Descartes e a cultura filosófica portuguesa

A criação filosófica, mormente quando ambiciona uma visão totalitária e sistemática, brota sempre de um pensamento polémico, isto é, de uma reação mais ou menos patente e declarada contra certas formas de pensar, contra certas ideias ou valores, contra certas conceções.

Todos os escritos cartesianos manifestam esta atitude polémica; nenhum, porém, tão clara e compendiosamente como os capítulos do Tratado da Luz, tratado que, como é sabido, constituía a primeira parte do livro intitulado Monde, de cuja publicação Descartes desistiu quando teve conhecimento, em fins de 1633, da condenação de Galileu. Eliminando, por falso, o postulado tradicional da objetividade das qualidades sensíveis, sobre o qual se edificara a física aristotélica, Descartes empreendeu nessa obra um verdadeiro requisitório contra a escolástica. Assim, critica-lhe as noções das qualidades reais, das formas substanciais, do movimento, do corpo sólido, do «horror do vácuo», dos corpos raros, dos elementos, da forma dos corpos mistos, dos espaços imaginários, de matéria primeira, e o valor das experiências invocadas para provar que o Mundo é pleno; sobre estas ruínas imensas edificava Descartes, matematicamente, — a sua glória e também seu principal defeito uma conceção mecânica do Universo, na qual, como objetou espirituosamente Pascal, Deus intervinha apenas para dar o inicial «piparote”no Mundo.

O simples estabelecimento deste fato inculca que o pensamento cartesiano é produto de profunda elaboração, a qual, partindo da filosofia e da ciência tradicionais da Escola, se desprendeu mais tarde delas, talvez subitamente, talvez progressivamente, em condições e termos que constituem e constituirão sempre tema de difícil explicação.

Se a diversidade de juízos críticos é prova do valor e da originalidade de um pensador, a filosofia cartesiana conhece, como poucas, este prémio do sucesso. Não abundam, desde a própria era do filósofo, pelo menos a partir do momento em que ele divulgou as Meditações Metafísicas, os livros sobre a marcha do pensamento de Descartes, sobre as fontes da sua filosofia, sobre o significado de certos lances biográficos e de certas teorias ou reflexões? Não assistimos, porventura, nos nossos dias, à contenda sobre a significação última do pensamento cartesiano, ao intento supremo que inspira e unifica a sua obra, que uns nos dizem ser o de um apologeta em demanda de nova conciliação da razão e da fé, outros o de um filósofo, e outros ainda o de um homem de ciência?.

Em tão vasto e complexo pensamento não faltam, pois, temas dignos de meditação e de aplauso; porém, desviando-me talvez dos fins desta sessão e abusando sem dúvida da vossa benevolência, ousarei substituir a reflexão sobre o significado e alcance do Discurso do Método, que se me afigura ser fundamentalmente uma introdução à ciência, pela observação analítica da possível influência da nossa literatura filosófica na génese de algumas conceções cartesianas.

Descartes não conviveu com portugueses, nem Portugal se encontrou nos caminhos que o conduziram ao conhecimento do «grandlivre du ‘monde». As suas epístolas, os seus biógrafos, os documentos da sua época, assim portugueses como franceses, não descobrem, que eu saiba, o mais ligeiro indício de trato pessoal com compatriotas nossos. A falta de trato direto, poderia supor-se que, indiretamente, recolhera alguns informes do nosso País por intermédio de João Gillot, engenheiro militar que desde 1641 esteve ao serviço de D. João IV, e que Descartes considerava «le premier et presque le seul disciple que j'aie jamais eu et le meilleur esprit pour les mathématiques”, e « celuy du monde qui sçait le plus de ma Methode”.        

João Gillot fora contratado pelo rei de Portugal para as obras de fortificação militar, por indicação de Constantyn Huyghens, que no caso atendera ao pedido de Descartes; ignora-se, porém, se o discípulo, ao que parece pouco grato, informou o seu mestre e protetor do que vira e observara em Portugal, assim como desconhecemos o teor das conversações que, por esta época, o primeiro Marquês de Nisa e o filho segundo do Prior do Crato, D. Cristóvão, mantiveram em Paris com o P.Mersenne, na própria cela do famoso e infatigável correspondente de Descartes tão solícito sempre em lhe comunicar o que se dizia, pensava e fazia nos meios intelectuais.    

Não viajou, pois, Descartes por Portugal, nem, ao que parece, lidou com portugueses; não obstante, cedo travou conhecimento com alguns livros escritos por compatriotas nossos, cujas páginas concorreram para a sua formação intelectual, e, quiçá, para a elaboração do próprio sistema cartesiano.

Se me permitis, estabelecerei primeiramente os fatos na sua nudeza, para depois os cingir na respetiva significação e alcance.

Em 30 de Setembro de 1640 Descartes preparava a impressão das Meditações Metafísicas; receando o atrevimento de críticos ignorantes, diligenciava embaraçá-los com o prestígio inibitório da aprovação dos doutos e influentes, « puisque la vérité est si peu estimée estant seule”. Contava, em especial, com as objeções hostis de alguns jesuítas, e porque queria estar preparado para as refutar carecia de se precaver « en posture pour les attendre”, e de « retire un peu leur Philosophie, ce que ie n'ay pas fait depuis 20 ans, affin de voir si elle me semblera maintenant meilleure qu'elle ne faisoit autrefois. Et pour cet effect, ie vous prie de me mander les noms des autheurs qui ont escrit des cours de Philosophie et qui sont le plus suiuis par eux, et s'ils en ont quelques nouueaux depuis 20 ans; ie ne me souuiens plus que des Conimbres, Toeltus et Ribius. le voudrois bien aussy sçavoir s'il y a quelqu'un qui fait un abregé de toute la Philosophie de l'Escole, et qui soit suiui; car cela m'espargneroit le temps de Tire leurs gros liures”.

Desconhecemos de momento a resposta de Mersenne, a qual, no entanto, se pode conjeturar; sabemos, porém, que decorridos dois meses, em 3 de Dezembro de 1640, Descartes comunicava ao seu famoso correspondente ter visto « la Philosophie de Monsieur de Raconis, mais elle est bien moins propre à mon dessein que celle du Pere Eustache; et pour les Conimbres, ils sont trop longs; mais ie souhaiterois bien de bon cceur, qu'ils eussent écrit aussi brièvement que l'autre”, isto é, Raconis.

Apura-se claramente deste trato epistolar que Descartes lera na juventude as obras dos Conimbricenses, a quem designa com pouco rigor verbal les Conimbres; ao folheá-las vinte anos mais tarde, já na plena posse do seu sistema filosófico e das suas ideias científicas, ou, se quiserdes, da sua teoria unitária e sistemática da ciência, observava que elas eram demasiado extensas, lamentando que os Conimbricenses não houvessem escrito compendiosamente como outros escolásticos.

Adivinha-se neste juízo o cansaço de quem lera muitas páginas inúteis, mas sente-se também a satisfação de quem encontrara ideias, que lucrariam com a concisão.

Se da confidência epistolar passarmos agora para a narrativa pública daquelas passagens do Discurso do Método que rememoram a escolaridade juvenil, chegaremos à mesma conclusão, isto é, ao contato com os escolásticos do Colégio das Artes de Coimbra.

Durante oito anos consecutivos, pelo menos, de 1606 a 1614, isto é, dos 8 aos 16 anos, ou, como é mais verosímil, durante quase nove anos, de 1606 a 1615, frequentou Descartes ininterruptamente o Colégio que a Companhia de Jesus estabelecera havia dois anos em La Flèche, no Anjou. Mediante as prescrições do Ratio studiorum, código vigente em todos os colégios da Companhia, e a evocação retrospetiva do Discurso do Método, podemos acompanhar a escolaridade de Descartes «pernovem fere annos” no seu desenvolvimento cronológico e pedagógico; assim, estudou primeiramente as «línguas», «fábulas» e «histórias», cursadas respetivamente nas classes 6.a, 5.a e 4.a de Gramática; depois a «poesia”e a «eloquência», nas classes de Humanidades, 3.°, 2f, e Retórica, e por fim a Filosofia.


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