nem tão-pouco expor o seu conteúdo, tão árido e frio para as exigências intelectuais da nossa época. Bastará dizer que é um compêndio elaborado sobre o Organon de Aristóteles e seus comentários medievais, principalmente o de Boécio, versando empiricamente, didaticamente, as doutrinas meramente formais dos cinco universais, das categorias, das proposições e do silogismo, tópicos e elencos sofísticos, e no tratado De parvis logicalibus as propriedades dos termos. Mera compilação de fins escolares, não se lhe deve pedir o que ele não tem: originalidade de pensamento; mas apesar de ser uma obra intelectualmente obscura, que as interpolações de variados comentadores em pouco enriqueceram, a sua importância histórica é enorme. Sobre as suas páginas se curvaram numerosas gerações de estudantes, e este facto torna-o, pelo menos, digno da nossa atenção sentimental; mas a impô-lo objetivamente está a circunstância de a atual notação simbólica das proposições e as mnemónicas da teoria dos modos e das figuras do silogismo remontarem em grande parte a este tratado, que Dante recordou na Divina Comédia (canto XII do Paraíso):
... e Pietro Hispano
le qual giá luce in dodeci libelli.
É muito provável, senão certo, que as Súmulas Lógicas não tivessem sido escritas em Portugal; mas pela autoria e pela sua utilização nas nossas escolas até meados do século XVI, isto é, até ao aparecimento do compêndio de Dialética do Aristóteles conimbricense, Pedro da Fonseca, a tal ponto que na Universidade houve oficialmente uma cadeira de Súmulas, integram-se adequadamente na cultura nacional. Demais, a especulação puramente metafísica não seduziu os mais cultos espíritos do Portugal da Idade Média.
É, nos problemas práticos, como a dialética, a ética e a política, que a sua atenção se concentra; mas a despeito da ausência de escritos metafísicos, algumas divergências doutrinais da escolástica ecoaram em Portugal. Os místicos de São Vítor, especialmente Hugo de São Vítor, foram conhecidos; porém a atitude fideísta pura, se acaso sugeriu confidências ou diálogos na intimidade dos claustros, não deixou de si um claro testemunho.
Os dois grandes filósofos do século XIII, Tomás de Aquino e Duns Escoto, teriam, presumivelmente, os seus mais fervorosos sequazes entre os dominicanos e franciscanos, mas só o tomismo impregnou a cultura nacional. A obra do Aquinatense é largamente representada nas bibliotecas medievais portuguesas, guardando ainda hoje o núcleo alcobacense da Biblioteca Nacional de Lisboa sete códices da Summa Theologica; e é na síntese tomista que mais ou menos fielmente se filiam as ideias gerais, quer nas questões propriamente teológicas, quer filosóficas ou práticas. Ainda nos fins do século XV, o rei D. João II recomendava a Cataldo Sículo que ensinasse a D. Jorge, duque de Aveiro, a Ética de Aristóteles, mas com os comentários de São Tomás.
Um momento houve, no segundo quartel do século XV, em que Raimundo Lullo teve certa aura entre nós.
D. Duarte, no Leal Conselheiro, cita, ao que parece, a Ars Magna e fala nos «Reymonistas», isto é, sequazes de Lullo; e na capital, em 1431, havia um mestre Adrião, que ensinava, talvez numa escola privada, a arte do famigerado malhorquino.
D. Duarte censura em Lullo o excesso de demonstração em matérias de fé, pensando que basta a crença para as prescrições da doutrina católica, e que a «continuada experiência» é o critério da verdade racional; mas não se encontrará no lulismo uma sugestão intelectual à cruzada contra o mouro, a qual animou o Portugal do século XV?
Nem só dentro das fronteiras se deve procurar a virtualidade filosófica dos portugueses medievais: há que examiná-la também nalguns centros do estrangeiro. Na Inglaterra, João Sobrinho escreve o De Justitia Commutativa, dissertando com espírito tomista sobre a usura. Em Paris, o lisbonense Álvaro Tomás, professor no Colégio de Coqueret, redige o De triplice motu, raríssimo livro que preludia os trabalhos matemáticos de Pedro Ciruelo, Gaspar Lax, Martín Poblacion e João Fernel e acerca do qual o eminente Pierre Duhem afirma que «entrevê a solução dos dois grandes problemas da integração das funções e da soma das séries, e é talvez o criador da teoria do movimento dos corpos pesados.
Em Pádua, o franciscano Gomes de Lisboa escreve contra o averroísta Nicoleto Vernia, à volta de 1495, um opúsculo sobre o objeto e conceito de filosofia natural, no qual acusa uma pronunciada influência de Duns Escoto. E finalmente, nos princípios do século XVI, em Salamanca, Pedro Margalho com a Margallea Logices ilustra notavelmente o nominalismo e no Phisices Compendium faz um ensaio crítico sobre a cosmografia e a filosofia natural, do mais alto interesse para a história da ciência peninsular.
Nestas atitudes surpreendem-se, clara ou veladamente, a repercussão ideológica das correntes da escolástica, que se formulou sempre com um carácter universal, e cuja irradiação o uso do latim tornava fácil. Só nas questões práticas, especialmente políticas, as condições da vida portuguesa suscitaram problemas que, pela sua origem, assumiram de certo modo uma feição nacional.
A sociedade medieval era uma sociedade hierarquizada. Os homens eram socialmente desiguais e portanto a aproximação dum indivíduo de classe inferior junto dum privilegiado constituía sempre uma benesse. A forma orgânica desta aproximação foi o benefício. Se o inferior servia, o privilegiado beneficiava, e esta relação envolvia necessariamente vínculos morais. Distribuir ignaramente os benefícios seria corromper a própria estrutura social, e, portanto, tornava-se necessário fixar-lhes a natureza, condições e fins. É o que vemos no século XV. Portugal, no início deste século, gerou a mais profunda revolução da sua vida histórica. Destruíram-se interesses fortemente enraizados, renovou-se a vida pública da Nação, a começar pela própria dinastia, e ascenderam aos postos dirigentes pessoas até então obscuras. Esta transformação impunha à consciência esclarecida os mais delicados problemas morais e políticos. Na turbação momentânea não faltaram os guias, dos mais nobres que a Nação tem conhecido; mas os intérpretes mais intelectuais foram o infante D. Pedro e o rei D. Duarte.
O infante escreve o tratado Da Virtuosa Benfeitoria, no qual desenvolveu duma forma exaustiva, mas de carácter geral e portanto filosófica, o problema do benefício; e no Leal Conselheiro, D. Duarte, mais descoordenadamente, deixando-se abandonar pelo curso das reflexões e estímulos de momento, acusa esta mesma preocupação moral. Eram os dois irmãos eruditos, sem dúvida; mas Séneca, Cícero, a Ética de Aristóteles e os livros De regimine principum de São Tomás de Aquino e de Egídio Romano, para só referir estes dentre a multidão das suas leituras, não lhes fizeram secar a frescura de espírito, antes lhes robusteceram a ingénita pureza e sinceridade de ânimo.
Com a dinastia de Avis surgiu ainda o problema do fundamento do poder político, a que alguns atribuíram uma tímida origem democrática, isto é o consenso dos povos, e outros uma procedência divina e à qual, o aio de D. Manuel, Diogo Lopes Rebelo, dera no Liber de republica (1497?), com a teoria geral dos deveres do rei, a mais sábia exposição.
Mais ardente, e vivo que este problema foi o conceito da guerra justa, ou na sua tradução popular, a legitimidade da expansão nacional. O território português fora conquistado palmo a palmo aos mouros, e esta conquista tinha perante a consciência moral da nação uma defesa absoluta: era uma guerra defensiva. O problema prático não se formulara então, e os raros que o examinam como Álvaro Pais, no De Planctu eclesiae, fazem-no duma forma abstrata. Não assim no século XV. Com as expedições marroquinas de Ceuta e Tânger, Portugal já não defendia o seu território, mas ia atacar o muçulmano no próprio lar. Era isto legítimo? Eis o problema que a política do dia colocava perante a consciência moral e religiosa. As crónicas de Azurara e Rui de Pina relatam secamente as fórmulas e as vicissitudes das várias opiniões, que giravam, na sua maioria, em torno de dois polos opostos. Esta divergência dilacerava a unidade da ação nacional e, para a solucionar, a alma tão escrupulosamente delicada do rei D. Duarte viu como último recurso a decisão do Pontífice.
Roma falou; mas o problema persistiu latente, encontrando-se ainda no século XVI, em Gil Vicente e Camões, um eco do dissídio quatrocentista, e como então era o sentimento duma missão coletiva que exaltava a consciência profunda da nação, no ardor de unir espiritualmente, pelos laços da religião, os homens e os povos. O processo era a violência; mas esta finalidade espiritual como que o absolve, emprestando às aspirações portuguesas do século XV um valor humano e uma significação idealista.
Tais são na simplicidade da nossa visão atual as linhas gerais do desenvolvimento da filosofia em Portugal durante a Idade Média. Não se veja nesta singela construção, para a qual o talento e o saber de Marcelino Menéndez y Pelayo e Adolfo Bonilla y San Martin concorreram com as pedras mais afeiçoadas e polidas, a expressão dum espírito puramente autónomo. Nela se divisam, com transparência, os modelos que os grandes escolásticos e os mestres da colina de Santa Genoveva impuseram a toda a Cristandade; mas, na sua pronúncia e aceitação, surpreendem-se algumas das preocupações permanentes do espírito português.
Nunca, como na Idade Média, foi tão íntima a compenetração das culturas peninsulares, ao ponto de as podermos dominar desde um plano hispânico, no sentido universal do conceito. Desde este plano, a despeito da diversidade que a história tem cada vez mais acentuado, irradiam as mais largas consequências, assim na ordem intelectual, como moral, pois pelo estudo das comuns tradições intelectuais se esclarecem e afervoram os laços de concórdia entre os dois Estados independentes da Península.