Descartes e a cultura filosófica portuguesa

É a filosofia insatisfeito e contínuo recrear de problemas e de soluções, senão dos próprios objetos do filosofar.

A quem lhe contempla o decurso, desde as ingénuas surpresas conceptuais dos jónios às tensas especulações críticas dos modernos, parece que a sua história é o espetáculo da instabilidade dos juízos e da volubilidade das conceções. Dir-se-ia que o ceticismo é a única lição lógica que o seu desenvolvimento temporal ensina, e deste conselho foi Descartes, quando num passo do Discurso do Método, que hoje comemoramos, rememorou a história pregressa da filosofia, na qual não encontrava « aucune chose dont on ne dispute, et par consequente qui ne soit douteuse », para dela recolher apenas novas e mais profundas razões de aperceber a própria ignorância.

Encerra este juízo as mais árduas dificuldades, assim sobre a essência da atividade filosófica como sobre a possibilidade teórica da história da filosofia, dada a feição polémica de numerosas conceções e a descontinuidade dos objetos de reflexão; por elas compreendemos que Descartes, perante o desacordo das opiniões, quase sempre, indício de erro, ou, pelo menos, de enunciação viciosa dos problemas, houvesse procurado na evidência matemática o paradigma do critério da verdade. No entanto, força é reconhecer que só as meditações filosóficas logram, com as criações artísticas, o privilégio admirável de serem acrónicas e atópicas, isto é, de convidarem à reflexão atual, independentemente da época e da latitude em que hajam nascido.

Estão sujeitas, sem dúvida, aos eclipes da estimativa e às viragens da crítica, portanto, às sinuosidades da alternativa da glória e do olvido, isto é, ao aplauso atrativo ou ao silêncio desdenhoso; porém em si mesmas, a filosofia e a arte não conhecem o pretérito e o concluso, porque nenhum problema filosófico está resolvido, como não é definitiva e terminal nenhuma forma de expressão artística.

Para se orientar na investigação original, não é indispensável ao sábio o conhecimento histórico da ciência que professa; salvo o conhecimento dos erros demonstrados e das tentativas votadas ao insucesso, o pecúlio restante da história da ciência, apesar de útil, e, mais do que útil, consolador, é como que uma necrópole onde só lateja a vibração bruxuleante e frágil da ânsia de saber. Ao contrário dos resultados da investigação científica, sempre restritos e parcelares, as criações filosóficas, que raras vezes são um resultado embora frequentemente sejam uma resultante, brotam de incitações problemáticas universalistas, e quando os respetivos pensamentos nucleares nascem com a sigla da originalidade desde logo quedam sobranceiras às revoluções subversivas ou exaltadoras. Geradas numa mente quase sempre solitária, graças à generalidade do seu objeto, ao rigor lógico da sua desenvolução, à coerência e consistência das suas sínteses, como que logram a universalidade intemporal.

De todas as grandes conceções filosóficas se pode predicar, mais ou menos, a excelsa prerrogativa da intemporalidade, e, portanto, a sua contemporaneidade virtual; de poucas, porém, tão ampla e retamente como das lucubrações cartesianas. Dir-se-ia que René Descartes é um filósofo vivo; volvidos quase três séculos sobre o seu trânsito, sucedem-se sem quebranto as apologias e as censuras, as narrativas e as interpretações, as quais não só no-lo recordam, senão que parecem trazê-lo ao nosso convívio para participar das atuais querelas e parçarias. Duvido se deva designar-se de imortalidade a persistência na memória dos homens, porque a dúvida, com trágica inquietação, revolve as mais profundas e aliciantes aspirações do ser humano; mas não hesito em reconhecer na atualidade de Descartes o único prémio que a Humanidade pode tributar ao fulgor da inteligência.

Num rasgo heroico de audácia mental e de imaginação pujante ultrapassou Giordano Bruno os acanhados limites do Mundo para nos brindar com as maravilhas da infinidade do Universo, sepultou Galileu uma física incompatível com a clareza dos números e com a humana necessidade de utilização e domínio das brutas forças naturais, teorizou Francis Bacon um Novo Organon da experiência e da indução científica — contudo, só a Descartes cabe a glória de haver instaurado a filosofia moderna, se por filosofia moderna entendermos a independência da razão, submissa apenas à coerência lógica e à consistência dos fatos, a criação de uma problemática relacionada com a nova ciência da Natureza, a reflexão prévia do valor e possibilidades do conhecimento. Sei que pode avaliar-se, com o socorro de copiosos fatos e de subtis argumentos, a larga distância que separa Descartes do cartesianismo, e não é total desacerto sustentar que se Descartes teorizou a dúvida, não a praticou exemplarmente, se inculcou o livre exame, não o consentiu aos sequazes, se proclamou o idealismo epistemológico, quase professou o realismo trivial, e se anunciou a ciência moderna, não libertou o saber de antigos prejuízos nem da vã ambição de explicar o Universo pela dialética de urna dedução em marcha.

Tudo isto se pode opinar, e não falta quem o haja admitido; no entanto, por muito que se subtraia a Descartes para se aditar ao cartesianismo, sempre quedará o impulso inicial e o germe vitalizaste.

São enigmáticos, sem dúvida, os momentos decisivos da vida de Descartes, como nos são recônditos os íntimos recessos dos seus intentos; mas era acaso possível a assombrosa jornada do século XVII, que é o século do Génio, sem o bordão do método, ou, por outras palavras, da segurança da razão na sua própria marcha?

No alvorecer do espírito moderno ninguém duvidou tão profunda e conscientemente como Descartes, mas também ninguém mais resolutamente do que ele restituiu à mente tão sólidas garantias para confiar em si própria. Não careciam os génios de Espinosa, de Malebranche, e mesmo o de Leibniz, da lição cartesiana; no entanto, sem Descartes outro teria sido o ritmo dos seus pensamentos e sem a problemática cartesiana não teriam sido porventura diversas as criações das suas lucubrações metafísicas?

Pode censurar-se a Descartes a precipitação com que estabeleceu os princípios da Física sem aguardar os ensinamentos da experiência e, indo mais longe, pode dissentir-se até da sua própria conceção da ciência; mas não foi acaso a mente cartesiana que promoveu uma viragem radical na mentalidade europeia, operando a imensa revolução de substituir a física baseada na metafísica, na espécie a de Aristóteles, pela metafísica baseada numa física? É certo que os Principia de Newton sepultaram a física cartesiana, até então resistente aos assaltos da argúcia dialética, mas nunca poderá esquecer-se que o rasgo cartesiano impulsionou, a um tempo, a desenvolução da metafísica moderna e certo rumo da investigação física.

Quando se contempla a decisão heroica de restituir a confiança à razão, quase se é levado a crer que ela brotou espontânea e cresceu solitariamente. Não repudiou Descartes a tradição, não pensou a sua mente problemas novos e não repensou problemas antigos com plena independência, não consignou à ciência a finalidade inaudita de atingir pela análise matemática o princípio constitutivo da matéria, para depois reconstituir o real dedutivamente, à maneira dos geómetras? Proles sine matre creata, disse o físico Biot da geometria cartesiana, e tal juízo, como acentuou Bergson, parece à primeira vista extensivo a todo o complexo da filosofia cartesiana. Com efeito, bastaria a leitura do Discurso do Método, que é também uma autobiografia mental, aliás de discutível exatidão e sinceridade, para inculcar esta opinião; simplesmente, a nossa consciência atual, saturada de historicismo, não tolera nem compreende as revoluções súbitas, sem precedentes nem razões.


?>
Vamos corrigir esse problema