Descartes e a cultura filosófica portuguesa

Em outra conceção cartesiana, como disse, na paradoxal teoria do automatismo dos animais, de há muito se lhe atribui também uma filiação peninsular.

Foi o bispo de Avranches, Pedro Daniel Huet, quem, na Censura philosophiae cartesianas, publicada em 1689, pela primeira vez filiou esta conceção na Antoniana Margarita, de Gomes Pereira, saída a público quarenta e dois anos antes do nascimento de Descartes. Na sua acre Censura, verdadeiro catálogo dos pretensos plágios de Descartes, afirmou textualmente o famoso bispo que «ninguém defendeu com mais calor nem ensinou mais claramente esta doutrina que Gomes Pereira». Bayle repetiu a afirmação e desde então tornou-se trivial. No entanto, aliás sem conceder decisivo crédito à declaração de Descartes de que desconhecia a Antoniana Margarita, julgo que a cultura peninsular, e digo peninsular pois é incerta a nacionalidade de Gomes Pereira, não pode decorar-se com esta influência.

Se cotejo os textos, verifico que o pensamento de Descartes e de Gomes Pereira não coincidem rigorosamente, e se examino, na sua estrutura lógica, a conceção cartesiana, reconheço que o animal-máquina era a consequência necessária dos pressupostos do sistema de Descartes, isto é, do bissubstancialismo radical que opunha essencialmente a alma ao corpo, o pensamento inextenso à matéria extensa, incapaz de pensar e sujeita apenas às leis do movimento. Se dos pressupostos desço aos fundamentos peculiares, noto que Descartes justificou a singular teoria com dois argumentos, que se não encontram na Antoniana Margarita, a saber, a incapacidade dos animais se exprimirem e de modificarem as ações segundo as circunstâncias.        

Sem me despedir do assunto, cheguei por agora ao termo desta temerária e aventurosa indagação da possível influência da literatura filosófica lusitana no pensamento de Descartes. Depois das horas consumidas no meticuloso labor, orientado umas vezes pela investigação dos que me precederam, guiado outras pelo fio de associações que me ocorreram, não me atrevo ao remate de uma conclusão definitiva.               

Na maior parte, são quase probatórios os paralelos e contatos que apontei; não são porém rigorosamente apodíticos. Se o fossem, nem por isso diminuiriam a glória e a originalidade de Descartes, cuja mente meditativa e sistemática fundiu no crisol de pujantíssimo vigor lógico a poeira de conhecimentos dispersos, que a lição dos livros e do Mundo, dos homens e das coisas, lhe havia ministrado.             

No grande edifício cartesiano não realçam nem nos maravilham o relevo das pedras e o labor do canteiro; é o génio do arquiteto que nos assombra, e esse génio pertence exclusivamente a Descartes, que, para honra e benefício do género humano, ensinou a submeter as lucubrações científicas e filosóficas ao império dos ditames da Razão.             


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