Desenvolvimento da filosofia em Portugal durante a idade média

O estudo histórico da evolução das ideias em Portugal está, por assim dizer, na sua fase preliminar. Ele reclama atualmente o inventário analítico e seguro dos factos biobibliográficos e o exame parcial dos problemas e inquietações intelectuais, tanto nas suas origens e relações, como na sua coloração nacional. E esta atitude transitória e modesta, da qual nos desprendemos sempre sem nostalgia, que presentemente se impõe, pois, sem a caça paciente e lúcida dos factos, todas as construções serão frágeis e precárias; mas assumindo o honroso encargo de inaugurar os trabalhos da nossa secção, não resisti à tentação de apresentar, a simples título de introdução e como balanço dos estudos realizados, uma visão panorâmica da cultura filosófica em Portugal durante a Idade Média.

Servir-me-ão de limites o século XII, e o final do século XV, ou antes o primeiro quartel do século XVI.

No século XII começa a autonomia política de Portugal, e com ela se desenvolve o anelo duma cultura de tendência nacional; no primeiro quartel do século XVI surge entre nós a visão renascente da vida, trazendo consigo uma nova estimativa de valores e inéditas direções e preocupações intelectuais. Nesta excursão de três séculos o viandante encontra uma variada paisagem espiritual; mas detendo-nos apenas sobre os aspetos que implícita ou explicitamente envolvem uma conceção do Mundo ou da vida, ou simplesmente exprimem uma atitude de reflexão, reconhecemos como que quatro planos fundamentais, sobre os quais se inserem todas as inquietações do espírito lusitano. Estes planos são dados pelo predomínio dos problemas teológico, filosófico, no sentido didático ou técnico, moral e político.

A filosofia medieval nasceu e, em grande parte, gravitou em torno das religiões, ou, melhor, das teologias, das quais era solidária, quando não subordinada. Esta relação, verdadeira para toda a Idade Média, é-o duma forma muito particular para Portugal, pois é quase exclusivamente na esfera dos problemas patrísticos e da teologia cristã que se move o vago e ténue espírito filosófico. Este espírito, em Portugal, como alhures, nem sempre é ortodoxo, e é até interessante notar que as suas manifestações mais vivas assumiram por vezes uma feição heterodoxa.

O primeiro sintoma desta heterodoxia encontramo-lo no que pode chamar-se o ascetismo anticlerical. As suas raízes mergulham no movimento franciscano, alimentando-se principalmente com a ideia mística da pobreza.

Referindo-me ao movimento franciscano, quero deter-me um momento sobre o companheiro de São Francisco de. Assis, Santo António de Lisboa, no século Fernando de Bulhões. Martelo das heresias lhe chamaram os contemporâneos, e em verdade porque nas páginas espessas dos seus sermões sente-se ainda o eco da sua voz colérica e apaixonada contra os desvarios do século e desvios morais do clero. Foram sem dúvida os dissídios religiosos da Itália e do sul da França que fomentaram a combatividade a este doce Amadis do Céu, na delicada expressão do poeta Afonso Lopes Vieira; mas não derivaria o ardor ascético do seu temperamento lusitano?

Não é pelos raciocínios e construções teológicas que os seus sermões merecem ser recordados; mas pelo método incisivo, de comentário breve e rápido às citações da Escritura. Este método e o seu extenso saber escriturário — Arca do Testamento o intitulou Gregório IX —, é possível que fossem adquiridos em Portugal, na escola do convento de Santa Cruz de Coimbra, segundo a tradição e a Legenda da sua vida, publicada nos Portugaliae Monumenta Historica.

Não é só pela formação intelectual que Santo António se integra na vida medieval portuguesa: é ainda pela sua atitude na ordem dos frades menores. Nas pugnas que dilaceraram a ordem franciscana após a morte do seu fundador, Santo António tomou francamente o partido dos zelanti e contra Frei Elias foi o eloquente defensor do ideal da pobreza, summum da perfeição cristã.

Eu não quero examinar agora o sedutor heroísmo moral desta atitude, nem tão-pouco a contradição íntima em que ela se resolvia, pois o cristão para regenerar o mundo tinha de lhe fugir; basta-me apenas notar que os parcos elementos até agora conhecidos nos habilitam a supor fundadamente ter sido esta doutrina a inspiradora do primitivo movimento franciscano em Portugal. Do Santo reza Tomás de Celano que «amabat ut omnia peregrinationem, omnia cantarent exilium», e só a prática fremente deste sentimento de renúncia pode explicar a enérgica oposição de certa parte do clero. A voz dos interesses consolidados parece ter sido clamorosa ousando dizer, em 1233, o deão do Porto, que os frades menores eram ladrões, gente prejudicial ao Mundo, não eram católicos, senão hereges, falsos profetas e enganadores dos povos. 

Não chegou talvez a Portugal a ressonância do Evangelho Eterno de Joaquim de Flora; mas houve sem dúvida fraticelli e beguinos. No próprio episcopado uma voz se ergueu, a do Bispo de Lisboa, D. Estêvão, que na resposta à consulta do Papa João XXII, não receou exprimir a sua opinião acerca da pobreza de Cristo e dos apóstolos, — o que lhe valeu a transferência para a diocese de Cuenca, por ordem deste mesmo papa, que não teve dúvida em proclamar ser herética a negação de Cristo ter possuído alguma coisa como pessoal ou comum.

Com a exaltação dos espirituais entramos nas fronteiras da heresia; mas no século XIV ela aparece-nos com uma multiplicidade de formas, revelando a existência dum meio intelectual agitado, onde ecoam algumas das dissidências que dividiam a cristandade e as escolas de Paris. É o Bispo de Silves, Alvaro Pais, de nacionalidade espanhola, porventura, que nos guia neste emaranhado dédalo de dissídios doutrinais com as obras De Planctu Eclesiae e sobretudo o Colyrium fidei adversus haereses.

Eu creio que Álvaro Pais ou Pelágio não foi discípulo de Duns Scoto; mas se não frequentou a Universidade de Paris e tão-somente assistiu às lições do canonista de Bolonha Guido de Baysio, a ilustração do seu espírito foi grande, embora a atenuasse uma irresistível e depressiva tendência para o exagero.

No De Planctu Eclesiae, escrito entre 1330 e 1332, a sua obra mais conhecida, pois teve a fortuna de três edições, há duas partes nitidamente distintas. Na primeira versa o então candente problema das relações da cúria com o império. É um verdadeiro libelo contra o antipapa Pedro Corbaria e contra o seu mantenedor Luís o Bávaro. Para o bispo silvense, então alto funcionário da Penitenciária, o papa tem a plenitude do poder espiritual e temporal; mas o poder temporal deve relegar-se aos reis, que o exercem por delegação. Dir-se-á pouco original esta tese, recentemente analisada com muito brilho e saber pelo prof. Cláudio Galindo no discurso de abertura do corrente ano académico da Universidade de Oviedo; mas no seu pensamento ela é uma consequência da unidade de Deus, a qual refletindo-se na unidade da criação, e portanto da Humanidade, logicamente estabelece uma autoridade una.  A segunda parte é verdadeiramente o planctus, em que a sua sensibilidade, bastante refratária à serenidade crítica, se inunda de amargura pelos defeitos e vícios da sociedade, da cúria, do clero, dos reis, das magistraturas, enfim de todas as classes e profissões.

É um quadro sombrio da vida medieval; mas através dos negrumes da sua visão pessimista surpreendem-se, por vezes na intimidade, os sentimentos da época. É no Colyrium adversus haereses, porém, que Álvaro Pais, desejoso de medicar o mal, ao diagnosticá-lo nos deu notícias sobre as heresias em Portugal.


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