9. Anotações histórico-bibliográficas [ao libro de Algebra en Arithmetica y Geometria]

Com a trasladação para castelhano é de crer que Pedra Nunes tivesse feito a derradeira revisão doutrinal, levado pela meticulosidade da sua consciência intelectual e pela irresistível tendência inerente à constituição lógica do seu espírito a ponderar nas palavras a respetiva coerência e exatidão, mas se assim foi, a carência absoluta de indícios não permite a mais Ieve hipótese sobre a extensão deste trabalho, nem tão-pouco sobre a época em que o empreendeu e levou a cabo.

Uma coisa, no entanto, temos por certa: não careceu de auxílio alheio para fazer a versão. É que o castelhano, que desde os fins do século XV desfrutava de fervoroso apreço na corte e na roda ilustrada dos nossos literatos e sábios, era idioma familiar a Pedro Nunes.

Aprendera-o na convivência escolar de Salamanca e tornou-se-lhe até linguagem doméstica após o casamento nesta cidade, em 1523, com D. Guiomar Arias, espanhola de nascimento e de educação.

Com ser-lhe familiar, talvez não possa dizer-se que o castelhano que lhe saía da pena fosse sempre castiço, por se apresentar aqui e além entremeado de lusismos. Há nas páginas do Libra de Algebra erros que pertencem à oficina, não se sabe se por incúria do compositor

ou mais propriamente do «moldeiro» como então se dizia, se do revisor, por num passo se ler correctamente este arte (p. 39, 1. 15) e noutro esta arte (p. 43, 1. 18). A índole deste erro, de evidente cunho nativo, sugere irresistivelmente que quem o cometeu era português, ou, pelo menos, mais prático na nossa linguagem que na castelhana, tanto mais que incorreu frequentemente noutros lusismos, como agora, impropria, comun, essa, pelo, e, manifesto, podemos, mesmo, que só podiam verificar-se em quem tivesse afeiçoado os ouvidos e os olhos à fala e à escrita portuguesas.

Ao lado destes, que podem chamar-se lapsus typi, de cunho manual, ocorrem outros com o semblante de lapsus calami e às vezes de lapsus linguee, isto é, provenientes da confusão das formas da linguagem nativa com as do idioma forasteiro, designadamente portanto, entresi, ala, lasquales, siendo nos, otrosi, quitando la, iuntar, le emos, enel, dixessem, por que. A frequência com que se repetem levam a crer que estariam no original, sendo, por consequência da responsabiiidade do autor. Compreende-se. O castelhano devia ser a segunda língua de Pedro Nunes, mas aprendera-o principalmente de outiva, já rapaz feito, e não pela escrita e pelos olhos, na meninice. Daí os erros ortográficos do seu texto, cuja origem sensorial parece afastar a hipótese de ter conhecido inicialmente o castelhano impregnado de lusismos que se escrevia no Portugal do seu tempo e de que são flagrante testemunho Cristóvão Colombo e Gil Vicente.

Preferindo o castelhano para a divulgação da sua obra, Pedra Nunes obedecia a propósitos de confraternidade científica peninsular, dado que era a fala «mais comum» entre as gentes hispânicas. Em Portugal, não havia ninguém com individualidade nas letras ou com prestígio na corte que ignorasse o castelhano. O bilinguismo estava na moda e não sem alguma razão se pode imputar de exagerado o espanholísmo de D. Manuel, de D. João lII e dos infantes seus irmãos . Traduzindo e dedicando o Libro de Algebra ao cardeal-infante D. Henrique, Pedro Nunes não magoava os sentimentos do seu antigo mecenas, não dissentia da roda mais prestigiosa dos seus contemporâneos e, como autor, satisfazia a nobre ambição de ver as suas ideias correr mundo pela difusão universal que o castelhano então usufruía e de que efetivamente o Libro de Algebra veio a aproveitar com as traduções francesa e latina.

Estas são as razões por assim dizer circunstanciais, mas quando se passa da consideração do ambiente português e da conjuntura histórico-científica para a realidade viva das ideias e dos afetos, que alentam o escritor e o encorajam à publicidade, e se perscrutam os impulsos que o levariam a preterir o português e o latim pelo castelhano, é-se levado a crer que Pedro Nunes pretendeu acima de tudo que a sua obra se divulgasse em Espanha. Interessavam-no os leitores castelhanos e não os letrados de qualquer país, — “porque nam careça della aquella nação tanto nossa vizinha, com a qual tanto communicamos, e tanta amizade temos”, escreveu. Pensava, pois, em Espanha e não na opinião sábia internacional, considerando “por mui justo premio aproveitarem-se delle os que desta Arte carecem”, e o fato, com ser compreensível, é estranho em quem pensou predominantemente problemas estreitamente relacionados com a conjuntura científica portuguesa, recorreu ao latim para dar universalidade às suas ideias e esteve ao corrente da bibliografia europeia relativa aos assuntos que mais profunda e continuadamente lhe ocuparam o espírito.

Não é, porventura, extraordinário que em 1566 imprimisse em Basileia a tradução latina, amplamente acrescentada, dos dois tratados sobre a navegação que em 1537 aditara ao Tratado da Sphera, e no ano seguinte publicasse em Antuérpia, na língua castelhana, cuja difusão, com ser por então intensa e vasta, se não pode comparar à da língua latina?

Na dedicatória e no posfácio do Libro de Algebra insiste na afirmação de que este livro já estava composto “ha muchos allos (...) auiendolo ya cõmunicado a muchos, que del sacaron lo que bien les parescio” antes que aparecesse a público em Nuremberga, em 1545, o Artis rnagnx sive de Regulis algebraicis liber unus, de Jerónimo Cardano (1501-1576). Não esconde o que deve à Summa de Luca Paccioli, mas também não dissimula a pretensão da prioridade da sua Algebra na bibliografia peninsular. Uma preocupação desta natureza em quem sempre foram briosos os escrúpulos da altivez e da dignidade científica, expressa por demais no fastígio do renome, aos 65 anos, não deve ser levada à conta de vaidade. Brotou, sem dúvida, de um fato que ressoou na consciência de Pedro Nunes, obrigando-o a marcar com clareza a sua posição.

Só conjeturalmente se pode arriscar uma opinião Temos, não obstante, por muito verosímil que o amor-próprio de Pedro Nunes se revoltou com a petulância do proémio que Marco Aurel antepôs ao Libro primero de Aritmetica algebratica, en el qual se contiene el Arte mercantivol, con otras muchas Regias dei Arte menor, y la Regia de ia cosa: sin la qual no se podra entender el decimo de Euclides, ni otros muchos primores, assi en Aritmetica como en Geometria. Com-: puesto, ordenado y hecho imprimir por Marco Aurel, natural Aleman: Intitulado Despertador de ingenios, Valencia, 1552.

É que nesta obra, obscura e atrasada mas que cronologicamente, sob o ponto de vista tipográfico, era a primeira que em Espanha dava a público algumas noções elementares de álgebra, o autor, alemão de nascença e que ensinava em Valência, não hesitou em escrever isto: “Considerando, amado Lector, la gran falta que en estos Reynos de España ay de la sciencia Mathematica, por ser cila tan necessaria a los sabias verdaderos, me he atreuido de escriuir esta obra; (...) Assi que por ser cosia nueva lo que trato, y jamas vista, ni declarada, y podrá ser, que ni aun entendida, ni imprimida en Esparia, me he atreuldo a trataria, y escriuirla en lengua tan por entero repugnante a la mia”.

Olhos fitos na verdade histórica e animado pelo sentimento da dignidade científica, o insigne matemático contemporâneo Sr. J. Rey Pastor não hesitou em dizer que “nuestro asombro se trueca en indignación, ai leer este cruel proémio”; não seria, porventura, incomparavelmente mais rude a repulsa de Pedro Nunes, para quem tais linhas teriam o travo da injustiça, além de provocarem o asco inerente às produções da ignorância desaforada?


?>
Vamos corrigir esse problema