Discurso na Academia das Ciências de Lisboa

A vossa vinda, Sr. Conde Hermano Keyserling, a esta Academia, que nasceu sob a ascendência da filosofia natural de Oitocentos, como quem diz do império da objetividade e do amor do facto, confiante num mundo em si mesmo cosmos, isto é, ordem, e na eternidade de algumas verdades, não sei se representará a sugestão de um novo meridiano, É possível; mas, simples auditor, eu não quero prefigurar as consequências da vossa missão, bastando-me antever que o problema nuclear da vossa filosofia — como consigo compreender mais profundamente? — a mutação que ele implica e as conexões espirituais para que nos incita, inquietarão, como dardos, algumas almas, atraindo-as para o magno tema, hoje tragicamente problemático, da essência e do destino do homem e da civilização. É para um novo tipo humano e para um novo estilo de pensamento Logos spermatikos que vós convidais, e este convite tem a sedução incomparável de um afã metafísico, a mais viril comoção que pode agitar o homem. Qual é o seu alvo senão uma certa espécie de tranquilidade às inquietações da consciência e da razão? O alvorecer da filosofia, ou da metafísica, porque os termos são sinónimos, é contemporâneo da fratura que no espírito do homem, de qualquer homem, se estabelece entre as representações coletivas ou generalizadas e o pensar autónomo. Uma filosofia é sempre uma réplica às interrogações das coisas e da vida — a insatisfação do mundo concebido ou dos valores aceites, e o estabelecimento de uma nova visão do Mundo ou uma nova tábua de fins. Esta visão do Mundo e esta tábua de fins não são estritamente científicas. Em todos os tempos, a filosofia, que não é mera intuição poética, se apoiou na ciência, mas tendeu sempre a evadir-se das suas fronteiras para surpreender as essências, algumas vezes mesmo o que se chama o absoluto, o uno, o que não muda. Ao contrário da ciência, cujo ideal é a impessoalidade fria, a filosofia é sempre uma conquista pessoal ou uma adesão consciente ou refletida. O indivíduo, a subjetividade — a quase intraduzível Selbstbewusstsein da vossa língua — constituem o centro de toda a reflexão filosófica, e o filósofo será tanto mais original e criador quanto mais refizer ab ovo, sem dependência do pretérito ou liberto da sedução fugaz do presente, a sua conceção do Mundo e da vida. A filosofia é, assim, o domínio da pura subjetividade, da interiorização da consciência, dos repúdios resolutos e do sentimento de uma solidão acompanhada de alegria heroica de a povoar. Não há filosofia sem filósofo, e pode mesmo dizer-se que cada filosofia tem a sua data, a despeito do plano extratemporal, inerente à criação filosófica.

 
A dúvida tem sido e será sempre o germe fecundante, mas o afã dubitativo não é ceticismo, nem um termo final: é a tensão do espírito crítico, é um desumanizar-se para ressentir e recriar a vida, uma desarticulação das ideias ou dos sentimentos para os articular de novo. Perpetuamente móbil, a filosofia não oferece verdades eternas: é a reflexão do que surge como imediato ou longínquo, a integração' do que parece descontínuo, pensar o que aos outros não parece pensável por evidente ou inadvertido, um intuir de valores incógnitos perante o mecanismo do conviver. O espírito científico, cujas fronteiras lógicas lhe impõe o facto  e as suas relações próximas, vê frequentemente, na visão metafísica, alguma coisa que, como um quadro ou um poema, se não prova nem refuta. Eu não quero examinar agora a validade deste juízo: basta-me relembrar que a filosofia não é anónima. Exige-lhe, sem dúvida, coerência e consistência lógicas, mas os seus pontos de partida raras vezes são objetivos e constituem, quase sempre, um postulado individual, que se dilata e transfigura numa visão universal. A ciência dá-nos a explicação do que é, e com ela a possibilidade da técnica, e esta obra admirável, que é o domínio sobre o Mundo; mas quem não sente que entre os progressos da técnica e dos valores morais e ideais há um abismo? Este abismo, angustiosamente flagrante para os espíritos sensíveis do nosso tempo, pode, acaso, transpor-se pela razão científica? A matéria da ciência é o que é: o real, o concreto, o objetivado; a substância dos valores, pelo contrário, é o dever-ser, o normativo e não o indicativo. Que o homem se aproxime ou descubra os valores com uma razão próxima da razão científica, impessoal e fria, é o imperativo do nosso estilo de ocidentais, felizmente saturado de razão raciocinante, mas jamais a impessoalidade se atingirá, porque só se busca o que se deseja e ama, interroga e duvida, na intimidade profunda da consciência. Esta posição gera o convencimento de que' nenhum sistema de ideias ou aglutinado de sentimentos é definitivo, porque o espírito infatigavelmente descobre inauditas razões de dúvida e novos núcleos de sistematização ou novos ângulos de perspetiva. O espírito limitado verá, nesta variação, a fragilidade do próprio espírito, mas não é nesta indócil fraqueza que reside toda a nossa dignidade? Do que tenho dito, creio poder extrair o corolário de que o passado, como tal, é dialeticamente estéril e vitalmente infecundo — o que não quer dizer, como vós observais, que o antigo não possa recobrar novo sentido mediante um nível superior de pensamento. Só a tensão para o futuro é dinâmica e tem virtualidade ativa, e se o presente surge, por vezes, no campo da consciência, como um legado do pretérito, é porque uma essência comum a ambos permeia e mediatiza. Perante o espírito filosófico, tudo carece de revisão, de justificação, de consonância ou harmonia de linhas, e, assim, quer os olhos se volvam para o passado, quer sondem o presente, quer vislumbrem o futuro, é sempre na intimidade da consciência que se opta por uma atitude, ou se constrói uma visão da vida.
 
Eis-nos, pois, transportados para o grande intento: a fuga do Mundo, que os sentidos, a linguagem, as representações coletivas e as ideias consolidadas nos impõem com máscara de objetividade. A modernidade nasceu no dia em que o homem se reconheceu diverso do Mundo e pôde povoar — não examino se pela razão, se pelos imperativos da vida — a solidão imensa que o envolve: um universo silencioso, descolorido, inodoro, insípido, e não constituído por coisas. A modernidade e raiz do maravilhoso domínio sobre a matéria alimentam-se desta visão metafísica; devemos, acaso, trocar a inquietude de novas aventuras, de novos riscos metafísicos, pelo prato de lentilhas da satisfação, da técnica e do conforto material? A esfera da meditação livre é ilimitada e, como na imagem célebre de Pascal, pode dizer-se que o seu centro está em toda a parte e a circunferência em lugar algum.
 
Perdoai-me este longo rodeio, um pouco vieux style, confesso, mas que surgiu como um imperativo da minha maneira de conceber a essência da filosofia e o vago rumor externo que até nós chega. E perdoai-me, ainda, porque foi para me situar no vosso pensamento, que não para exprimir as minhas opiniões, que eu recebi o honroso encargo de subir a esta tribuna — ai de mim! — o lugar de mais densa responsabilidade para a inteligência portuguesa. No domínio do pensamento há duas espécies de harmonia, ou, se se quiser, de equilíbrio: o equilíbrio da natura naturata, e o equilíbrio do fluido, da natura naturans, para falar à maneira de Spinoza. A estabilidade da natura naturata, de um ideal ou de um sistema, é, para vós, um prelúdio da morte, porque no fluir da vida, que é incomparavelmente mais rica do que a inteligência, toda a cristalização é um sedimento que se mantém à custa do grande pecado contra o espírito que é a preguiça, isto é, a inércia. Não é, pois, para o meramente abstrato, nem para uma construção racional, more geometrico, verdadeira para sempre, que o vosso afã nos transporta, tanto mais que, para vós, o conhecimento por instinto, emoção ou sentimento não é inferior ao conhecimento intelectual. É para nós próprios, para o mais profundo e dinâmico da individualidade, que quereis atrair-nos, sem a secreta ambição de moralista que legisla para a vida. Não vos satisfaz a meditação da vida: quereis que cada um crie a sua própria vida espiritual, dando-lhe sentido, isto é, a realidade transeunte é, para vós, um material caótico que só alcança valor pelo espírito que a anima. Os elementos eternamente iguais da natureza, a facies totius universi, como Spinoza gostava de dizer, em si mesmos inexpressivos, só se renovam quando recebem um sentido novo, tal como, dizeis vós, as vinte e cinco letras do alfabeto, que como tais não têm sentido algum, permitem dizer coisas novas quando a novidade ocorre a quem as ordena e lhes dá estilo. Há, sem dúvida, uma exterioridade; mas dizer que uma coisa existe significa que nos sentimos existir em relação à coisa. A consciência da relação torna-se fundamental, e daí a possibilidade no domínio da significação e do valor de mundos diferentes, consoante o sentido dos seres que os criam para neles viverem. Eis-nos, assim, no átrio do grande problema do nosso tempo, que em vosso juízo acentua a viragem mais decisiva que na história humana se verifica, de há dois mil anos até hoje: dar um novo sentido à vida. Novo sentido, e esta expressão desde logo nos adverte que a vida espiritual não é reversível, o que tanto monta dizer que o rejuvenescimento se não produz sob a forma de retorno, mas pelo advento de uma nova orientação que compreenda e domine os contrastes e antagonismos existentes, numa palavra, pelo advento de uma nova orientação, pelo conhecimento criador, como vós dizeis, que impregne de sentido o fluir da exterioridade. A renovação, portanto, só se verifica no plano espiritual, conquistando-se por vias espirituais, e pelo esforço permanente de cada um, porque o espírito é essencialmente tensão.
 
Das várias consequências que desta atitude advêm, eu quero deter--me apenas sobre a mutação do significado do progresso que a fé popular do chauffeur, segundo vós o tipo vital da nossa era de multidões, considera como uma coisa externa, necessária e indefinida. Para vós o que há de positivo no devir histórico, no ponto de vista espiritual, não foi nunca um resultado da evolução, mas conquistou existência pela intervenção do próprio espírito. O progresso «para a grande maioria, dizeis vós, no Conhecimento Criador, apoia-se sobre novos conteúdos de conhecimento e respetiva aplicação prática. Crê-se que progredimos essencialmente quando se descobriram ou deram a conhecer ao Mundo novos factos, quando se acharam novas ideias, quando se elaboram novos programas, aproximando-os da sua realização exterior por meio de instituições correspondentes. E, no entanto, se refletirmos sobre o facto de que a nossa época, a época maior que existiu, relativamente às inovações no plano das coisas, acabou numa catástrofe sem par, na qual a Humanidade ocidental, a despeito do grande progresso externo indiscutível, demonstrou ser, porventura, mais bárbara, mais superficial e mais vazia, interiormente, que nenhuma época anterior, teremos o direito de duvidar se o progresso externo tem que ver com o progresso interior». Eu creio convosco que não temos apenas o direito, mas o dever moral e o imperativo racional, de desterrarmos este mito, que começando por ser um paradoxo no século XVI, património duma minoria no século XVII, se generalizou no século XVIII e triunfou, soberanamente, no século XIX. A metafísica romântica alemã, o positivismo francês e o evolucionismo inglês viveram impregnados desta ideia, que invadiu toda a política do século XIX e à qual a ciência, pelo repúdio da conceção da imutabilidade da natureza, pareceu dar coerência lógica. Renouvier insurgira-se já contra este mito ao afirmar que «o papel da ciência não é preparar a felicidade», porque o seu objetivo é teórico; e vós, distinguindo o progresso interior, da novidade do conteúdo do conhecimento, vindes a concluir que consiste no ato de conferir sentido às coisas, sentido que essencialmente não é uma interpretação no plano do conhecimento, mas uma excedência na compreensão e uma transformação no valor. E assim retomais a vossa ideia essencial, que no plano da vida é sentido que cria os factos e não os factos que criam o sentido, e, consequentemente, quem, na profundidade do seu ser, dá um sentido novo ao Mundo, o transforma exteriormente. «Ninguém progride essencialmente — dizeis no Conhecimento Criador — aumentando o caudal dos seus conhecimentos: este aumento não acarreta, necessariamente, um efeito vital. Mas quando se trata de um homem que possui uma experiência religiosa, quando flameja na sua consciência uma visão metafísica, surge, então, um verdadeiro milagre: através dos antigos conhecimentos revela-se uma nova realidade espiritual, do mesmo modo que o amor empresta um novo sentido à vida transformando o mundo quotidiano». O essencialmente novo, que é idêntico ao essencialmente renovador, reside, pois, não no quê do pensamento, isto é, na matéria, mas no quem que o exprime, porque só o quem determina a conexão do sentido e o ajustamento interior.
 
Na conjuntura histórica em que vivemos, vós pensais que o entendimento, identificado com o pensar dialético, decompôs o que podia decompor-se; a obra de Sócrates está conclusa. E se nos volvermos para o campo da ação do pensamento, a crítica de Lutero, de Voltaire e de Kant, embora assegurasse para sempre ao entendimento a liberdade que lhe corresponde, acabou por vulnerar a própria raiz da vida, colocando numa posição instavelmente perigosa tudo o que não seja compreensível, isto é, redutível ao entendimento. «Ameaçam desaparecer — escreveis a religiosidade, a moralidade, tudo o que empresta consistência interior, imediata face a este fenómeno natural; são de escasso poder os vários movimentos contrapostos, frequentemente artificiais. De que serve fundar novas religiões ou restabelecer as antigas, se se evaporou a fé na justificação da religião em geral? De que serve toda a cultura ética, se a moralidade, em geral, passa por filha do prejuízo? Hoje há, apenas, um caminho para a saúde: que a própria crítica, levada à sua expressão suprema, se coloque ao serviço da reconstrução da plenitude da vida. O nosso problema consiste em explicar o sentido da moral, o sentido da religião, o sentido de tudo quanto dava sentido à vida e que foi condenado por infundado, por uma crítica provisória: há que realizar este sentido, no sentido metafísico e vital mais profundo, e não no superficial daqueles pragmatistas que se satisfazem, em última análise, com a utilidade». O homem ocidental, substancialmente o homo sapiens, de invenção helénica, é uma determinação limitada da essência metafísica do homem.
 
E limitada, não apenas por ser uma determinação, omnis determinatio negatio est, avançava Spinoza, mas porque vive da razão e para a razão. Teoricamente, foi o criador da ciência; mas não são descendência sua, no domínio da prática, o chauffeur vitalizando as evidências da técnica, as mais perigosas das evidências; no domínio da política, o governante técnico, e o revolucionário idealista, para quem o ideal cria a existência, tal como o matemático considera tão existente um espaço a n dimensões como o espaço tridimensional; e no domínio espiritual o que nós, portugueses, podemos chamar, simbolicamente, «o vencido da vida»? Fradique Mendes, a suprema expressão do nosso século XIX moribundo, que é senão o homem a quem o abuso — e vós não direis o uso — da inteligência, isto é, da ratio, tornou estéril, porque transportou para o transferível, isto é, para o dialético e para a quantidade o que, por essência, é intransferível, qualidade pura? Não é, porém, para assistir ao grande espetáculo da execução da mentalidade racionalista que vós nos quereis guiar: é para a despedida do tipo intelectual século XIX, e para o reinado do homem novo: o homem ecuménico.
 
Último no tempo, não por gestação evolutiva, como é óbvio, ele compreenderá e situará na altitude que lhe convém todas as experiências e formas do passado, e, em vez de colocar o acento só sobre o ser, como o oriental, a quem falece a consciência do tempo para sobejar a da profundidade, ou só sobre o devir e inteligível, como o ocidental, conjugá-los-á numa harmonia profunda, como notas da mesma melodia. Este homem novo, impregnando a vida de qualidade e de compreensão, será para vós o salvador do caótico Ocidente, que viverá uma nova alma de cultura, mais profunda pelo sentido do universal e do espiritual do que a Idade Média, sepulta há muito.
 
O verso célebre de De Musset, ile suis venu trop tard dans un monde trop vieux», qualquer que tivesse sido o sentido do poeta, é conceptualmente falso para vós, se bem considero, porque supõe um mundo único desenvolvendo-se e esgotando-se na duração.
 
O mundo espiritual, que era o mundo do poeta, é um mundo de cultura, e a cultura no vosso conceito é «a forma da vida como imediata expressão do espírito». De onde a fatalidade da morte de toda a cultura, cujo espírito se despolarizou — embora possa durar o seu revestimento exterior, isto é, a civilização, mas como expressão sem sentido interior. Assim, pereceram a cultura egípcia e a cultura árabe, embora persista o fundo racial que as produziu; e nas nossas sociedades europeias não temos assistido à sucessão de aspetos de cultura, isto é, de conexões de sentido, com o correlativo perecimento dos tipos espirituais que as tornaram possíveis? O mundo espiritual não é uma quantidade que se vai esgotando sob a lei do tempo. É. essencialmente qualidade e ajustamento interior: e daí, como a morte de uma alma de cultura, a possibilidade de uma nova alma, não rejuvenescida, mas verdadeiramente jovem.
 
No nosso mundo ocidental, a mecanização e o materialismo — eu preferiria dizer a rebelião dos instintos — tornou as massas primitivas, a ponto de as formas tradicionais se terem tornado mudas. Não vivem certas artes sob o signo do primitivo e não assistimos à apologia da ingenuidade na estética? Vivemos uma civilização sem alma, mas o mecanismo não é um mal em si, porque, como a escravidão em Atenas, pode preparar uma humanidade superior, que sem ele seria impossível.
 
Diagnosticando o mal, que a cultura da facilidade, desde a pedagogia às artes, só dilata e agrava, vós apresentais, ao mesmo tempo, o que julgais a terapêutica necessária, a saber, uma nova «forma vital como imediata expressão do espírito», ou, por outras palavras, uma nova relação entre a profundidade e a superfície, a alma e a inteligência. Só a filosofia a pode criar; mas, para isso, tem de se converter em sabedoria, isto é, deixar de ser apenas conhecimento ou capacidade, para se volver acima de tudo em estado de consciência. É, pois, para a sabedoria, não contemplativa ou ascética, mas ativa, dinâmica, que vós nos incitais, porque só dela derivará um novo impulso espiritual do Mundo. O seu acento recai não no conhecimento, mas na compreensão, quer dizer «a capacidade» de ver todas as coisas em justa «perspectiva». Consequentemente, para vós, «estas belas coisas, a que chamamos filosofia, religião, sabedoria, política, etc., não existem como realidades, na medida em que, por realidade, se entende uma imediata capacidade de ação; só existem homens vivos, sempre em atitudes únicas, ainda que estas atitudes se possam conceber em abstrato sob certos tipos. Por isso, no ponto de vista da vida, é indiferente o modo como, teoricamente, se situem as coisas no Mundo. O que importa é que o sentido, por uma parte, seja compreendido profundamente, e por outra se infunda na vida tão plenamente quanto possível».
 
A sabedoria, tensão infatigável, converte-se numa qualidade espiritual, onde a inteligência e a vida se fundem, num centro irredutível a todo o exclusivismo, sempre sinónimo de limitação.
 
Disse Marco Aurélio: «Considera as coisas por um aspeto diverso do que as contemplaste até agora: a isso se chama justamente começar uma vida nova».
 
Parafraseando a sentença do imperador filósofo, vós dizeis: «mostra as coisas sob outro aspeto e todos os que as percebam assim começarão, por si próprios, uma vida nova». O filósofo converte-se num mago, pelo contágio do exemplo, e o sr. Conde de Keyserling, afirmando e atuando sob esta conversão, não quis, evidentemente, atrair-nos para a reflexão fenomenológica da coragem e da audácia: quer apenas que cada um, perseverando no seu ser, tornando-se profundamente unilateral, impregne de sentido a sua vida, ascendendo a altitudes cada vez mais compreensivas, até atingir o reino das significações, em si mesmo verdadeiro cosmos espiritual.
 
É para este heroísmo, subjacente no indivíduo, e no indivíduo na plenitude da sua razão e dos seus instintos, que o Sr. Conde de Keyserling nos exorta, porque o universal só se conquistará pelo unilateral.
 
Desta brevíssima exposição, um corolário se deduz: é de uma educação espiritual que o homem do nosso século carece. O problema filosófico reveste a majestade de um problema pedagógico, e orientando a sua filosofia no sentido da ação, o Sr. Conde de Keyserling organizou as reuniões, ou Tagungen, da Sociedade de Filosofia Livre, de Darmstadt, e fundou, nesta cidade, a Escola de Sabedoria. Nos já vastos tipos de instituições escolares que a cultura europeia tem conhecido, a Escola de Sabedoria é a primeira escola onde se ministra um ensino sem conteúdo. Ninguém a demanda para aprender: sob a influência da personalidade desperta-se e intensifica-se o pensamento e, acima de tudo, se forma uma orientação espiritual, sem cânones.
 
Os seus pressupostos de «pura autodeterminação e autorresponsabilidade», conduzindo à metamorfose da pessoa segundo os impulsos da própria pessoa, reclamam e importam a lúcida clareza, e, mediante a sinceridade completa, uma autorresponsabilidade final. Não prosseguindo diretamente nenhuma finalidade prática, a Escola de Sabedoria, escreveis, «beneficia-as diretamente a todas, porque só aquele que compreendeu a significação e fez dela o centro da sua consciência e atividade, só esse é superior ao alfabeto do Mundo». Um único imperativo domina na vossa escola: a proibição da veleidade da negação e do ardil da disputa. O sr. Conde de Keyserling, desterrando a discussão da sua escola de Darmstadt, tem, sem dúvida, razões profundas. Admirei-as mesmo nos vossos livros e creio ter-lhes apreendido a fundamentação e a significação íntima. Respeito-as, portanto e que tenho feito nesta breve alocução senão respeitá-las? — embora para a consciência dum português o summus seja contemporâneo do ego e esta contemporaneidade nos arraste para um estilo de pensamento dialógico onde o alter se ergue diante de nós com seu perfil de varonia.
 
«Só o que realiza plenamente a sua empresa, só esse trabalha, ultrapassando os confins do tempo, para a eternidade», — é a última frase do vosso Conhecimento Criador. Palavras de filósofo, sem dúvida, mas também palavras de homem de Estado, isto é, de homem que compreende a sua vida como missão. Dizer que elas ecoam no conjunto das vozes, que, desde o findar do século passado, se insurgem contra as pretensões do pensamento racional, crítico e analítico, cujo afã de diafaneidade, de evidência, despojou a vida de toda a significação, tornando-a mecânica e prosaica, é situá-las na grande inquietude do nosso tempo, ansioso de ultrapassar o tipo intelectual, que apenas se move no reino dos meios, e uma cultura sem alma, puramente técnica. E qualquer que seja o seu destino, elas permanecerão como uma vibrante resposta, que compreendeu e excedeu a disjuntiva que a pergunta de Nietzsche legara ao nosso século: Deve a vida dominar sobre a ciência, ou o conhecimento sobre a vida?
 
A vossa réplica é pelo primado da vida, não dionisíaca, mas libertada pela compreensão e espiritualizada pelo sentido, e como raros nos nossos dias, através da peregrinação pelas expressões humanas de todas as culturas — viagem heroica à volta de vós mesmo, e na qual não haveis deparado com o absurdo, porque o haveis compreendido e situado, vós aprendestes a dizer um sim resoluto ao que sois.
 
Vindes pela primeira vez a Portugal, e sinceramente, vos saúdo: Quero crer que o perfil espiritual do nosso ser vos incitará à análise espectral que vós praticais. Se assim for, e qualquer que seja o vosso juízo, eu permito-me dizer-vos, sem sombra de impertinência, que nem vós nem eu toleraríamos, que acabais de tomar contato com um povo cujo sentido do universal informa a sua longa e tenaz e imperitura vontade de viver. Sem vaidade vo-lo digo, e para a não ter basta pensar que, se fomos os primeiros a ocidentalizar o Oriente, fomos também os primeiros a compreendê-lo sem perdermos a nossa essência.
 
Pensai neste facto profundo, dos nossos dias: um homem que trocou a sua alma de cristão pela alma de budista, e que distante da sua pátria jamais renunciou ao ser de português. Tirai-lhe as consequências, e estou certo de que, no seu contraste, elas vos transportarão para a essência da lusitanidade.

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Vamos corrigir esse problema