2) O De Vitis et Moribus philosophorum de Diógenes de Laércio em Camões

Até à The History of Philosophy (1655) e sobretudo ao Dictionnaire historique et critique (1697) de Pierre Bayle e à Historia critica philosophice a mundi incunabulis... (1742-1744) de Brucker, quem quisesse esclarecer-se duma forma compendiaria sobre a filosofia helénica tinha que ler o De vitis et moribus philosophorumou Vitae et sententiae philosophorum, de Diógenes de Laércio (II século depois de Cristo). Simples coletânea, por vezes valiosa, de sentenças, anedotas, episódios biográficos e notícias bibliográficas, desprovida de crítica e ainda mais da conexão das doutrinas, nem por isso a obra de Diógenes de Laércio deixa, em certa maneira, de ser uma história filosófica do povo que moldou o pensamento europeu.

Traduzida pelo humanista camaldulense Ambrósio Traversari — admirador do Infante D. Pedro, a quem dedicou a tradução do De Providentia de São João Crisóstomo —, com correções de Benedito Brognolo, e publicada à volta de 1475, as edições e traduções sucedem-se nas duas últimas décadas do século XV e pelos séculos XVI e XVII. Tão grande favor do público e acurado trabalho dos eruditos provam, sem dúvida, a estimação em que era tida; e na verdade alguns dos mais claros e exigentes eruditos da Renascença, como Escalígero, louvavam-lhe o saber, e outros, como Montaigne, lamentavam que a Antiguidade apenas tivesse tido um Diógenes de Laércio...

Os portugueses cultos quinhentistas não desmentem os louvores gerais. Frei Diogo de Murça, reitor da Universidade de Coimbra (1543), de certa influência na cultura nacional, possuía na sua livraria de humanista e teólogo uma edição; e na biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz, que pela sua riqueza devia ser como que o nosso símile, embora modesto, da Biblioteca Columbina de Sevilha, havia também um exemplar da edição de Basileia de 1524.

Se estes factos são já indicativos, muito mais o são as citações, para comprovar as quais bastará recorrer à Imagem da Vida Cristã (1563, 1.a parte), de Frei Heitor Pinto e à Eufrosina (1561), de Jorge Ferreira de Vasconcelos.

Camões, que como Dante tinha o espírito aberto a todas as influências e cujas leituras foram vastas, não podia ter desconhecido este livro. E de facto assim foi, nele colhendo ideias e notícias. É possível que os versos d'Os Lusíadas

... os antigos filósofos que andaram

Tantas terras por ver segredos delas

[V, 23.]

fossem sugeridos pela lembrança das viagens dos filósofos gregos — e dizemos gregos porque as dos latinos não deixaram a impressão das de Platão, Aristóteles e Demócrito, sobretudo —, que Laércio noticia. Mas se esta influência do De vita... philosophorum é duvidosa, não o é de forma alguma em relação a certas referências que na Lírica faz a Diógenes o Cínico, Platão e Aristóteles.

Sobre Diógenes o Cínico teceu Laércio uma narrativa rica de episódios burlescos, por uma forma tão incisiva que alguns dos seus ditos — expressão risível de pensamentos sérios, decaíram em lugares-comuns; e do relato das suas singularidades se gerou em grande parte essa ideia popular do filósofo ser estranho na humanidade... Camões refere-se-lhe em termos verdadeiramente desprezíveis, sentindo-se nitidamente a repulsa pela pessoa e pela doutrina, que julga contraditória. Teria Camões compreendido o Cinismo, de filiação socrática, em que o mais rematado orgulho se aliava à mais piedosa ternura pelas misérias humanas? Cremos bem que não, tanto mais que à incompreensão histórica, que só muito depois se dissipou, se aliava o protesto duma consciência crente em Deus, na Pátria e no destino moral do homem, reabilitado pelo Cristianismo.

O Cínico é invocado duas vezes na oitava (1.a) Sobre o desconcerto do mundo. Na primeira, é tão grande a semelhança com o texto de Diógenes de Laércio que dir-se-ia Camões tê-lo presente ao escrever estes versos:    

Diógenes pisava de Platão

Com seus sórdidos pés o rico estrado,

Mostrando outra mais alta presunção

Em desprezar o fausto tão prezado.

 Diógenes não vês que extremos são

Esses que segues de mais alto estado?

Pois se de desprezar te prezas muito

Já pretendes do mundo fama e fruto.

«Calcans ipsius aliquando strata, praesentibus

 Dionysii amicis quos ille invitaverat,

dixit, Calco Platonis inane studium: ad

quem Plato, Quantum, inquit, o Diogenes,

faustum ostendis, qui nullo tumere fastu

 videri cupis! Alii Diogenem hoc dixisse

ferunt, Calco Platonis fastum, illumque

respondisse, At fastu alho, Diogenes. Porro

Sotion in quarto Successionum refert, hoc

 ipsi Platoni dixisse cynicum».

 [in De vitis et moribus philosoph., liv. VI, seg. 26.]

Faria e Sousa e Storck tiveram conhecimento desta fonte; mas não notaram que Camões admira o filósofo «divino» da Academia e despreza o Cínico de «sórdidos pés». É o que os quatro versos finais confirmam, pois o Poeta apresenta como próprias as admoestações irónicas de Platão. A outra influência encontra-se nos versos seguintes:     

……………………….

O Cínico dirá se porventura

No campo, onde lançado morto estava, De si os cães, ou as aves enxotava.

[Oitava I.]

Cremos ainda ter sido o livro de Laércio que forneceu ao Poeta a matéria destes versos. Faria e Sousa (ob. cit.), não os explica satisfatoriamente, embora nos deixe a impressão de não lhe ser estranha a vida do Cínico escrita pelo narrador grego. E Storck (ob. cit., p. 369), afirma constituírem uma alusão ao relato de Cícero nas Tusculance questiones, liv. I, 43. Bastará porém transcrevê-lo, na parte referente a Diógenes, para mostrar a impossibilidade desta fonte:

«Durior Diogenes, et id quidem sentiens, sed, ut Cynicus, asperius, projici se jussit inhumatum. Tum amici, Volucribusne et feris? Minime vero, inquit; sed bacillum propter me, quo abigam, ponitote. Qui poteris? non enim senties. Quid igitur mihi ferarum laniatus oberit, nihil sentienti?»

Quanto a nós o Poeta sintetizou o largo relato de Diógenes de Laércio sobre a morte do Cínico, porque a referência aos cães só com este lugar se torna explicável:

«Porro de ipsius morte varia habetur opinio Alii dicunt cum polypum canibus partiri voluisset, morsum in pedis nervo, ac ex eo defunctum esse... Advenientibus autem patribus illorum, atque primatibus, ita sedata discordia, sepultum esse juxta portam quae in Isthmum fert. Erigentes autem super illius tumulum columnam, canem desuper ex palide Pario sculpserunt... Est item nostrum de eo epigramma carmine proceleumatico:

Diogenes age loquere, quis exitus ad inferos

Te abstulit? D. Abstulit me canis morsus ferox?»

[Ibid. eo. loc. seg. 76, 77, 78 e 79.]

Aludindo às aves, o Poeta não exprimiria a candura fugindo à sujidade do «sórdido» Diógenes?

Sobre Platão colheu Camões em Laércio o conhecimento das suas viagens, de graves dificuldades na crítica interna do platonismo. E é ainda, nesta Oitava La, tão pessoal, mas provando, sob outro aspeto, a fraca tendência especulativa do Poeta, que o facto se verifica:

…………………………..

Mas pergunto ora a César esforçado,

Ora a Platão divino, que me diga,

Este das muitas terras em que andou,

Aquele de vencê-las, que alcançou?

Dirá Platão: Por ver o Etna e o Nilo Fui a Sicília, a Egipto e outras partes,

 Só por ver e escrever em alto estilo Da natural ciência e muitas artes.

O tempo é breve, e queres consumi-lo,

Platão, todo em trabalhos; e repartes Tão mal de teu estudo as breves horas,

Que, enfim, do falso Febo o filho adoras?

Bastará transcrever duas passagens do De vitis...philosophorum, que não são sucessivas, para comprovar que Camões, se não teve presente este livro ao escrever a Oitava, como é probabilíssimo, possuía uma memória fiel e inteligente, guardando a ideia e os factos salientes que a geraram —, não se esquecendo, outrossim, da máxima horaciana Ars longa, vita brevis. Esses lugares são os seguintes:

a) «Deinde cum esset annorum duodetriginta, ut ait Hermodorus, Megara se ad Euclidem cum aliis aliquot Socraticis contulit. Hinc Cyrenem profectus Theodorum mathematicum audivit; atque finde in Italiam ad Pythagoricos, Philolaum atque Eurytum concessit. Ab his se in AEgyptum ad prophetas recepit, quo et Euripidem ajunt una secum profectum esse...». [Liv. II, seg. 6.]

b) «... Ter aulem navigavit in Siciliam. Primo quidem ut insulam crateresque videret; quo tempore Dionysius Hermocratis filius tyrannus impulit, ut secum loqueretur...». [Ibid. eo. loc., seg. 18.]

Aristóteles é de todos os filósofos o que melhor foi conhecido pelo Poeta. Na sua obra abundam as referências, já claras, já obscuras, a doutrinas do Estagirita, dominando, no entanto, as tocantes à física. A este conhecimento da filosofia, cuja demonstração impõe um estudo especial, Camões juntou o da biografia do filósofo. Nas estrofes abaixo transcritas, ressalta desde logo uma profunda admiração pelo «grão Sábio», não omitindo mesmo o Poeta a antonomásia pela qual a Idade Média e Renascença o citaram: «o filósofo». E é ainda nesta corrente tradicional que Camões o considera como detentor dos «segredos da Sofia», isto é, da ciência, que ensinava «passeando» no Liceu. Nelas alude o Poeta a um dos atos mais impulsivamente sentimentais, e de baixa categoria, do Peripato; e de par moraliza, sem grande elevação,

Que doutos corações não são de ferro.


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