Descartes e a cultura filosófica portuguesa

Desenvolvia-se o ensino da filosofia durante três anos: no primeiro, consagrado especialmente à Lógica, estudou a Isagoge de Porfírio às Categorias e o Organon, ou mais precisamente, as Categorias, o Da interpretação, os 5 primeiros livros dos Primeiros Analíticos, os Segundos Analíticos, nos quais aprendeu a teoria aristotélica da demonstração e algumas noções dos Elencos Sofísticos, e os 8 livros dos Tópicos; no segundo ano, dedicado à Física e em parte à Matemática, estudou o moço colegial os 8 livros da Física, os 4 livros Do Céu e do Mundo e o 1.° livro do Da Geração; e finalmente no terceiro ano, consagrado à Metafísica, o Da Metafísica.

Basta esta sumária indicação do plano de estudos do Colégio de La Flèche na época em que Descartes o frequentou para se nos tornar compreensível aquele passo da epístola a Mersenne, de 30 de Setembro de 1640, em que o filósofo das Meditações Metafísicas confessava desconhecer os cursos de filosofia publicados pelos jesuítas nos últimos vinte anos, recordando-se apenas dos livros dos Conimbricenses, de Toleto e de Rúbio.

É, pois, na escolaridade juvenil que Descartes situa a leitura dos Conimbricenses, e, como é óbvio, foi em La Flèche que ele teve o primeiro contato com os famosos comentadores de Aristóteles.

Lograram os Commentarii Collegii Conimbricensis extraordinário acolhimento, ao qual se associaram os próprios países da Contra-Reforma; iniciados por Pedro da Fonseca, por antonomásia o Aristóteles Conimbricense, continuados por Manuel de Góis, Cosme de Magalhães, Baltasar Alvares e Sebastião do Couto, constituem estes comentários à obra do Estagirita uma das mais famosas empresas coletivas em que se empenhou a inteligência e o saber de portugueses. Assombram pela vastidão do saber e pela sagacidade da interpretação, são ainda hoje fanal da exegese do pensamento aristotélico; porém estes méritos indiscutíveis não os salvaram do insucesso filosófico. Nasceram anacrónicos; a fidelidade à exausta problemática da Escola e a mal contida hostilidade ao ideal da ciência moderna, que então despontava, privava-os da sedução das ideias prospetivas, embora os distinguisse perduravelmente com a estela dos grandes repositórios eruditos.

Na gloriosa controvérsia que deu ser à ciência moderna, os Conimbricenses arvoraram resolutamente o estandarte da tradição. Os seus comentários foram, quiçá, o canto do cisne do ideal científico do Estagirita; mas porque representavam, de certo modo, a filosofia oficial da Companhia de Jesus, então no fastígio da atividade docente, logo granjearam extraordinária reputação, tanto mais que, a um tempo, as suas páginas densas patenteavam aos sequazes da tradição do arsenal da escolástica e exibiam aos arautos da modernidade a exposição acabada da problemática filosófica e do ideal científico, que urgia substituir.

Não lhes faltou, por isso, o sucesso de repetidas edições, em diversos prelos e datas; no entanto, foi nos Colégios da Companhia que encontraram o mais fiel e perseverante acatamento.

La Flèche não se furtou à sua influência; se é duvidoso que o P.e Estêvão Noël, o mestre de Descartes  os seguiu obedientemente, temos por seguro que o moço estudante lhes meditou as páginas quando o desejo de saber o incitou a desenvolver e a completar as noções mais ou menos sumárias ministradas nas aulas. Ao certo, sabemos apenas que na classe de Lógica estudou as Instituições Dialéticas, de Pedro da Fonseca, livro adotado em La Flèche, em cujo burgo teve em 1609 uma edição para uso dos colegiais; contudo, todas as razões coincidem em nos levarem ao convencimento de que só no Colégio poderia ter estudado o Curso dos Conimbricenses. A vida movimentada, senão dispersiva, que Descartes levou até ao estabelecimento da residência na Holanda cremos que exclui qualquer outra hipótese, embora não possamos esquecer que esta é a quadra da vida do filósofo mais cheia de obscuridades e de incertezas.

Não confessou Descartes, na carta de 12 de Setembro de 1638, que era muito útil ter estudado o curso integral de filosofia, pela forma como era ensinada nos colégios da Companhia, antes de elevar o espírito à boa maneira de ser sábio? Não são estas palavras a contraprova do que vimos dizendo e a confissão de que algo devia a sua formação mental ao ensino filosófico de La Flèche?

Não deve nunca perder-se de vista a desenvoltura com que Descartes talhou numerosas pedras para o jazigo da ciência escolástica, nem o repúdio com que se desembaraçou da filosofia da Escola, a qual, a seu juízo, incidia sobre o verosímil que não sobre certezas; mas é patente que estes anos de escolaridade não podiam ter sido inúteis na formação e na marcha ulterior da sua inteligência. Que é a maturidade, na maioria dos casos, senão a realização de sonhos e aspirações juvenis? A cronologia mais rigorosa do passo autobiográfico do Discurso do Método no qual Descartes se declara feliz por se lhe haverem deparado na juventude certos caminhos que o conduziram a considerações e máximas, com as quais formou um método que lhe permitia aumentar gradualmente os seus conhecimentos, situa no Colégio de La Flèche o germe inconsciente da famosa intuição, em 10 de Novembro de 1619, dos «fundamentos da ciência admirável», cujo arroubo, de enlevo místico, lhe descobriu a visão prospetiva do alcance da matemática e da unidade das ciências, a cuja reconstrução total, pelo menos às da quantidade contínua, iria votar a sua mente privilegiada.

Sob a aparente singeleza, o apuramento deste fato comporta o juízo, de extraordinário alcance, de haver sido em La Flèche que Descartes começou a emancipar-se da filosofia escolástica. Chegados a este momento da sua formação intelectual patenteiam-se-nos dois caminhos para a investigação — a via nova, aquela que conduziu Descartes à originalidade de um sistema metafísico e ao atrevimento de uma explicação científica, falsa, mas grandiosa, e a via antiqua, ou seja a persistência de velhas doutrinas de que o seu espírito se não despojou totalmente e o acompanharam na decidida e heroica empresa de instaurador da filosofia moderna.

Como é óbvio, perante o objetivo que me propus, será a via antiqua que eu terei de trilhar, por forma que se me descubram na jornada cartesiana os vestígios dos seus precursores lusitanos.

Durante o curso filosófico de La Flèche estudou Descartes sucessivamente a Lógica, a Física e a Metafísica. Empreendeu mais tarde, autodidaticamente, a revisão das ideias recebidas e a conquista de ideias novas, mas a ordem a que obedeceram a aquisição de conhecimentos e o encadeamento das lucubrações parece ter sido a da escolaridade, até ao momento em que a conceção da unidade da ciência lhe ditou a construção de um sistema, no qual «toute la Philosophie est comme un arbre dont les racines sont la Métaphysique, le trone est la Physique, et les branches qui sortent de ce trone sont toutes les autres sciences, qui se réduisent à trois principales, à savoir la Médecine, la Mécanique et la Morale».

Sem embargo de tão estrutural reorganização do saber, a reforma cartesiana manteve as partes em que tradicionalmente se dividia a filosofia, embora lhes alterasse a essência e a ordem respetivas, e este fato como que nos adverte que a construção cartesiana, com ser nova e profunda, não foi tão extensa que não utilizasse algumas pedras do velho edifício da Escolástica.


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