2) O De Vitis et Moribus philosophorum de Diógenes de Laércio em Camões

como que distinguindo a lógica da razão da do sentimento. Essas estrofes são as seguintes:

E o grão Sábio qu'ensina,

Passeando, os segredos da Sofia,

A baixa concubina

Do vil Eunuco Hermia

Aras ergueu, que aos deuses só devia.

Aras ergue a quem ama

O Filósofo insigne namorado;

Dói-se a perpétua fama,

E grita que culpado

Da lesa divindade é acusado.

Já foge donde habita,

Já paga a culpa enorme com desterro.

 Mas, ó grande desdita!

Bem mostra tamanho erro

Que doutos corações não são de ferro.

[Ode X.]

A vida de Aristóteles, de Laércio, foi a fonte destas estrofes, como Faria e Sousa e Storck reconheceram; mas não obstante ser conhecida, não será deslocado transcrever as passagens que diretamente informaram o Poeta. São as seguintes:

«Cum vero reversus esset, scholamque sub alio vidisset, elegisse in Lyceo Deambulationis locum, illicque usque ad certum temporis spatium deambulando cum discipulis philosophari solitum, atque inde Peripateticum appellatum esse.» [Livro V, 2.]

«Ad propositam quaestionem discipulos una exercebat, simul et oratoriam docens. Deinde ad Hermiam eunuchum profectus est, Atarnensium tyrannum, quem alii quidem delicias ac lusus ipsius fuisse tradunt: alii vero sibi affinitate juctum, tradita ei filia sive nepte, refert Demetrius Magnesius in libris De Poêtis ac scriptoribus aequivoeis, qui et Eubuli servum Hermiam fuisse ait, Bitynium genere, quem et dominum suum enecasse. Porro Aristippus In primo de antiquis deliciis libro, Aristotelem ait Hermiae concubinam adamasse. Quam ille cum sibi permisisset, duxisse eam, et gaudio elatum immolasse mulieri, ut Athenienses Eleusince Cereri, Hermiaeque paeana scripsisse, qui infra scriptus est.» [Ibid. eo. loc., 3 e 4.]

«Enim vero Aristoteles Athenas profectus, cum illic tredecim annis docuisset, clam in Chalcidern concessit, quod ab Eurymedonte sacrorum antistite impietatis accusatus esset, sive, ut Phavorinus ait In omnimoda historia, á Demophilo, quod hymnum in eum quem praediximus Hermiam scripserit...» [Ibid. eo. loc., 5.]

No verso:

Já paga a culpa enorme com desterro,

a palavra final, como já observou o Polihístor, deve interpretar-se segundo a fonte e a verdade — como expatriação voluntária.

Mas mais importante do que esta observação, afigura-se-nos a circunstância da Ode ter sido escrita, na opinião de Storck, em Goa, em 1558. A concordância de alguns termos das estrofes com os respetivos passos de Laércio sugerem a impressão duma leitura recente do De vitis... E em qualquer caso, documenta, uma vez mais, a probidade com que Camões se esclarecia, e que em Goa não descurou a ilustração do espírito, antes a alargou na privança com o sábio Garcia d'Orta. A verificação de factos desta natureza, criticamente integrados e relacionados, permitirá, talvez, senão reconstituir, pelo menos ilustrar a biografia intelectual do Poeta. Não vamos ao ponto de propor para a obra camoniana a estilometria, que Lustolawsyk aplicou à obra platónica, com ingente trabalho e notáveis frutos; mas o inventário sistemático de factos afins deste cremos não ter sido ainda tentado, e é bem possível que não fosse estéril.


?>
Vamos corrigir esse problema