Capítulo VI - Teoria do Amor

35. A expressão que mais intimamente denota o pensamento de Leão Hebreu e mais amplamente sintetiza a matéria dos Diálogos é sem dúvida — filografia universal, ou teoria do amor, na aceção mais vasta e elevada, desde o amor divino ao amor no universo, do amor da inteligência ao amor das coisas vis. É esta teoria o centro dos Diálogos, para o qual convergem ou donde emanam, consoante o acaso da conversa ou as necessidades da discussão, todas as doutrinas até agora expostas. Simplificada de tudo o que a prepara ou condiciona, pode agora seguir-se a marcha dos Diálogos.

1) ESSÊNCIA DO AMOR

36. Filon tendo confessado a Sofia que o conhecê-la lhe causa amor e desejo, Sofia responde-lhe que estes dois sentimentos são contrários, sendo, quiçá, por paixão, que os aproxima.

É este o primeiro tema do Diálogo I, cuja discussão conduz Filon à análise dos conceitos de amor e desejo e das suas relações. Numa superficial observação psicológica amor e desejo surgem como momentos sucessivos, autónomos e irredutíveis, da mesma afeção. Existente um objeto, o espírito deseja-o pela utilidade ou prazer que dele auferirá, e só depois de possuído é que, em rigor, poderá amá-lo. Amor e desejo são portanto afeções contrárias: aquele supõe a posse do objeto, este a sua privação. Esta irredutibilidade, porém, é duma falsidade flagrante, porque se o desejo não fosse acompanhado de amor poderia desejar-se o odiado, o que é contraditório, além de que ambos pressupõem a objetividade das coisas, tanto na realidade, como no conhecimento.

Na realidade, porque o desejo só pode recair sobre o existente já conhecido por bom, pois, como diz Aristóteles, bom é «aquilo que todos desejam»; no conhecimento, porque se o juízo verdadeiro gera a honestidade do pensamento e consequentemente das ações, o erro causa os maus desejos, donde nascem todos os vícios humanos. Estes dois sentimentos pressupõem, portanto, o ser e os seus dois «títulos» (passiones) — verdade e bondade; mas apesar deste elemento comum não se identificam, nem o amor é um género do qual o desejo seja espécie, porque se é admissível que tudo o que se deseja se ama, já não o é a contrária. É para o provar que Leão Hebreu classifica o amor, atendendo à natureza do seu objeto, em útil, deleitável e honesto. No útil, as coisas são amadas depois de possuídas, mas no deleitável e honesto são-no já anteriormente. Há uma diferença profunda entre o útil e deleitável: naquele goza-se a posse, neste o amor consiste numa incitação da fantasia para o objeto do deleite. Intermédio, o amor deleitável é mais universal que o útil, mas menos que o honesto, cujo objeto é a virtude e a sabedoria. Com este tem de comum, o útil, o desejo inicial e o amor posterior à posse, e o deleitável, o desejo conexo com o amor; mas divergem, respetivamente, em que naquele, as coisas não possuídas não são amadas, e neste, o amor cessa com a satisfação dos sentidos, especialmente o tato e o gosto. Demais estes amores estão hierarquizados, isto é, o útil procura-se para o deleitável, porque mediante os bens podem gozar-se os deleites da natureza humana, e este, por sua vez, tem a sua finalidade no sustento do corpo, instrumento da alma intelectiva nas ações honestas e virtuosas.

Apesar de grandes, estas diferenças nada são em face da superioridade do objeto do amor honesto: a virtude e a sabedoria. Nos outros amores, a virtude, como vimos, está no justo meio, pois os extremos afundam a alma, colocando-a a par da matéria; mas no honesto, o amor e desejo são tanto mais louváveis quanto mais excessivos e insaciáveis, e só a limitação é viciosa. O indivíduo que fosse privado deste amor não mereceria o nome de homem, porque o bem, se por um lado, como diz o «Filósofo», é «o que todos os homens desejam», por outro, como sabedoria e virtude que é, converte «o nosso frágil corpo em instrumento de angélica espiritualidade». O supremo amor, que conduz diretamente à beatitude, vimo-lo já (33), é a união contemplativa da nossa inteligência com o intelecto ativo, que Leão Hebreu identifica com Deus, pois é o princípio, meio e fim da sabedoria e das ações virtuosas. O amor deleitável, gerado pelo desejo, conduz à saciedade e aborrecimento; enquanto que o amor honesto gera o desejo e faz apetecer a união corpórea e espiritual, por forma que os amantes se convertam um no outro, confundindo-se num único ser. O verdadeiro amor é, portanto, pai do desejo e filho da razão e do conhecimento.

Feita esta análise, há já os elementos para uma ampla e rigorosa definição do desejo e do amor: aquele, é uma «afeção voluntária do indivíduo visando a possuir uma coisa conhecida por boa e que lhe falta»; «este, a afeção voluntária de gozar com união a coisa conhecida por boa».

2) UNIVERSALIDADE DO AMOR

37. Parece à primeira vista que deveria agora investigar-se a origem do amor; mas a verdade é que sendo a sua universalidade mais clara e patente que a origem, a discussão deve logicamente marchar do mais para o menos conhecido. Por isso, o Diálogo II versa a comunidade ou universalidade do amor.  

Que o amor existe nos homens é evidente, e qualquer o pode comprovar; mas existirá também no universo, fora do homem? Leão Hebreu afirma-o resolutamente e desenvolvendo um dos conceitos de Erixímaco no Banquete, apresenta numa luxuriante riqueza de imagens as suas manifestações no mundo terrestre ou inferior, celeste e espiritual. No mundo inferior, da geração e corrupção, existem três formas de amor: natural, sensível e racional. O amor natural verifica-se nos corpos insensíveis, como os elementos e seus compostos, e consiste no conhecimento do fim, para o qual são solicitados por uma inclinação natural. O amor sensível, ou mais propriamente apetite, existe nos animais irracionais, e por ele demandam o conveniente e evitam o prejudicial. Finalmente, e homem possui o amor racional, precedido e acompanhado do conhecimento e do apetite voluntário. Diferentes na forma e intensidade, estes amores hierarquizam-se, subordinando-se os inferiores ao superior, por forma que se concentram no homem. Que esta inclinação natural dos corpos insensíveis e apetite dos irracionais sejam verdadeiro amor prova-o o princípio aristotélico: «a ciência dos contrários é a mesma», porque se em tudo existe o ódio —, os animais fogem ao danoso e os corpos pesados odeiam o alto, como os leves, o baixo —, em tudo deve existir o amor. É certo que não possuem, como o homem, nem sentidos, nem razão que lhes oriente o conhecimento; mas encontram na natureza e na alma do mundo guias seguros que os encaminham «com um reto e infalível conhecimento das coisas naturais».

Este infalível conhecimento deriva da imanência do intelecto divino; porque, «como a seta demanda retamente o alvo, não pela sua própria cognição, mas pela cognição do atirador, [saettante], pelo qual é dirigida, assim estes corpos inferiores demandam o seu lugar próprio e fim, não pelo próprio conhecimento, mas pela reta cognição do primeiro motor, infusa na alma do mundo e na universal natureza das coisas inferiores». É pois como irradiação da inteligência divina que o amor existe no universo, e universal como é deve ter formas comuns ao homem racional e insensível pedra, embora na escala dos seres atinja sempre um novo grau de perfeição. Esta comunidade, consequência da imanência divina, encontra-a Leão Hebreu nas causas do amor recíproco, pois são as mesmas em todo o mundo inferior.

Assim, no homem, como nos animais ou corpos inorgânicos, o amor é suscitado pela homogeneidade ou semelhança da espécie, comércio habitual, (companhia), desejo da geração, continuidade da geração ou relação de pais a filhos e benefício ou reconhecimento.

No homem existem estas causas, porque o superior contém sempre o inferior, porém mais intensas pela razão; mas além delas possui privativamente a simpatia e a virtude moral e intelectual. Por esta, desperta a estima e granjeia o amor dos semelhantes; com a simpatia, ou «conformidade de natureza e compleição», origina «à primeira vista» a amizade. Porque se darão estes últimos efeitos? Os astrólogos explicam-nos dizendo que a simpatia deriva da «semelhança e proporcional posição dos planetas e signos celestiais no nascimento» dos homens, assim como a antipatia da desproporcional posição.

Existirá também o amor nos corpos celestiais e nas inteligências? Sem dúvida alguma, e até dum modo mais eminente. O céu tem para com a terra e matéria primeira um verdadeiro amor matrimonial, «pelo qual se une o universo corpóreo e se adorna e sustenta o Mundo», e entre os corpos celestes vive o mais belo e harmonioso amor. A primeira vista parecerá impossível este amor recíproco, visto que não se copulam; mas a verdade é que a sua harmonia e concordância, tanto mais bela quanto é certo que os seus movimentos são diversos pela direção e velocidade, só pode explicar-se pelo amor. Não possuem as cinco causas comuns, mas em compensação têm mais requintadas as duas causas que elevam o homem na escala dos seres do mundo inferior: a conformidade de natureza (simpatia) e a virtude. Aquela faz com que concorram, apesar de diferentes, para «uma união de fim» e se convertam num organismo perfeito; esta, suscita em todos os seres o reconhecimento pelo benefício que deles recebem.

As inteligências têm o mais elevado e liberal amor, porque beneficiam o universo e as coisas inferiores amando-as desejam alcançar a perfeição que lhes falta. Nesta grandiosa conceção, mais ampla que a platónica, o amor é a causa do ser do mundo e por ele o inferior se une com o superior, o espiritual com o corpóreo, o eterno com o corruptível, o universo com o seu criador.

 Unindo o diverso, aproximando o distante, o amor é um espírito que vivifica e penetra o Mundo, o laço que une todo o universo.

3) ORIGEM DO AMOR

38. É no Diálogo III que Leão Hebreu desenvolve numa maior riqueza de complexidade e detalhe o seu pensamento filosófico. Para completarmos a sua análise resta-nos ainda o problema da origem do amor, cuja investigação o leva a desdobrar e desenvolver sucessivamente nestas cinco questões: se o amor nasceu, quando, onde, de quem e porque nasceu.

1) Pelo que dissemos nos números anteriores é evidente a existência do amor —, tão evidente que qualquer de nós a pode testemunhar, surpreendendo-o em si próprio. Nesta parte do Diálogo III volta Leão Hebreu a definir o amor e a precisar as suas relações com o desejo, sintetizando e esclarecendo o que dissera no Diálogo I, embora desenvolva um ponto ou outro. O que o leitor encontra de novo é a análise do amor divino, a propósito do qual aduz e discute as definições do amor propostas por Platão e Aristóteles.

Para o fundador da Academia o amor era desejo de formosura, isto é, desejo de união com uma pessoa ou coisa formosa para a possuir. Neste conceito o amor pressupõe sempre a privação e portanto não existe em Deus: daí o chamar-lhe um grande demónio (génio). Leão Hebreu, conquanto platónico, rejeita esta definição por incompleta, porque o amor, em geral, abraça o bom em toda a sua universalidade, seja ou não formoso, útil, deleitável ou honesto e daí umas vezes recair sobre coisas boas de que o amante está privado, outras sobre o que falta à coisa amada. O primeiro é o amor humano; o segundo, o amor divino, pelo qual Deus ama as suas criaturas para as tornar perfeitas.

Dentre os antigos, Aristóteles foi quem definiu o amor em toda a sua comunidade, pois na Politica [sie] diz que o amor «não é outra coisa que querer bem a alguém, seja para si próprio, seja para os outros».

Louva Leão Hebreu esta definição, porque baseando-a no bem, ao contrário de Platão que a fundamentou no belo, Aristóteles universalizou o conceito de amor, estendendo-o do homem a Deus. Com ter referido estas opiniões, que unicamente esclarecem a essência do amor, Leão Hebreu não resolveu ainda o problema proposto, isto é, se o amor é ingénito ou foi produzido. Abordando-o, após esta introdução, resolutamente afirma que foi produzido e «que de nenhum modo pode ser primeiro em eternidade, antes é necessário conceder que há outros» anteriores em causa, porque tanto o amante como o objeto amado precedem o amor. Este é a resultante da fusão do objeto amado e do amante, para a qual aquele concorre como agente ou pai, e este como matéria passiva, isto é, como mãe. O belo, o divino, existe não no amante, mas no objeto amado, que lhe é superior. Acontece, porém, que o superior ama por vezes o inferior; mas neste caso falta ao superior uma perfeição que ele encontra no objeto inferior, e nesta relação este é-lhe superior. Só em Deus, que é a perfeição absoluta, o amor não sofre nenhuma privação, pois o amor que dedica às criaturas não é mais que a vontade de lhes aumentar a perfeição e a felicidade. O amor, portanto, nasceu, porque em todo o universo criado o objeto amado precede ao amante.

2) Quando nasceu o amor? Teria sido produzido ab eterno, ou teve princípio, e neste caso, no momento da criação ou num período posterior? É para responder a estas questões que Leão Hebreu discute os três sistemas — aristotélico, platónico e fideísta — sobre a origem do universo.               

Para Leão Hebreu o primeiro amor é indiscutivelmente o amor de Deus para consigo, isto é, o amor de Deus conhecendo e querendo para com Deus a suprema beleza e bondade, e este é eterno, ingénito, porque além de Deus ser eterno, nele se fundem, como dizem os peripatéticos,                o intelecto, o inteligente e o inteligível. O segundo amor, ou mais rigorosamente, o primeiro amor nascido, é o de Deus para o universo, e neste distingue o nosso filósofo três espécies: o amor desirativo de Deus à criação do Mundo, isto é, o amor divino aos pais do universo, intelecto primeiro (sabedoria) e caos, ambos gerados por Deus; o amor recíproco destes pais do mundo e, finalmente, o amor mútuo de todas as partes do universo.

Se o leitor tem presente o que dissemos quando expusemos o problema da criação (23) facilmente concluirá que a resposta a este problema diverge com a solução adotada. Para o Estagirita, estes três últimos amores são eternos; para Platão, só o primeiro é eterno, nascendo os outros com a criação, e para os crentes, os três amores nasceram sucessivamente com a criação divina. Fervoroso adepto do judaísmo, a sua adesão vai para esta última solução. Prová-la, seria repetir o que acima dissemos, bastando-nos acentuar agora que se naquele problema o seu pensamento não era preciso, neste francamente o denunciou, ao esclarecer a sua interlocutora, que, como fiel, deve acreditar «que o amor divino extrínseco e o mundano intrínseco, os primeiros depois de Deus, nasceram quando o Mundo foi por ele criado do nada».

3) E óbvio que o amor de Deus a si próprio e o extrínseco ao universo criado estão por natureza fora do problema — onde nasceu o amor. Restrito ao amor do universo, e mais rigorosamente, ao amor mútuo das suas partes, deve logicamente investigar-se se nasceu no mundo inferior da geração e corrupção, se no celestial ou espiritual. Patenteando logo o seu pensamento, Leão Hebreu afirma que este amor nasceu no mundo angélico ou das inteligências puras, e que delas se comunicou ao mundo celeste ou esferas e ao mundo sublunar. Duas dificuldades surgem. A primeira é que Platão, chamando ao amor um demónio, exclui-o do mundo angélico, porque não é lógico que o demónio, inferior aos anjos, influa nestes como influi nos homens, a quem é superior. Esta razão, porém, não colhe, porque Platão apenas investigou no Banquete o princípio do amor humano e não de todo o universo, enquanto que Leão Hebreu o considera como «inerência intelectual à suma formosura». A segunda é bem mais complexa: como pode o amor do universo, material por vezes, proceder do mundo angélico, espiritual? Por inteligências ou anjos compreende Leão Hebreu, com a tradição medieval, os motores dos corpos celestes e portanto o problema proposto reduz-se a saber se estas inteligências participam ou não do amor divino. Para Avicena, Algazel e Maimónides (26), o amor, como as inteligências motoras e os orbes, emana gradualmente do anterior, e por consequência existirá mais perfeito na primeira inteligência, que imediatamente goza da união divina, que no intelecto humano, último grau da processão.

Averroes, conquanto afirme que todas as inteligências, e consequentemente o amor, derivam direta e imediatamente de Deus, reconhece também que a formosura e amor divino não se imprimem com a mesma perfeição em todas as inteligências. Uma imagem torna transparentes estas doutrinas e as suas diferenças. Para os primeiros, a ação divina é como «a impressão do sol num claro cristal, deste, noutro menos claro e assim sucessivamente até ao entendimento humano», enquanto que para o comentador essa impressão faz-se «imediatamente em muitos espelhos, um menos claro que o outro, gradualmente, desde a primeira inteligência até ao entendimento humano» Diferentes, estas conceções harmonizam-se todavia em reconhecer que o amor e desejo se difundem gradualmente no mundo intelectual, desde a inteligência primeira ao intelecto humano (possível) e no corpóreo, desde o primeiro orbe à matéria primeira. Com ter invocado estas opiniões, julga Leão Hebreu suficientemente provado que o amor nasceu no mundo inteligível, donde se comunicou ao universo material. ---

4) A quarta questão — «de quem nasceu o amor, quais e quantos foram os seus progenitores» —, conduz Leão Hebreu à interpretação de algumas fábulas dos antigos poetas e a dois mitos do Banquete.

Limitadíssimo interesse e pouco valor para a elucidação do problema tem o saber como os velhos poetas gregos e latinos fabularam do Amor e de Cupido; mas o mesmo se não dirá da interpretação dos mitos de Aristófanes — cuja intervenção no festim de Agáton, ao lado de Sócrates, é tão misteriosa quanto difícil de explicar —, e de Sócrates, no Banquete.

a) Platão, «em nome de Aristófanes», «fabulando também», refere que «no princípio dos homens» havia «um terceiro género, isto é, nem só homens, nem só mulheres», a que chamam andrógino, que era macho e fêmea conjuntamente e que assim como o homem depende do sol, e a mulher da terra, dependia da lua, participante do sol e da terra». Foi desta raça, forte e soberba, que nasceram insolentes e arrogantes para escalar os céus e combater os deuses. Como possuí-los? Pergunta Júpiter à assembleia dos deuses. Se desfizermos a raça humana, que será do culto e sacrifícios que nos oferecem?

Talvez o meio mais eficaz seja diminuir-lhes as forças, dividindo-os em dois, tanto mais que assim aumentaremos os servidores. Feita a divisão, cada metade aspirava a reintegrar-se com a metade perdida, e mal se encontravam juntavam-se com tal ardor que a morte parecia ser o desfecho desta união. Daí o amor natural do género humano, pelo qual procura reaver a natureza primitiva e gozar a antiga perfeição. «Nasceu, pois, conclui Leão Hebreu, o amor humano da divisão do homem e os seus progenitores foram as duas metades, o varão e a fêmea, para obterem a reintegração». Esta «formosa e adornada» fábula oculta veladamente «uma linda filosofia», que Platão foi buscar à «sagrada história de Moisés da criação dos primeiros pais humanos, Adão e Eva», ampliando-a e revestindo-a «conforme à oratória grega, fazendo nisto uma mistura desordenada de coisas hebraicas». A descrição bíblica do primeiro homem, «macho e fêmea conjuntamente» inspirou ao fundador da Academia a conceção do andrógino, do mesmo modo que bebeu no Génesis (II, 24) a sua divisão e o consequente nascimento do amor, «que é a inclinação que fica a cada uma das metades a reintegrar-se com a outra e a ser uma em carne». Há aparentemente diferenças entre o relato bíblico e o discurso de Aristófanes, pois naquele o pecado é posterior à divisão, enquanto que no Banquete é anterior e causa da divisão.             

E dizemos aparentemente, porque para Leão Hebreu, além dos dois relatos coincidirem no sentido alegórico, divisão e pecado são inseparáveis e convertíveis, e por consequência tanto importa dizer que a divisão originou o pecado, como o pecado a divisão. O alegórico do relato bíblico é que o homem quando foi criado no estado de beatitude e posto no paraíso não estava unido corporalmente à mulher, mas «em essência humana e inclinação mental, isto é, [unidos] ambos à beata contemplação divina e não um ao outro para deleite e coito carnal...». A mulher, enganada pela serpente, comendo o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, isto é, o deleite carnal, bom na aparência, mas mau na existência e fim, causou o pecado, porque afastou o homem da vida eterna e pura inclinação espiritual em que vivia. A queda significa, portanto, a passagem da vida espiritual para a corpórea.           

No paraíso, os homens, sendo imortais, não tinham necessidade de gerar, porque neles vivia eternamente a essência e espécie humana; com o pecado, porém, foi necessária a geração, que, como diz Aristóteles, é o remédio da mortalidade.

Assim, neste relato «está como que num espelho a vida de todos os homens, o seu bem e o seu mal, e conhecerão a via que se deve fugir e a que se deve seguir para chegar à eterna bem-aventurança, onde jamais se morre».

Compreendida a intenção de Moisés é fácil desvendar o sentido alegórico da «fábula platónica».

«Diz que os homens primeiro eram dobrados, meio machos e meio fêmeas, unidos num corpo, isto é, que a parte intelectual e a sensualidade corpórea estavam unidas no homem (...), de tal maneira que a parte corpórea feminina se aquietava em tudo à intelectual masculina sem alguma divisão ou resistência. E diz que a natureza masculina vem do sol, a feminina da terra e o andrógino, composto de ambos, da lua, porque, como te disse, o sol é simulacro do entendimento, a terra da parte corpórea e a lua da alma, que contém conjuntamente o intelectual e o corpóreo... O andrógino tendo forças excessivas veio combater contra os deuses, isto é, que estando retirado completamente à parte intelectual e à vida contemplativa sem resistência nem impedimento da parte corpórea vinha quase a ser igual aos anjos e às inteligências apartadas (...). Pelo que Júpiter consultando o remédio os fez dividir em dois, macho e fêmea, não sendo estas duas metades o entendimento infuso e o engenho, como alguns imaginam, mas a parte intelectual masculina e a corpórea feminina (...), porque se o homem fosse só especulativo viria a ser do género dos anjos e espíritos, quando a intenção do Criador era que fosse homem com alternado entendimento e corpo (...). Esta é a peleja contra os deuses que Platão refere e pela qual os fez dividir, isto é, fez com que o corpo oferecesse alguma resistência ao entendimento e que este se inclinasse aos cuidados necessários do corpo (...), para que a vida fosse humana e não angélica. Desta divisão nasceu o amor, porque toda a metade deseja e ama a reintegração com a outra metade, isto é, o entendimento não cuidaria jamais do corpo se não fosse pelo amor que tem ao seu companheiro (metade) corpóreo feminino, nem o corpo se governaria pelo entendimento se não fosse o amor e afeição ao seu consorte e meio masculino (...). O fim da divisão em parte intelectual e corpórea foi para que satisfazendo-se com os deleites corpóreos se sustentassem no indivíduo e gerassem o seu semelhante para perpétua conservação da espécie. Admoestou-os depois que não pecassem, porque cada metade do homem viria a dividir-se (...), dando a entender que se a parte do entendimento não está unida, mas divisa com imperfeitos conhecimentos e conselhos fica imperfeita e débil a natureza, porque a união é o que a faz vigorosa e perfeita... E assim também a parte corpórea quando está unida em buscar o necessário é perfeita, e quando dividida pela ganância de coisas supérfluas e insaciáveis, fica imperfeita e frágil. De modo que com esta divisão de cada uma das partes vem a faltar ao homem não só aquela primeira e intelectual união do andrógino, mas também a do ser médio, segundo se requer na vida humana, e fica meio de meio seguindo a vida lasciva e pecatória. É isto o que significa alegoricamente a fábula platónica; as outras particularidades que refere sobre a divisão, a consulta e outras semelhantes são ornamentos, para a tornar mais formosa e verosímil».

O valor deste mito platónico é descrever a génese dos amores e desejos humanos, de os distribuir em três espécies — intelectual, como era o amor no paraíso, corpóreo, moderado e honesto, e corpóreo, excessivo e desonesto —, fundar a moralidade, porque quando o entendimento propende para o corpo, deseja e ama coisas corpóreas moderada, honesta ou desonestamente, da mesma forma que o corpo amando e atingindo o intelecto alcança retos conhecimentos e hábitos intelectuais eternos.

Com esta interpretação Leão Hebreu deturpa o mito, hebraizando Platão e, simultaneamente, platonizando Moisés, e de par revela-se o sincrético filósofo judeu, que desejando perseverar na crença a alarga, integrando-lhe elementos novos.

b) Sócrates, «em nome da fada Diotima», sua «mestra nos conhecimentos pertencentes ao amor», no discurso do Banquete, atribuiu outra origem ao amor «de todo o grande mundo corpóreo criado». À pergunta de Sócrates: A que pais deve o amor a sua origem? Diotima responde por um dos mais belos mitos, onde o génio de Platão fundiu, numa subtil harmonia, a imagem com o raciocínio, a crença popular com o próprio pensamento.

Quando Vénus nasceu, relata Diotima, houve entre os deuses um festim, a que assistiu Poros (A abundância), filho de Métis (A prudência). Terminado o banquete, Pénia (A pobreza) aproxima-se e, quedando à porta, mendiga alguns restos. Entretanto, Poros, ébrio de néctar, abandona os companheiros e entrando no jardim de Júpiter acomete-o um sono profundo. Vendo-o, Pénia, arrastada pela penúria, imagina então conceber um filho de Poros e deitando-se-lhe junto em breve ficava a mãe do amor.

Com esta, compartilha o amor a pobreza e á permanente necessidade, e longe de ser belo e delicado, como se pensa geralmente, é magro, sujo, descalço, sem domicílio, dormindo à la belle étoile. Mas do pai, pelo contrário, herdou a ousadia, a perseverança, a curiosidade sempre viva, a sedução encantadora, o raciocínio capcioso. De sua natureza não é mortal nem imortal e no mesmo dia floresce cheio de vida, declina e extingue-se, para reviver ainda este ciclo. Tudo o que adquire lhe foge, oscilando constantemente da pobreza à riqueza, da riqueza à pobreza. A igual distância da sabedoria completa e da ignorância absoluta, o amor é filósofo, porque o que é a filosofia senão a aspiração incessante duma ciência imperfeita para a luz infinita? É, ao nascimento que deve esta contraditória natureza, porque filho dum pai sábio e rico, também o é duma mãe ignorante e pobre.

Tal é o mito na sua essência. Como o interpretou Leão Hebreu?

«Alguns dizem entender-se pelo nascimento de Vénus a influência da inteligência, primeiro no anjo e depois na alma do Mundo... Mas nós outros não curaremos de alegorias tão abstratas, tão sem termo e desproporcionadas ao literal fabuloso. A própria Diotima (...) declarou que por Vénus entendia a formosura, donde afirmar que o amor ama o formoso porque nasceu aquando à formosa Vénus. Significa também nascer o amor quando nasceu a formosura (...) pois todo o amor é desejo de formosura».

Pénia simboliza «a necessidade da matéria potencial (...) com o desejo de participar das formas formosas e perfeições divinas e angélicas» e Poros, «o entendimento influente, embriagado de néctar, isto é, cheio de ideias e formas divinas...». O sono no jardim de Júpiter significa «que adormeceu o seu vigilante conhecimento, aplicando-o ao mundo corpóreo do movimento e geração». «Quando o entendimento, filho do Conselho, que é o sumo Deus, quis comunicar-se ao mundo inferior (...), a necessitada Pénia aproximou-se dele, isto é, a potência desejosa da perfeição e conceção (...), e de ambos nasceu o amor, porque o amor diz perfeição, não em ato mas em potência. E assim o entendimento no corpo gerável é forma potencial e entendimento possível; como entendimento conhece as coisas formosas, e por ser em potência falta-lhe a posse delas e deseja a formosura atual. E isto o que significa, quando diz que é meio entre o formoso e o feio, porque o entendimento possível e as formas materiais são médias entre a matéria totalmente informe e as formas apartadas e inteligências atuais. Por isto Diotima igualmente dedica ao amor as condições e invenções enganadoras da matéria corpórea, necessitada, mortal, variável e imperfeita (...), e as condições intelectuais e perfeitas do abundante entendimento (...), fazendo-o filosofante e não sábio, porque o entendimento possível deseja a sabedoria, tendo-a só em potência; visto que não é sábio em ato, como o entendimento angélico. Também nos mostrou Diotima nesta fábula que o entendimento possível participa do entendimento agente, ou em ato angélico, ou divino e que a possibilidade não lhe vem da sua própria natureza intelectual, como alguns creem, mas apenas da companhia da necessitada matéria privada de todo o ato e reduzida a pura potência. Ensinou-nos que o primeiro produto do amor no herado é a gerada formosura e os pais o conhecimento da formosura (pai) e a falta dela (mãe), porque tudo o que se ama e se deseja é necessário que anteriormente seja conhecido por formoso e falte ou possa faltar... Assim, ó Sofia, conheces que o pai do amor universal do mundo inferior é o conhecimento da formosura e a mãe a falta dela».

Bastam-nos estes extratos para surpreender a interpretação de Leão Hebreu. Será original e correta? Este mito, ou mais rigorosamente alegoria, como o prova o confronto com o Lysis, que através dos tempos suscitou uma riquíssima literatura exegética, desde Plutarco, Plotino, Orígenes, Eusébio, até ao recente Robin, nunca teve, porém, tão grande fortuna como no Renascimento. Se Leão Hebreu não tem assim a prioridade, glória que nesta época cabe a Ficino e aos seus companheiros da Academia Platónica, terá ao menos o mérito de ter apercebido o verdadeiro sentido platónico?

Parece-nos que não. Identificando Pénia com a matéria desejosa de formas e Poros com o entendimento pleno de ideias e formas divinas, Leão Hebreu viciou-o com velhas interpretações já de si viciadas, e restringindo a origem do amor ao conhecimento e desejo do belo não notou que em Platão o belo é uma manifestação do bem.

Com esta interpretação o mito perde a harmonia e a graça que o génio platónico lhe imprimiu, para vestir uma nebulosa roupagem, tecida com o misticismo do intérprete e conceções medievais sobre o intelecto.

Este juízo torna-o claro Leão Hebreu expondo a sua própria opinião.

c) Desenvolvendo um momento do pensamento platónico, embora declare pôr de parte «as ficções dos poetas e opiniões de outros», considera como pai do amor a beleza e a mãe o seu conhecimento conjunto com a falta. A formosura é o princípio do amor, mas é também meio, pela «sua reverberação no amante e fim na fruição e união deste com o princípio amado».

Nesta conceção, a beleza é o conceito supremo e anterior, não só ao amor das criaturas, quer corpóreas, celestes, espirituais ou angélicas, como ao próprio amor de Deus para as criaturas, porque este não é mais do que a vontade das criaturas atingirem a sua formosura do Criador, a cuja imagem foram criadas.

5) O fim do amor, no homem, como no universo, é o deleite que o amante encontra na coisa amada (dilettatione dell'amante nella cosa amata). No homem, é evidente esta finalidade, quer, seguindo Aristóteles, se trate do amor útil, deleitável ou honesto, quer, adotando a divisão platónica, do amor bestial, humano ou divino; mas no universo?

Todos os seres se hierarquizam em duas ordens: uma, descendente ou produtiva, de Deus até à matéria primeira; outra, ascendente ou redutiva, desta até Deus. Na ordem, ou mais rigorosamente, semicírculo descendente, a Deus sucede em primeiro lugar a natureza angélica, depois o mundo celestial, desde «o céu empíreo» até à lua, e finalmente, a matéria primeira, o mais distante do Criador, porque se este é ato  puro, ela é pura potência. O semicírculo ascendente, começa na matéria primeira e subindo desta aos elementos, aos mistos, plantas, animais, homem, e neste da alma vegetativa, à sensitiva, à intelectual e aos inteligíveis, do menor ao mais elevado, volta a reintegrar-se no princípio primeiro, criador de tudo. Assim também o amor acompanha estes semicírculos de «ascenso» e de «discenso». Tendo a sua origem «no pai do universo, dele sucessivamente vem descendo paternalmente... do mais formoso para o menos formoso» até à matéria primeira, que deseja as formas dos elementos, estes por seu turno as dos mistos e assim ordenadamente até ao desejo de união do amor intelectual do sumo inteligível divino com o último amor da suma formosura.

O amor, portanto, foi criado não só para formar e adornar o universo, mas também para o elevar à suprema felicidade e ao sumo deleite, reduzindo-o a Deus, seu criador.

É este conceito a síntese dos Diálogos e com ele afirma Leão Hebreu a sua originalidade. Concebendo o amor como inerência intelectual à suprema formosura, se historicamente se distanciou, como já reconheceu Menéndez y Pelayo, dos comentadores vulgares do Simposion, filosoficamente como que redimia o universo da transcendência, porque se este foi criado por Deus, a Deus volve espiritualizado. O amor é a lei universal, que anima tudo, unifica os contrários, faz viver a natureza, liga na inteligência o inteligível e o sensível, liberta a alma e, por sua eficiência, o universal funde-se com o individual, o intelecto divino com a mente humana.


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