3) Leu Camões o Fédon de Platão?

A conceção camoniana do amor ascendeu da simples expressão sentimental do enamorado, passando pelo amor petrarquiano, dominado ainda pelo medieval conceito cortês, até atingir alguns aspetos do amor platónico:

E aquela humana figura

Que cá me pode alterar,

Não é quem se há de buscar:

É raio da formosura

Que só se deve de amar.

[Das redondilhas Sôbolos rios que vão.]

Um tema tão complexo como este não pode ser tentado sem a investigação preliminar das leituras filosóficas e literárias que levaram Camões a alargar a visão estética da vida, e a considerar para além da beleza da dona, que se ama com elevado desinteresse ou apetite lascivo, a formosura divina, de que ela é momentânea sugestão.

A base ideológica desta visão é, como se sabe, exposta nalguns diálogos de Platão, especialmente no Banquete, no Lísis e no Fedro. Conhecê-los-ia Camões? Sem encontrar na obra camoniana um conhecimento tão completo do Platonismo como do Peripatetismo, o crítico depara, no entanto, com algumas expressões platónicas, como a oposição do «mundo visível» ao «mundo inteligível» (Redondilhas citadas) e a referência à «Idea que el mundo enfrena y rige con su mando» (Écloga 1.ª), às quais se vem juntar a profunda admiração pelo filósofo «divino» (Oitava 1.ª)

Se destas expressões passarmos ao exame de certas ideias, desenvolvidas sobretudo na lírica, verifica-se ainda mais acentuadamente a mesma impressão e como que insensivelmente é-se levado a pensar que Camões leu e assimilou a essência de alguns diálogos. Será, porém, assim? Não haveria outra via, não platónica, mas platonizante, que o espírito do Poeta tivesse percorrido?

A primeira tradução completa dos diálogos do divino foi feita por Marsílio Ficino (1433-1491), que à sua volta reuniu nessa incomparável Academia Platónica de Florença, sem estatutos, nem fauteuils, alguns companheiros no entusiasmo e cujo fervor estimulou, assombrando-o, o mundo renascente. Quem não conhece esse festim da vila Careggi em que numa tarde de Novembro, sob o olhar amigo dum busto helénico do filósofo, os académicos, revivendo o Symposion, fizeram essa apologia do amor, que os tempos guardarão como o mais elevado depoimento espiritual de Ficino, do magnífico e dos seus «irmãos em Platão»? A sugestão filosófica e literária desta religiosidade platónica foi enorme, e mais ou menos tardiamente e intensamente se fez sentir em todos os países da Europa culta do século XVI. A Itália, duca e maestra, viu florescer uma exuberante literatura de cortegiania e amorosa — poética, dialogada, novelística e preceptiva — da qual Petrarca foi o grande precursor e cuja raiz espiritual mergulha na nova religião platónica, que a impolida Idade Média desconhecera. Camões, homem do seu tempo, com um espírito curioso de ideias e ávido de sugestões, não ignorou esta literatura:

Se a perfeição de Laura nunca esquece,

Também é que por fama laureada,

Nos ficou por Petrarca, e hoje crece:

………………………………

Vénus formosa, hoje segura

Se apresenta em mil versos e Diana

Com as nove irmãs de Apolo tem ventura>

[Elegia XIII.]

As palavras destacadas por caracteres redondos testemunham, além do petrarquismo do Poeta, o conhecimento desta exuberante literatura amorosa — e da pastoril, também, imposta e valorizada pela Diana (1559) de Jorge de Montemor, agora reintegrada na plenitude do seu lusitanismo pelo espírito e pela língua de Afonso Lopes Vieira. E não surpreenda este juízo, pois contemporâneos seus por igual o fundamentam.          

Basta recordar o depoimento de Frei Heitor Pinto, censurando os «homens que pondo a um cabo a Sagrada Escritura e a lição pia, e douta, e devota ocupam o tempo em ler fábulas e batalhas fingidas e amores desonestos haviam mister publicamente castigados» (Imagem da Vida Cristã, La parte, 1563: Diálogo da vida solitária, V).

Em face do platonismo do Poeta, que não é extenso, nem intenso, nem de puro quilate, como já acentuou, em rápido estudo, Menéndez y Pelayo, o problema crítico consiste em determinar-lhe a origem: se derivou desta literatura filosófico-amorosa, se da própria obra platónica, se duma e outra e em que grau. Nos últimos anos tem-se apontado os platonizantes Dialoghi d'Amore (1535), do judeu português Leão Hebreu (Judah Abarbanel), traduzidos em espanhol (1568, 1582 e 1590), e a cujo valor intrínseco se veio juntar uma sugestiva influência literária e filosófica, bastando recordar Tulha de Aragona, Miguel de Cervantes e Spinoza.

Sem prova, porém, até hoje se tem aduzido em relação a Camões; mas, não obstante, com tal êxito se lançou, que já deu a volta ao Mundo: em Portugal, Teófilo Braga; na Inglaterra, Fitzmaurice Kelly; na França, Le Gentil; na Argentina, Ricardo Rojas....              

Os conceitos camonianos que à primeira vista poderiam ter deri-vado dos Diálogos de Amor eram vulgares nesta literatura, e consequentemente não pode formular-se um juízo sem um prévio cotejo de textos e uma penetrante análise e relacionação de ideias. Faria e Sousa, que conhecia os «bien escritos Dialogos de Amor», não os aduz como fonte do Poeta a propósito dos versos de feição platónica; mas em compensação não esquece a obra de Pietro Bembo. E com razão, porque o próprio Camões claramente mostrou não a desconhecer numa passagem do Auto de Filodemo, que constitui, porventura, o ponto de partida da crítica da teoria camoniana do amor e das suas fontes literárias:     

«Filodemo. (...) Já vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa que não é servir a senhora Dionisa; e posto que a desigualdade dos estados o não consinta, eu não pretendo dela mais que o não pretender dela nada, porque o que lhe quero, consigo mesmo se paga; que este meu amor é como a ave Fénix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.            

Duriano. Bem praticado está isso, mas dias há que eu não creio em sonhos. 

Filodemo. Porquê?

Duriano. Eu vo-lo direi: porque todos vós outros os que amais pela passiva, dizeis que o amador, fino como o melão, não há de querer mais da sua dama que amá-la e virá logo o vosso Petrarca e o vosso Pietro Bembo, atoado a trezentos Platões, mais safado que as luvas de um pajem de arte, mostrando razões verisímeis e aparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê-la, e, ao mais, até falar com ela. Pois inda achareis outros esquadrinhadores de amor mais especulativos, que defenderão a justa, por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solene), se a qualquer destes lhe entregassem sua dama tosada e aparelhada entre dois pratos, eu fico que não ficasse pedra sobre pedra. E eu já de mim vos sei confessar que os meus amores hão de ser pela ativa, e que ela há de ser a paciente e eu o agente, porque esta é a verdade. Mas contudo vá vossa mercê co'a história por diante.

Filodemo. Vou, porque vos confesso que neste caso há muita dúvida entre os doutores...».

[Ato  II, cena 2.a.]

Este texto, duma importância capital, prova que Camões conhecia os Assolani e as Rime de Bembo, cuja doutrina lhe merece a pouco filosófica mas humana crítica de quem em assuntos de amor sempre entendeu que era melhor «experimentar, que julgar»... Indicando esta fonte, e dum modo geral a literatura platonizante, tivemos apenas em vista mostrar um dos aspetos deste complexo problema, cujo exame completo supõe a investigação preliminar do conhecimento direto que o Poeta teve da filosofia platónica.

Camões não cita nenhum diálogo de Platão, nem tão-pouco a sua obra nos oferece um indiscutível indício de os haver lido, como seria, por exemplo, a alusão aos mitos e alegorias. Desta forma, só por uma ou outra palavra, rica de conteúdo doutrinal ou de acentuada feição técnica, se pode estabelecer um juízo. É, o que vamos tentar em relação ao Fédon ou Da Imortalidade da Alma.

Na segunda parte do formosíssimo poemeto Sôbolos rios que vão, em que o Poeta «renuncia ao amor profano, para se elevar, em místicos arroubos, à contemplação da beleza eterna», lêem-se estas elevadas quintilhas: 

Mas ó tu, terra, de glória,

Se eu nunca vi tua essência,

Como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

Senão na reminiscência;

Que a alma é tábua rasa,

Que com a escrita doutrina Celeste, tanto imagina,

Que voa da própria casa

E sobe à pátria divina.

Não é logo a saudade

Das terras onde nasceu

A carne, mas é do céu,

Daquela santa cidade,

Donde esta alma descendeu.

E aquela humana figura,

Que cá me pode  alterar,

Não é quem se há de buscar;

E raio da formosura,

Que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz, que ateia

O fogo que cá sujeita,

— Não do sol, nem da candeia--

É sombra daquela ideia,

Que em Deus está mais perfeita.

…………………………

………………………..

Tanto pode o benefício

Da graça, que dá saúde,

Que ordena que a vida mude;

E o que eu tomei por vício

Me faz grau para a virtude.

E faz que este natural Amor, que tanto se preza,

Suba da sombra ao real,

Da particular beleza

Para a beleza geral.

……………………

…………………….

Aparte a expressão — a alma é tábua rasa — (Tabula rasa) de formação escolástica, mas de origem aristotélica, todos os versos postos em relevo traduzem conceitos de inspiração platónica, ou melhor, exprimem uma ossatura platónica que o Poeta vivificou com a fé mística do crente, substituindo o mundo das ideias do filósofo pelo paraíso cristão.

É este o carácter dominante da segunda parte do poemeto; mas para o ponto de vista deste estudo devemos apenas fixar a atenção sobre as três primeiras quintilhas, tanto mais que as seguintes suscitam problemas que só se esclarecem convenientemente quando integrados na teoria do amor do Poeta, formada já numa altura adiantada da vida, como a biografia impõe. A marcha ideológica destas formosas redondilhas é a seguinte: O Poeta encontra no seu espírito a ideia do céu, «terra de glória» e expondo a respetiva origem, mostra uma clara e variada cultura filosófica, revelada na oposição dos conceitos e nos termos, de acentuada feição técnica. A origem desta ideia da «pátria divina» não é inata, porque «a alma é tábua rasa»; nem tão-pouco empírica, porque não é fornecida pela memória, registo da experiência sensível, além de que lembra nesta vida, quando o espírito está ausente da «terra da glória». Não sendo inata, nem adquirida, nasce pura e simplesmente da reminiscência:

Não me lembras na memória,

Senão na reminiscência.

O Poeta opõe, portanto, a memória à reminiscência aquela, sendo o registo da experiência na «tábua rasa» da alma; esta, o «voo» à «pátria divina», ou melhor, «a saudade do céu» desprovida de qualquer elemento terreno. Estes caracteres são suficientes para definir o conceito de reminiscência, mostrando-nos que a sua natureza consiste em despertar o conhecimento duma vida anterior, na qual se contemplou em toda a sua pureza aquela

……………………. ideia,

Que em Deus está mais perfeita.


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