3) Leu Camões o Fédon de Platão?

Foi da «santa cidade» que a «alma descendeu», e, embora vivendo entre «sombras», pela reminiscência

.... com a escrita doutrina

Celeste, tanto imagina,

Que voa da própria casa

 E sobe à pátria divina.

Estabelecendo uma diferença tão radical, de natureza, entre a memória e a reminiscência, o Poeta alterou o sentido vulgar. Não nos recorda ter lido na literatura portuguesa dos séculos XV e XVI um conceito de reminiscência semelhante ao desta quintilha; e por outro lado o significado tradicional, que a psicologia moderna precisou, é claramente indicado pelos dicionaristas. Morais diz ser «o ato de representar-se à fantasia a espécie de coisa, que passou, e não temos presente». E Bluteau, distinguindo-a da memória, acrescenta que «diferem, em que a memória é de espécies conservadas, e a reminiscência é de espécies mero apagadas, ou digamos, que a memória é uma continuada reminiscência, e a reminiscência é uma memória interrupta». Vê-se, assim, que no léxico português não se estabelece uma diferença de natureza entre as duas funções mnésicas. Mas não foi apenas este sentido que foi alterado. Foi também o de Aristóteles, que informou toda a psicologia escolástica e no século XVI era dominante, bastando aduzir a Margarita Philosophica (Livro X, capítulo XXIX, pp. 893-894, da citada edição).

Para o Estagirita, que à análise destas operações consagrou o De memoria et reminiscentia, integrado nos Parva naturalia, a memória é um movimento que vai do sensório ao espírito e consiste na conservação das imagens; a reminiscência, inversamente, é um movimento que parte da alma para os órgãos dos sentidos. Própria, apenas, do homem, pode dizer-se que é a memória dirigida pela vontade, enquanto se esforça em recompor a ordem ou sucessão de movimentos psíquicos anteriormente decorridos. Afastando-se, assim, do sentido comum e do significado aristotélico, que possivelmente conheceria, Camões atribuiu ao conceito de reminiscência o sentido platónico.

É o que o confronto com o Fédon, especialmente, prova. Platão distingue a memória (n/a)— permanência passiva duma representação sensível, (Filebo, Teeteto)—da reminiscência (n/a)cuja teoria, na parte respeitante ao nosso ponto de vista, é desenvolvida no Fédon. Neste diálogo, Sócrates expõe o conceito de que a verdadeira ciência é reminiscência, isto é, o conhecimento do mundo das ideias anterior à união da alma com o corpo. Para esclarecer este conceito bastará notar que, segundo Platão, as coisas sensíveis são cópias, mais ou menos imperfeitas, das verdadeiras realidades: as ideias.

O belo, o bem, o justo, e, dum modo geral, as ideias universais, não existem realizadas no mundo sensível; mas o espírito, despertado pelo que há de inteligível nas coisas, pela semelhança ou disparidade que estas mantêm com os seus modelos, relembra-as, tornando-se-lhe como que atual esse mundo inteligível, que contemplou numa vida anterior e vivia latente nele próprio. É esta representação espiritual das ideias, que o mundo sensível não cria mas apenas sugere, que define a reminiscência platónica. Para comprovar estas afirmações limitar-nos-emos a citar as seguintes passagens do diálogo de Sócrates, na tradução latina de Marsílio Ficino, dominante na época de Camões:

«Atqui et secundum illud, o Socrates, inquit Cebes, quod frequenter usurpare soles, si modo verum est, disciplinam videlicet nostram nihil esse aliud quam reminiscentiam et secundum hoc inquam, necesse est nos in superiori quodam tempore, ea quorum nunc reminiscimur, didicisse. Id vero fieri non posset, nisi prius anima nostra fuisset alicubi quam in hanc humanam speciem deveniret. Quamobrem et hac ratione immortale quiddam anima videtur esse...»

«Siquidem sunt ea quae quotidie praedicamus, pulchrum scilicet quiddam atque bonum, et omnis eiusmodi essentia, ad quam omnia sensibus percepta referimus, quae et prius erant nostra, et tanquam nostram quaerentes invenimus, atque ad ipsius exemplar referimus necesse ut ita ut et ipsa sunt nostram quoque animam prius etiam quam nasceremur, extitisse. At si haec non sunt, frusta utique ratio haec tractata esset. An non ita se habet, atque par necessitas est, et ipsa esse, et animas nostras antequam nasceremur, et nisi ipsa sunt, negue haec utique sunt. Mirifice, o Socrates, eadem mihi videtur esse necessitas, atque pulcherrima huc ratio nos perducit, ut similiter tam animam nostram quam essentiam ipsam quam modo dicebas, ante quam nasceremur extitisse confiteamur. Nihil enim tam certum habeo, quam esse eiusmodi omnia et quidem maxime, scilicet pulchrum ipsum, et bonum, aliaque omnia quw tu modo dicebas. Et quantum ad me attinet, satis,est demonstratum.» [Platonis Opera translatione M. Ficini, emendatione Simonis Grynaei Basileia, 1551, respetivamente pp. 498 e 500.]

Cremos bastar este simples confronto para estabelecer que o conceito de reminiscência tem em Camões e Platão o mesmo significado. Teria o Poeta presente ao espírito a teoria platónica como resultante duma leitura do Fédon, ou conhecê-la-ia indiretamente?

O Fédon conhecido já na Idade Média, tornou-se vulgar na Renascença, durante a qual como que se banalizaram alguns conceitos platónicos. Se considerarmos, porém, a vastidão dos conhecimentos de Camões e a curiosidade intelectual do seu espírito, mal se compreende que apenas conhecesse de nome a obra de Platão. Quem quer que um dia leu este diálogo jamais o esquece, e precisamente a teoria da reminiscência é das que mais impressionam o leitor —, mormente quando, como Camões, nela pode facilmente integrar as suas aspirações e crenças religiosas. A estas razões acresce uma outra. Camões empregou duas vezes a imagem do cisne moribundo:

Esta é por quem a aurora se levanta,

Na parte oriental, mais clara e pura,

Esta é por quem morrendo o cisne canta.

[Elegia XIII.]

Que se viver não posso,

Homem formado só de carne e osso,

Esta vida que perco, Amor ma deu;

Que não sou meu; se morro, o dano é vosso.

Canção de cisne, feita em hora extrema,

Na dura pedra fria,

Da memória te deixo em companhia

Do letreiro da minha sepultura;

Que a sombra escura já m'impede o dia.

[Canção III.]

Foi Platão, cujo génio literário tão formosamente ilustra, quando não sugere, o seu subtil pensamento, quem pela primeira vez aludiu à canção do cisne, e precisamente no Fédon:            

«Haec Socrates audiens, leniter arrisit, dicens: Papae o Simmia, quam difficile aliis persuaderem hanc me fortunam haudquaqum adversam existimare, quando ne vobis quidem id persuadere possum. Quippe cum metuatis ne difficilior moestiorque sim in praesentia, quw in superiori fuerim vita. Atque, ut apparet, deterior cygnis ad divinandum vobis esse videor. Illi quidem quando se braevi praesentiunt morituros, tunc magis admodum dulciusque canunt quae antea consueverint, congratulantes quod ad deum sint cujus erant famuli, jam migraturi. Homines vero cum ipsi mortem expavescant, cygnos quoque falso criminantur, quod lugentes mortem ob dolorem cantum emittant. Profecto haud animadvertunt nullam esse avem quecantet, quando esuriat, aut rigeat, aut quovis alio afficiatur incommodo»  [Ibid., id., p. 504.]             

É certo que esta imagem do derradeiro canto do cisne teve uma grande fortuna na literatura quinhentista ; mas nos versos camonianos claramente se encontram os elementos da comparação platónica, o que nem sempre ocorreu. Sem nos fornecer este facto uma prova decisiva, cremos, no entanto, poder concluir-se com verosimilhança que Camões leu e assimilou o Fédon, nele encontrando uma justificação filosófica ao arroubo místico da sua alma, sedenta de divina beatitude no momento em que escrevia as eternas redondilhas Sôbolos rios que vão.

Coimbra, Janeiro de 1925.


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