D. Henrique que “Esta obra ha perto de XXX anos que foy per my cõposta: mas porque despois fuy occupado em estudo de cousas muy differentes, & de mera especulação, posto que algüas vezes a reuisse & conferisse com o q outros depois escreuerão, a deixey de pubricar ategora, que debaxo do nome & tutela de V. A. a mando fora” (vol. VI, p. XIV).

Seria altamente ilustrativo dos processos da atividade intelectual de Pedro Nunes, designadamente no aspeto da invenção original, o poderem seguir-se com alguma particularidade as alterações doutrinais que o manuscrito foi sofrendo no decurso de tantos anos. Infelizmente, não é possível, e só conjeturalmente se pode aventar, com base na cronologia de algumas referência, que o reviu por três vezes: a primeira, parcialmente, depois de 1546; a segunda, também parcial, depois de 1556, e a terceira, talvez total, quando levou a cabo a versão da redação portuguesa para castelhano, e se é que, como também é crível, não fez uma derradeira revisão de todo o manuscrito quando o remeteu para o prelo.

A primeira tem como fundamento o passo (vol. VI, p. 36, 11. 6-7) em que invoca o que “por nos fue demonstrado en el libro de los yerros de Oroncio Fineo”, isto é, o De erratis Orontii Fini, Regii Mathematicarum Lutetix Professoris; como este livro foi impresso em Coimbra em 1546, é óbvio que a secção do cap. IV da parte I, na qual se ocupa da demonstração da regra da multiplicação de potências, foi revista e acrescentada ao texto primitivo. Pode ainda considerar-se o De erratis Orontii Finxi como que subjacente à afirmação da dificuldade de se obterem duas meias proporcionais por artifício mecânico (parte II, cap. I, p. 55, 11. 36-37), em virtude de nele fazer esta demonstração (t. III, cap. II, pp. 15-18), mas esta correlação textual não permite uma ilação segura por ser admissível que Pedro Nunes já tivesse esta opinião quando iniciou a redação do Libro de Algebra.

A segunda revisão parece que incidiu sobre alguns pontos do Tratrado das proporções, que no De crepusculis, isto é, em 1541, anuncia ter entre mãos e poder dar a público com o título De proportione in quintum Eudidis (ver t. II, p. 126 e anotação de p. 361). O Dr. Gomes Teixeira aventou na História das Matemáticas em Portugal (p. 154) que esta obra foi inserta no Libro de Algebra constituindo os capítulos que na parte III consagrou à doutrina da proporcionalidade.

A hipótese apresenta-se com tal densidade lógica que a temos quase por certeza. A perda do respetivo manuscrito encontra-se, assim, de certo modo, compensada, mas isto não exclui problemas de outra ordem, designadamente cronológica.

No estado atual dos conhecimentos, não é possível, com efeito, estabelecer outra data relativa ao Da proporção além da de 1541, e consequentemente não pode fixar-se a correlação temporal desta obra, cujo texto não chegou até nós, com a evolução do texto do Libro de Álgebra. Não obstante, é verosímil que haja sido escrita e incorporada, talvez integralmente ou quase, depois da redação primitiva do Libro de Álgebra, pois sendo esta de 1535-1537, não é crível que Pedro Nunes se lhe referisse em 1541 em termos de quem pensava dá-la ao prelo em breve, como obra independente. É certo que o alvará de 27 de Setembro de 1537 autorizou Pedro Nunes a mandar imprimir o Tratado da Sphera e “todas as obras que tem feytas: assim em Latim como em Lingoagem das sciencias Mathematicas & Cosmografia” (ver t. I, p. 2) e que nesta alusão vaga podia conter-se o Da proporção. A conjetura não é de excluir; não obstante como já notou o Dr. Luciano Pereira da Silva, a cronologia conhecida só autoriza que se refira a esta época o Libro de Algebra. Tudo o mais é incerto. É possível que, dada a obscuridade com que a teoria da proporcionalidade era versada, já autonomamente, já como comentário ao Livro V de Euclides, acudisse por então ao espírito de Pedro Nunes o intento de lhe dedicar um estudo especial, mas, se assim foi, parece que a ideia só se converteu em realidade alguns anos depois, pela época em que compôs o De crepusculis.

Qualquer que seja o grau lógico desta conjetura relativa à data da redação primitiva do Da proporção e à época da sua incorporação no Libro de Álgebra, a análise textual dos capítulos deste último Libro dedicados à proporcionalidade mostra que eles tiveram, pelo menos, uma revisão posterior a 1557. Não é de excluir a hipótese de anteriormente a este ano, e depois de 1546-1547, ter acrescentado e revisto alguns períodos no original existente circa 1541, visto citar “el libro que compusimos, y diuulgamos de los yerros de Oroncio” (vol. VI, p. 100), que deu a público em 1546, e o De sphwra et cylindro de Arquimedes (pp. 84, 98 e 100), publicado pela primeira vez na versão latina das Opera do genial siracusano, impressa em Basileia, em 1544.

Conquanto plausível, esta hipótese não tem fundamentação segura; não assim a da revisão posterior a 1557. É que Pedro Nunes, no desenvolvimento da análise da opinião de Jordano Nemorário sobre o ângulo de contingência (ver [p. 638], a anotação à p. 84, 11.14-15), foi levado a aludir à opinião «de Jacobo Peldetario» sobre o mesmo ângulo, exposta no In Euclidis Elementa geometrica demonstrationum libri sex, publicados em Lyon, em 1557; consequentemente, supondo mesmo que ao tempo em que redigiu o manuscrito do Libra de Algebra já conhecia o Liber de panderibus, impresso em 1533 de Nemorário, pode concluir-se legitimamente que a sua reflexão pessoal sobre o ângulo de contingência ocorreu posteriormente, desenvolvendo-se e firmando-se no recontro com as opiniões de Jerónimo Cardan, exposta em 1550, no De subtilitate (ver [p. 639J, anotação à p. 85, 11.11-12) e de Peletier (1557).


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