Capítulo I - Influência dos Diálogos de Amor

40. Bastaria a difusão dos Diálogos no século XVI, já pelas numerosas edições italianas, já pelas sucessivas traduções, para provar que os seus conceitos por algum título influíram na riquíssima literatura dum erotismo mais ou menos platónico e místico que se lhe seguiu. Acompanhar esta influência seria fazer um estudo literário que, apesar de interessante — diremos mesmo necessário, pois é muito pouco o que se tem dito, salvo em Espanha —, afastar-nos-ia do nosso propósito ; por isso, limitaremos a nossa investigação unicamente à especulação filosófica. Será tão real como é naquele género literário? Bonilla y San Martin, na monumental memória — Luis Vives y la Filosofia del Renacimiento — cotejando os Diálogos com o capítulo do De anima et vita em que o humanista-filósofo valenciano (1492-1540) determina a natureza do amor, declara que «resulta tan evidente afinidad, que tenemos vehementes sospechas de que Vives hubiera leído la bellísima obra de su compatriota, y aun aprovechado algunos de sus más notables pensamientos».

E na verdade os pontos de contato são impressionantes. Para Vives, o amor é apetite de gozar o bem, unindo-se com ele o sujeito (appetitus fruendi bono, id est, se illi adiungendi) e para Leão Hebreu afeição voluntária de gozar com união a coisa estimada por boa; para um, como para outro, o amor do bem está na razão direta do grau em que se conhece, e finalmente, são muito próximas as causas do amor que ambos indicam. Poderá Leão Hebreu considerar-se como fonte de Vives? Partilhando o juízo daquele ilustre historiador da filosofia, a quem a cultura peninsular tanto deve, parece-nos arriscado afirmá-lo positivamente, porque, apesar de serem semelhantes as expressões e terem o mesmo sentido, não deve esquecer-se que a Academia inspirou quase todos os teóricos do amor no Renascimento, quaisquer que fossem as suas escolas e tendências.

As investigações desta natureza facilmente decaem em fantasia, porque se é sempre fácil aproximar textos, quer se trate dum filósofo, quer dum poeta, é quase sempre difícil determinar se as expressões assumem ou não valores diferentes. Parece-nos ser este o caso de Solmi, cuja obra aliás é de realíssimo valor, quando afirma que Patrizzi (1529-1597) extraiu dos Diálogos «il concetto fondamentale della sua Nova de Universis philosophia, che la luce è qualcosa d'intermedio fra lo spirituale e il corporale».

Em Patrizzi, a luz, quer se considere como intermediária do incorpóreo e corpóreo, quer como imagem e simulacro de ambos, como parece mais certo, tem na economia do seu pensamento uma extraordinária importância, determinando mesmo o problema inicial da filosofia; em Leão Hebreu, pelo contrário, é um incidente nos Diálogos, limitando-se a afirmar que a verdadeira luz é intelectual, sendo a luz solar uma forma espiritual. Pode haver uma ou outra frase semelhante, mas no fundo com vária derivação e significado. Se há um filósofo do Renascimento, no sentido tragicamente humano da palavra, cujo espírito recorde Leão Hebreu, é sem dúvida Giordano Bruno (1548-1600).            

É inegável a coexistência de expressões e distinções  idênticas, de definições próximas, de conceitos semelhantes  e sobretudo palpita no     Spaccio de la Bestia Trionfante e no De gli Eroici Furori, como nos Diálogos, a mesma exuberância de imagens, a mesma aspiração a Deus e efusão do divino no universo. Será isto assaz para provar uma dependência?

O pensamento do Nolano é tão original, tão cheio de vida, espontaneidade e frescura, que os Diálogos, cuja leitura certamente fez, dada a sua grande difusão, teriam contribuído num coeficiente mínimo para a sua formação ou desenvolvimento. Demais, ambos a bem dizer, beberam nas mesmas fontes e natural era que estas origens comuns produzissem efeitos semelhantes, tanto mais que um como outro sentiam quase tão intensamente a angústia dos mesmos problemas.

Zimmels pretende que Bacon (1561-1626) assimilou alguns dos mitos dos Diálogos, cuja leitura, demais, lhe teriam talvez inspirado a distinção da visão direta, reflexa e retracta de Deus. Não sabemos em que se baseia o reputado monografista de Leão Hebreu; mas por nossa parte nada encontrámos nem na Instauratio Magna, nem no Novum Organum, nem nos Sermones fideles seu interiora rerum, nem no De sapientia veterum, que confirme este juízo. Nesta última obra, Bacon interpreta, é certo, vários mitos, mas com independência, num sentido e atitude radicalmente diversas da de Leão Hebreu. Demais ele próprio confessa, no

Prefácio, que «sem testemunhar desprezo pelos que nos precederam nesta carreira, não receamos dizer que as produções deste género até agora publicadas se reduzem a quase nada; e ainda que escritores muito laboriosos tenham tratado amplamente esta matéria, o género caiu numa espécie de aviltamento, porque as primeiras tentativas para explicar as fábulas mais antigas foram feitas por homens pouco esclarecidos (...) que, aplicando estas fábulas a opiniões vulgares, omitiram o verdadeiro fim e só afloraram este importante assunto». Se porventura conheceu os Diálogos, o que é muito duvidoso, Bacon certamente contaria Leão Hebreu no número destes deficientes intérpretes.

De todos os filósofos até agora examinados só por induções se pode determinar se conheceram ou não a sua obra; mas de Spinoza (1632-1677) não pode haver a menor dúvida, porquanto guardava na sua biblioteca um exemplar.

Teriam os Diálogos influenciado de algum modo o seu pensamento?

Entrevista já por Saisset, aceite com reservas por Zimmels e Ueberweg, afirmada por Couchoud, cabe a glória a Solmi de ter provado definitivamente esta influência, muito embora posteriormente Dunin-Borkowsky, num formidável estudo em que as fontes do spinozismo passam pela fieira da mais profunda erudição e vivo espírito crítico, afirme que o autor da Ética pouco deveu ao seu antigo correligionário.       

A monografia de Solmi não é citada por Borkowsky e daí, talvez, este juízo, porque os factos que aquele diligente investigador coligiu e coordenou falam tão alto que não pode duvidar-se de algumas das suas conclusões. E dizemos algumas, porque Solmi, na ânsia de exaurir, aproxima por vezes textos cujo sentido é diferente nos dois filósofos e que não justificam as suas ilações. Onde se acentua a influência dos Diálogos é no Korte Verhandeling van God, de Mensch, en deszelfs Welstand (Curto Tratado sobre Deus, o homem e a saúde da sua alma) e em grau menor na Ética.    

No Curto Tratado nota-se principalmente no capítulo V da II parte (do Amor); mas não deixam de impressionar os dois Diálogos do capítulo II da I parte —Diálogo entre o entendimento, o amor, a razão e a concupiscência e o II Diálogo entre Erasmo e Teófilo—, cuja forma talvez fosse sugerida pela obra de Leão Hebreu  tanto mais que parece desenvolver entre os quatro interlocutores do I Diálogo o conceito de que o amor é filho da razão e do conhecimento.   

Todavia naquele capítulo é que a influência se manifesta com clareza. O amor é concebido, como nos Diálogos de Leão Hebreu, como teoria universal, definido quase pelos mesmos termos, fundamentado nas mesmas ideias, dividido de modo semelhante e com os mesmos efeitos. Em face deste contexto de expressões e significados idênticos, não pode duvidar-se da dependência da teoria do amor nesta obra juvenil de Spinoza. Sê-lo-á também a Ética?

Nesta obra, síntese do seu pensamento, é um pouco mais difícil surpreender os Diálogos; mas se não partilhamos integralmente as opiniões de Solmi, parece-nos que Leão Hebreu na verdade contribuiu para as teorias do Amor Dei intellectualis, Amor Dei in se ipsum e Amor de Deus para as criaturas. No livro V da Ética distingue-se o Amor Dei do Amor Dei intelectualis. O primeiro importa a eliminação de tudo o que arrasta aos baixos impulsos; o segundo dá a suprema felicidade, a posse da perfeição absoluta, não enquanto a alma ad corpus refertur, mas quatenus ad solam mentem refertur (Ética, V, 20, sch.).

No Amor Dei o espírito está ainda subordinado ao corpo; no Amor intelectualis é intelecto puro, e se naquele o sábio chega a adquirir a virtude, neste a alma conhecendo adequadamente e sub specie aeternitatis e devindo atividade pura, independentemente do corpo e das coisas materiais, participa do absoluto, vivendo em Deus (Ética, V, 30).

Não vamos até ao ponto de afirmar que Spinoza deva imediata e exclusivamente este conceito aos Diálogos; mas o que é incontestável é que Leão Hebreu representa um momento da sua formação, e quiçá lhe sugeriu os próprios termos.

O mesmo diremos do Amor Dei in se ipsum e o Amor de Deus para as criaturas, porque ambos os formularam em termos muito próximos.

Com esta breve comparação, que reduzimos ao fundamental, pois a análise minuciosa do problema exigiria um longo estudo, parece-nos que os Diálogos de Amor, como o Della Causa, principio e uno, e o De Infinito, universo e mondi, de Giordano Bruno, constituem a poesia da vida de Spinoza no período juvenil da sinagoga, e lhe inspiraram o conceito do amor, que tão longe levou, numa crescente depuração. Com ele se fecha o ciclo dos grandes leitores dos Diálogos. Mas belo e feliz fim este, porque se a obra caía no esquecimento, o qual só Schiller tenuamente quebrou, o espírito vivia purificado na Ética — e viverá eternamente enquanto o homem for Homem, enquanto sentir a suprema aspiração que o Amor Dei intellectualis traduz.


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