1) A Teoria de Averroes sobre a matéria primeira em Camões

Na Elegia XI, sobre «A Paixão de Cristo Nosso Senhor», pela primeira vez publicada em 1616 (Rimas, 2. p.) há uma passagem que, apesar de ter sido já posta em relevo, ainda não foi atentamente examinada como merece, pela cultura filosófica que revela, e hipóteses que suscita. É a seguinte:

Olha aquele Deus alto e incriado,

Senhor das coisas todas, que fundou

O céu, a terra, o fogo, o mar irado;

Não do confuso caos, como cuidou

A falsa teologia, e povo escuro,

Que nesta só verdade tanto errou;

Não dos átomos leves d'Epicuro,

Não do fundo Oceano, corno Tales,

Mas só do pensamento casto e puro.

A autenticidade desta Elegia nunca foi posta em dúvida; não assim, porém, a sua originalidade. Faria e Sousa, no ora delirante, ora razoado, e sempre massorético comentário às Rimas, apresentou-a como «traduzida em parte» da De morte Christi Domini lamentatio ad mortales, de Sannazaro; e o erudito Severim de Faria, para acrescentar algo, não teve pejo em escrever, com incrível leviandade, que era uma tradução, embora «elegante».

Os críticos modernos reconhecendo a fonte indicada por Faria e Sousa, opõem algumas restrições. Assim Storck e Edgar Prestage. O insigne camonista alemão, conquanto afirme que «Iene 'lamentatio' und ausserdem Sannazzars Lamentazione sopra il corpo del Redentor del mondo' sind an einigen Stellen mehr oder weniger wörtlich benutzt», reconhece, no entanto, que «ist dessungeachtet unsere Elegie nach Anlage and Durchführung durchaus selbständig». E o ilustre professor da Cadeira Camões da Universidade de Londres, porventura o mais recente editor da Elegia, levando mais longe este conceito, não receia assegurar que esta «work is far from being a mere imitation».

Sem querermos explanar este assunto, que deve integrar-se no estudo geral da influência do poeta da Arcádia em Camões, pensamos que Prestage indicou a verdadeira solução; e pelo que respeita à originalidade da passagem transcrita, consideramo-la indubitável. O polihístor, que nesta Elegia comentou «lo que dize, no hallandolo en Sannazaro», reconhecera-a já; e o paralelo que fizemos  confirmou este juízo. Se a crítica externa estabelece esta opinião, a crítica interna demonstra-a. Bastará para isso ter presente a estância 80 do canto X d'Os Lusíadas:

Vês aqui a grande máquina do mundo

Etérea, e elemental, que fabricada

Assim foi do saber alto, e profundo,

Que é sem princípio, e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo, e sua superfície tão limada,

É Deus, mas o que é Deus ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

Pois nestes dois lugares Camões afirma a criação do Mundo por Deus.

Pela sua formação religiosa e filosófica, Camões não podia ter outra opinião; mas afirmando-a não o fez em termos meramente religiosos, de fé popular, mas com a consciência de quem um dia estudou este assunto de tão larga elaboração doutrinal na patrística, e na escolástica das três religiões: cristã, judaica e maometana. A primeira vista, na Elegia, a criação parece ser limitada aos quatro elementos — «o céu [ar], a terra, o fogo, o mar irado [água]» — que na conceção aristotélica, seguida pelo poeta, formam o mundo da geração e da corrupção; mas no pensamento de Camões a ação divina abrangeu todo o universo, como o prova aquela estância d'Os Lusíadas.

Criado ex-nihilo, isto é, sem dependência duma matéria pré-existente, o Mundo teve um começo no tempo,

Para se namorar do que criou

Te fez Deus, Sacra Fénix, Virgem Pura,

……………………………….

No seu alto conceito te formou

Primeiro que a primeira criatura.

[ Soneto.]

não possuindo anteriormente as criaturas nem essência, nem existência.

Para os escolásticos isto não significa que no pensamento divino «incriado» não houvesse o conhecimento de todas as coisas por criar e as ideias destas coisas. Assim, segundo São Tomás de Aquino, estas ideias são eternas, existindo de toda a eternidade na essência de Deus.

Afirmando a criação como resultante «só do pensamento casto e puro», o Poeta quis dizer que as ideias não eram exemplares absolutos exteriores a Deus, mas existiam no pensamento divino. É ainda o Aquinatense quem desenvolve o mesmo conceito: «Deus non intelligit res secundum ideam extra se existentem, et sic etiam Arist. improbat opinionem Platonis de ideis, secundum quod ponebat eas per se existentes, non in intellectu». (Sum. Theol. 1.ª q. XV, art. 1).    

À expressão «pensamento casto e puro» atribuímos, pois, uma origem escolástica, embora esta seja de procedência augustiniana e, indiretamente, platónica, tornando-se de clara compreensão desde que se relacione com o conceito de               

... Deus alto e incriado

Senhor das coisas todas, que fundou

………………….

Conhecendo segundo a ciência do tempo a máquina do Mundo, como o Dr. Luciano Pereira da Silva na Astronomia dos «Lusíadas», modelo acabado dos estudos de cultura camoniana, demonstrou, o espírito de Camões elevou-se à contemplação da causa de todas as causas, e com a serenidade espiritual dum Spinoza poderia dizer também que tudo considerava «sub specie aeternitatis».

Numa obra inestimável para a história das ideias estéticas inscreveu Francisco de Holanda, na preceptiva cultural do pintor, uns períodos, que dir-se-iam, se a cronologia se não opusesse, um comentário à atitude do Poeta:    

«Há de [o pintor] saber cosmografia para as descrições

da terra, do mar e saber como jaz lançada a grande

máquina do mundo, rodeada da formosa orla do oceano

com tanta gentileza de praias e promontórios; (...) e

assim mesmo mais se erguendo do chão deve de entender

não pouca parte de astrologia e dos movimentos e

círculos da esfera celestial, conhecendo a imensidade dos

céus e quantos são, a grandeza do sol e como é pequena

ante ela a lua e a terra, e assim de todos os outros

planetas e estrelas, ou corpos celestes. E alguma vez lhe

cumprirá em toda a vida passar adiante acima do décimo

e empíreo céu, e como Dionísio Ariopagita contemplar

em casto espírito os nove coros dos angélicos espíritos

e inteligências até chegar ali onde ardendo estão os serafins

ante a primeira fonte e causa da pintura divina, que

é o sumo Deus, porque sem ele até esta altura chegar,

nunca poderá chegar até esta Alteza nem será perfeito

pintor de alguma obra celestial».

Em face desta conceção, opondo-se-lhe ou limitando-a, Camões indicou outras teorias cosmogónicas, como que a sugerir-nos não ter sido apenas o dogma que lhe ditou aqueles versos, mas a crença religiosa robustecida pelo estudo. Essas teorias são:

1) Existência anterior do «confuso caos», defendida:

a) pela «falsa teologia»;

b) pelo «povo escuro, que nesta só verdade tanto errou».

2) Atomismo: «átomos leves de Epicuro».

3) Hilozoísmo de Tales de Mileto, para quem a água é o princípio de todas as coisas: «Não do fundo Oceano, como Tales».

A explicação do atomismo de Epicuro — e particularmente do seu conceito da divindade — e do hilozoísmo do fundador da escola iónica não oferecem dificuldades, embora exija graves leituras e delicadas hipóteses a determinação das fontes que o Poeta utilizou. O assunto impõe, de per si, uma nota; mas para o fim deste estudo bastará apontar o que estas três conceções têm de comum: a pressuposição duma matéria eterna.

Camões não alude expressamente a este pressuposto; mas como é óbvio tinha presente no espírito algumas doutrinas antitéticas da pura criação temporal ex-nihilo. De outra forma, como explicar a referência ao «confuso caos» e, sobretudo, ao «povo escuro»?

Deixando para outro momento a interpretação do que o Poeta considerava «falsa teologia», onde nos parece ver uma alusão à teologia cristã, de tendências heréticas e de origem neoplatónica, atentemos na conceção do «confuso caos», defendida pelo «povo escuro»,

Que nesta só verdade tanto errou.

Foi Platão, no Timeu, quem assegurou à teoria do caos — diversidade confusa e móvel dos materiais sobre os quais incide a operação do demiurgo — uma larga influência histórica, lido e interpretado como foi durante o período helenístico e a Idade Média o comentário de Calcídio a este diálogo. Na essência da sua teoria — embora todo o diálogo seja mítico entendemos que deve ser interpretado positivamente — o Mundo teve começo temporal, mas a matéria-prima existia ab-aeterno. É no fundo este conceito que Ovídio exprime nos primeiros versos das Metamorfoses, tão vernaculamente traduzidos por Castilho:

Antes do mar, da terra e céu, que os cobre,

Um só aspeto a natureza tinha.

Este era o Caos; massa indigesta, rude,

Só peso inerte, e em confusão discorde

 Sementes mil de mil contrárias coisas.

…………………………………….

Ar e Pélago e terra estavam mistos;

As águas eram pois impermeáveis,

Os ares negros, movediça a terra;

Nada em seu próprio ser permanecia:

Isto àquilo se opunha: que num todo

Pugnavam frio e quente, húmido e seco,

Mole e duro, o que é leve, e o que é pesado.

Um Deus, outra mais alta natureza,

À contínua discórdia enfim põe termo.

Com alguns exegetas da «obra dos seis dias», a este dualismo sucede o conceito de caos como matéria informe pré-existente à harmonia do Mundo, mas criado por Deus ex nihilo.

Bastará, para o demonstrar, recorrer à Margarita Philosophica (edição de 1535, p. 693): Informem et preiacentem materiam, quam Greci hylen, chaosque vocaverunt: Moses abyssum dicit. Camões, porém, tinha do caos o conceito platónico e do poeta. Se assim não fosse, tornava-se inexplicável a alusão à «falsa teologia».

A teologia é falsa precisamente por limitar o poder criador de Deus, restringindo-o à organização da máquina do Mundo e harmonia dos elementos. É ainda este dualismo da falsa teologia que nos aparece entre os erros do povo escuro.

Como Petrarca, embora por motivos menos filosóficos, mas mais religiosos e patrióticos, Camões tinha uma visceral antipatia pelo

Torpe Ismaelita, que mistura

As leis, e com preceitos tão viciosos

Na terra estende a seita falsa e impura.

[Elegia XI.]

Em toda a sua obra acusa esta animadversão pelos árabes, ora apelidando-os de torpes, ora chamando «grande curral» à Mauritânia, ora invocando-os como «povo escuro» e «gente baça»:

Olha as Arábias três, que tanta terra

Tomam, todas da gente vaga e baça.

[Lus., X, 100.]

Que erros dos árabes, isto é, do «povo escuro» têm em vista Camões? Faria e Sousa no comentário à Elegia XI não explicou este verso, e o mesmo silêncio guardaram os intérpretes posteriores. Os grandes, pelo menos; porque se há alguma interpretação ou estudo integrado num livro ou perdido nas páginas duma revista ou periódico, tão bem se recatou que o não pudemos achar.

Relembrando, Camões opõe os erros, isto é, uma atitude intelectual, do povo escuro, à criação ex-nihilo. Esta oposição, que se acompanha correlativamente dum aspeto positivo — afirmação da eternidade da matéria —, é na verdade própria do neoplatonismo árabe, que admitiu a criação ab-aeterno; mas Averroes é que, sobretudo, a defendeu como uma interpretação da física aristotélica, e com tanta fortuna, que constituiu uma das características de averroísmo latino, abominado e discutido com vigor por cristãos e judeus, não lhe faltando no próprio Islão opositores como os «mutakallimûm».

Neste longo debate filosófico-teológico, imposto pelo dogma e alimentado pela exegese do relato bíblico da criação, o estudioso não era pela própria satisfação pessoal de pensar, o estudioso do espírito humano colhe apenas um testemunho, de tolerante lição, do eterno dissídio «entre les formules dont se contente la foi populaire et celles que la science indépendante est amenée à se former». Mas o estudioso da cultura camoniana tem de o ter presente nas suas linhas gerais, particularmente no que respeita à teoria de Averroes, pois, em nosso entender, foi no Comentador que o Poeta diretamente pensou.

Para Aristóteles nihil ex nihilo oritur e consequentemente é necessária a existência de alguma coisa donde promanem os fenómenos. Tudo o que devém deve ter um fundamento que permita a passagem dum estado a outro estado, dum contrário ao seu contrário, e persista nesta transição. Este substrato, que persiste e estabelece a relação entre os contrários é a matéria, una, indeterminada e indistinta — a matéria primeira, da qual, pela forma, resulta a matéria segunda.

Este conceito de matéria primeira, eterna, substrato lógico do devir e ideia-limite da máxima indeterminação, não podia deixar de encontrar da parte dos apologistas da criação ex-nihilo o mais categórico repúdio. E assim é que padres, doutores da Igreja e rabinos, por formas e com inspiração doutrinal diversas, concordam neste ponto. A voz que com mais retumbância e firmeza quebrou este acorde, defendendo a teoria da eternidade da matéria primeira, foi Averroes.

Para o Comentador, «a geração é apenas movimento, mas supõe um sujeito. Este sujeito, esta possibilidade universal é a matéria primeira, dotada de recetividade, mas privada de toda a qualidade positiva e apta a receber as mais opostas modificações... Não foi gerada, e é incorruptível». Esta interpretação, que com as teorias da unidade do intelecto ativo, eternidade do tempo e do mundo, constituiu a essência do averroísmo, foi um verdadeiro «Schibboleth» entre crentes e espíritos livres; e, apesar de refutada, perseguida e odiada, gerou duma forma mais ou menos inconsciente e subterrânea as tendências libertinas e racionalistas da Idade Média e da Renascença. Defendendo estas teses, com espírito filosófico sem dúvida, Averroes não negava a existência de Deus nem tão-pouco afirmava a discordância da filosofia com a religião; e o seu pensamento está longe dessa lenda que lhe atribuiu a negação do sobrenatural e da intervenção divina e a explicação das três religiões pela impostura.

Apesar de falso, o averroísmo para os medievais e renascentes era este contrassenso, e embora fosse tido como o símbolo dos desvarios da razão e da impiedade, os seus Commenta gozaram duma difusão escolar extraordinária.

A negação da contingência do Mundo, e, consequentemente, da liberdade do ato criador por a matéria ser coeterna a Deus, era, em especial, uma característica do ensino do Comentador, e a tal ponto que se esqueceram os nomes de Algazel e Avicena, que defenderam conceitos mais ou menos idênticos. Para isso concorreu a condenação eclesiástica, fulminando entre as proposições abomináveis a de Quod mundos est aeternus (decreto do Bispo de Paris, Etienne Tempier, de 1270) e a constância dos escolásticos (São Tomás de Aquino, Alberto Magno, Egídio Romano, etc., etc.), mantendo sempre vivos, pelas suas refutações, o nome e a doutrina de Averroes.

Por isso, o historiador da filosofia não dá pela existência do algazelismo, ou do avicenismo, e em compensação há de sempre prender-lhe o espírito o averroísmo, que, como poucas doutrinas, teve a fortuna de suscitar a crítica, o estro de poetas como Dante e o pincel de pintores (Orcagna, Traini, Gaddi, Memmi, Gozzoli, etc.).

Camões, invocando o povo escuro, tinha, assim, em vista a interpretação de Averroes, e classificando-a de erro,

Que nesta só verdade tanto errou

seguia, afinal, a tradição escolástica, que uniformemente capitulou de erros as principais teses averroístas. Sem descermos a lugares de Alberto Magno, Tomás de Aquino, Raimundo Marti, o título de algumas obras, como o De erroribus philosophorum, dirigido especialmente contra Averroes e atribuído, falsamente, ao que parece, a Egídio Romano, e o Liber de reprobatione errorum Averroes, de Raimundo Lulo, documentam suficientemente a vulgaridade da expressão.

Quando estas provas não abundassem, bastaria o testemunho de Dante, que, apesar de louvar Averroes, «chel gran comento feo» (Inferno, IV, 142) o censura pelos desvarios que cometeu e espalhou sobre o mistério da geração:

Quest'è tal punto

Che piú savio di te già tece errante...

[Purgatório, XXV, 62,3.]

Citando este erro do «povo escuro», contrário à criação ex-nihilo, Camões integrou-o nas doutrinas que explicavam a génese do Mundo pressupondo a existência do caos, no que alterou o pensamento de Averroes. Segundo o Comentador, a matéria primeira, eterna, tem a possibilidade de devir tudo, existindo a forma virtualmente na própria matéria. Este conceito, mais preciso que o de Aristóteles, como o sábio Munk reconheceu, impossibilita não só a criação mas o próprio caos, no sentido do poeta. Mas invocando-o, Camões pretendeu apenas repudiar as opiniões opostas à criação divina, e com ela documentou uma vez mais a assombrosa variedade dos seus conhecimentos.

Como teria Camões conhecido a tese averroísta? Certamente não leu os comentários do intérprete cordovês, nem tão-pouco respigou na obra do Aquinatense, por exemplo, as passagens refutativas — então, como hoje, veneráveis fontes a que só recorriam teólogos e filósofos de profissão e cujas ideias fundamentais estavam, como agora, vulgarizadas em compêndios ou comentários. A despeito dos nossos esforços não encontrámos uma explicação completa; mas será infundado supor que em Coimbra, ao estudar o curso de Artes, como tudo indica que estudou, na aula, o professor explicando a Física ou o livro XII da Metafísica de Aristóteles expusesse esta interpretação, conexa sobretudo com este último livro, se é que o próprio compêndio a não citava? O problema da eternidade da matéria foi na primeira metade do século XVI vivamente discutido, chocando-se, por vezes com violência, as interpretações grega, averroísta e escolástica-cristã do texto do Estagirita, apreciado quase sempre não em si próprio, mas pela autoridade que emprestava. Assim João Francisco Pico, conde de Mirandola (sobrinho) no Examen vanitates doctrinae Gentium, et veritates Christianae disciplinae, desenvolve a opinião «quod non solum veritati, sed et principiis peripateticae philosophiae, assertio de mundi aeternitate repugnet» (cap. 8, livro VI); e entre nós o bispo Jerónimo Osório, no De vera spaientia, a propósito da questão «an mundus a sempiterno tempore constitisset; an aliquod initium temporis habuisset», examina o conceito de matéria primeira, refutando o Estagirita.

É indubitável que estes problemas eram discutidos nas nossas escolas. Nos estatutos de D. Manuel exigia-se para o bacharelato em Artes a frequência, pelo menos, de «três cursos segundo um curso ouvindo texto de lógica e dois de filosofia natural os quais três cursos se farão em três anos».

Sobre o que então constituía a filosofia natural faltam documentos coevos precisos — ao menos do nosso conhecimento; mas temos por probabilíssimo que significava didaticamente o mesmo que significa no regimento do Colégio das Artes de 20 de Maio de 1552: «Os lentes de Artes serão obrigados a ler três anos e meio; no qual tempo lerão toda a lógica de Aristóteles, e todos os Éticos e a Filosofia Natural, que se costuma ler nos cursos, compreendendo os livros De anima e todos os livros a que chamam Parva Naturalia, e da Metafísica ao menos oito livros, em que entrarão o primeiro livro e o duodécimo».

Os estatutos manuelinos não aludem à Metafísica; mas é incompreensível que o legislador, e mais ainda o professor, por mau que fosse, desconhecessem este livro fundamental no estudo da filosofia peripatética, e cujo livro XII imporia a este a referência à interpretação de Averroes. Mas mesmo que assim não fosse, a Física e o De Generatione et corruptione davam-lhe não apenas ensejo, mas como que o compeliam a citá-la. Esta dúvida resolver-se-ia desde que pudéssemos determinar, direta ou indiretamente, os textos aristotélicos seguidos nas escolas do mosteiro de Santa Cruz e na Universidade antes da vinda de André de Gouveia; mas a leitura de alguns livros anteriores a 1542-1543, que pertenceram àquele mosteiro e em parte- se guardam hoje na Biblioteca da Universidade de Coimbra, e o exame do catálogo da sua notável livraria, não dissiparam as nossas interrogações, embora nos permitissem assentar algumas ideias relativas à história filosófica portuguesa.

Com tão lamentável falta de elementos não pode formular-se um juízo incontroverso sobre a forma como Camões adquiriu os conhecimentos histórico-filosóficos que a sua obra acusa. A avidez intelectual do seu espírito, tão nobremente curioso, e a privança com sábios como Garcia d’Orta impõem-se como normas, que o crítico não pode esquecer; mas, neste caso, a escolaridade coimbrã é a hipótese mais provável —tanto mais que, quer antes, quer depois dos Comentários dos Conimbricenses, de certa influência europeia, sempre se procurou refutar no ensino oficial a interpretação de Averroes.               

É o que os documentos, afirmam, confirmados, por outra via, pela insignificante influência do averroísmo paduano, — entre cujos críticos         se deve contar o português Gomes Hispano (de Lisboa), que nos fins do século XV contra Nicoleto Vérnia escreveu a raríssima Questio perutilis de cuiuscumque scientiae subiecto principaliter tum naturalis philosophiae  — e a ausência duma atitude racionalista na nossa cultura de Quinhentos, da qual Camões é o mais formoso, gentil e completo representante.


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