Introdução

I. As correntes de emancipação intelectual que na Idade Média, aqui e além, com mais ou menos intensidade, se formaram, expandem-se claramente em pleno século XV.       

Roma e Paris, sobretudo, perdem a hegemonia da cultura ocidental e a filosofia, como toda a atividade literária, dentre outras causas, pela difusão da imprensa, desenvolve-se tão livremente que perde esse carácter escolástico, para não dizer de casta, que até então tivera. Uma ânsia de novidade absorve os espíritos e como nunca, depois do neoplatonismo de Alexandria, a filosofia foi a expressão exata do meio social, por forma que, dominando-o, formulou como seu fim próprio, o ideal da ciência pela ciência. A subordinação do espírito aos fins da vida prática — ética e religiosa — que dominou na filosofia pós-aristotélica e na Idade Média, atenua-se no início dos tempos modernos com a renascença do espírito teórico (especulativo). A filosofia helénica, oposta pelo humanismo à escolástica, sua contemporânea, é acolhida avidamente e numa violenta oposição às tradições medievais surgiam renovados os sistemas da filosofia grega. Este regresso à antiguidade clássica não tinha, porém, em si próprio o seu fim, porque, manifestando-se como um valor propedêutico ao trabalho original do espírito moderno, este, de par com esta integração no mundo ideal greco-latino, adquiria a capacidade de o refazer pelo pensamento e de descer do mundo abstrato da interioridade à realidade concreta do estudo da natureza para descobrir novas e mais amplas fontes de vida e de conhecimento. O humanista, apesar de platónico ou peripatético, procurava ser um cientista; mas não sabendo como adquirir a ciência interrogava os antigos que a tradição consagrara, neles aprendendo que a natureza se explica pela natureza e a história pela história.   

A filosofia da Renascença, se assim se pode dizer, é pois um desenvolvimento gradual da conceção naturalista do universo, precursora dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII, derivando da renovação humanista da ciência e filosofia greco-latina. Por isso, pode legitimamente dividir-se a filosofia da Renascença em dois períodos — o humanista e o naturalista, apesar da razão do movimento humanista e da sua aspiração para uma nova conceção do homem e do Mundo.          

II. O movimento humanista, de que João de Salisbury se pode considerar o precursor medieval, cronológica e qualitativamente, é representado pelos filólogos humanistas. Estes, admirando a clara intuição dos escritores clássicos, especialmente latinos, desprezavam a técnica escolástica que velava o pensamento, e, estetas, não compreendendo as abstrações desta filosofia de conceitos, preconizavam o culto das formas clássicas do grego e do latim. Às frases artificiais, às provas subtis e distinções argutas da Escola opunham a linguagem pura e a exposição elegante dos antigos, pressupondo que quem era incapaz de escrever também o era para pensar. Considerada assim a expressão no seu aspeto formal como a medida do pensamento, os filólogos humanistas confundiam a ciência com o raciocínio e o raciocínio com a «arte de dissertar», reduzindo, pois, a filosofia à dialética e a dialética à retórica. Cícero, Quintiliano e Galeno eram os modelos a contrapor ao barbarismo das fórmulas escolásticas, cuja maior parte remontava às Summulae Logicales do português Pedro Hispano (João XXI? — 1226-1277) que, pela difusão deste comentadíssimo manual, que pode considerar-se como o tipo dos manuais de lógica moderna, para os renascentes «tenia poco menos la importancia de Aristóteles».

O formalismo lógico-escolástico e a sua fonte, o Organon de Aristóteles, são acerbamente criticados; mas em especial a silogística devia ser simplificada e apeada dessa situação dominante que a escolástica lhe atribuíra, porque, além de ser uma forma infecunda de pensamento, impunha-se uma ars inveniendi que satisfizesse o necessário, imperioso desejo de descobrir alguma coisa de novo: tal era a conceção latente nestas críticas que mais tarde Bruno, Bacon, Sanchez e Descartes, para não citar senão os precursores, desenvolvem, precisando-as.

Lorenzo Valla (1405-1457), combatendo nas Dialecticcae Disputationes contra Aristotélicos, a escolástica, a linguagem bárbara dos seus doutores e as regras silogísticas em nome da retórica, da natureza e do senso comum; Rodolfo Agrícola (1443-1485) antepondo no De Inventione Dialectica a retórica a qualquer outra disciplina; Mario Nizolio (1498-1566), no Antibarbarus seu de veris principiis et vera ratione philosophandi propugnando a simplificação da lógica e da retórica pela substituição das suas fórmulas por outras mais corretas e o abandono de todas as hipóteses ontológicas, e o valenciano Luís Vives (1492-1540), porventura um dos humanistas que maior influência exerceu no movimento da Renascença, combatendo as doutrinas e pedagogia escolásticas e propondo um conjunto de reformas que o fazem precursor dos reformadores dos séculos XVII e seguintes, são os principais representantes desta corrente de ideias.

A todos, porém, sobreleva Pedro Ramo, não pela profundeza e originalidade de ideias, mas pela forma como as expôs, sacrificando-lhes o seu bem-estar, senão a própria vida, concitando contra si e contra a sua doutrina uma das mais violentas reações que a história da Filosofia regista.         

Ramo interessa-nos unicamente por ter proporcionado a António de Gouveia, um dos mais claros espíritos da Renascença Portuguesa e porventura aquele que mais integralmente representa o movimento humanista no seu aspeto universal, uma Apologia de Aristóteles. Não lhe estudaremos, pois, a sua biografia, apesar de ela ser um extraordinário exemplo de energia e de constância no ideal; mas entendemos dever tratar, embora ligeiramente, a sua formação intelectual até ao momento em que Gouveia o critica.     

III. Ramo cuja infância se desenvolveu na mais rude escola da pobreza, aos 12 anos, como quer Waddington, aos 25, se com Goujet, Joly e o biógrafo da Biographie Universelle de Michaud lhe assinalarmos o ano de 1502 como a data do seu nascimento, talvez para viver, visto que os seus o não podiam auxiliar, talvez para satisfazer uma incipiente curiosidade intelectual, entrou para o Colégio de Navarra, como criado dum estudante rico — De la Brosse — inscrevendo-se, seguindo um velho costume medieval, nos registos da Academia de Paris. Durante três anos acompanhou as lições de Filosofia de Jean Hennuyer, regente do Colégio de Navarra e mais tarde bispo de Lisieux, conservando a despeito da sua miserável situação a maior independência, de que ele próprio se vangloria.

O estudo da lógica seduzia-o; mas aborrecia-lhe, porém, na lógica da Escola, a forma como era ensinada, a esterilidade das suas aplicações e resultados, a inutilidade para a vida ; e de noite, quando tudo repousava, como compensatória, lia entusiasticamente Platão e Xenofonte. Impressionava-o a forma como Sócrates refutava os sofistas, como facilitava por uma delicada obstetrícia intelectual a formação da verdade, melhor diríamos, a sua parturição (n/a) para que o bem e a justiça fossem os móbeis da conduta e não as solicitações dos sentidos, ou as imposições da tradição ou preconceitos. Assim socratizado parecer-lhe-ia naturalmente insensato que um filósofo seguisse sem discrepância o senso comum, a razão vulgar, a sofística, concretizada então na filosofia das escolas, e, pensando na autoridade de Aristóteles, de que tanto se abusava, rompesse pouco a pouco com a escolástica e o aristotelismo da época. Nesta ordem de ideias, faltaria apenas a ocasião para se lançar na luta audaciosamente, violentamente, como lhe impunha o seu temperamento, de natural impulsivo, o entusiasmo da sua mocidade, a imoderação e o gosto pelas discussões — características da época, como um ardente reformador, senão revolucionário. Esse momento, oportuno como nenhum outro, ia proporcionar-lho a sua candidatura a mestre de artes.

Teria então, talvez, 21 anos: foi em 1536. Esta típica cerimónia académica facultava ao candidato o direito de escolher a tese sobre que recairia a argumentação. Ramo, na lógica dos seus sentimentos, mais do que na das suas ideias, propusera-se defender a petulante, paradoxal proposição de que tudo quanto Aristóteles dissera era falso. Quaecumque ab Aristotele dicta essent, commentitia esse.

Nesta época, em 1536, véspera do grande movimento da Renascença francesa, na qual não pouco colaboraram os portugueses, esta tese tão ousada, confundia pelo estranho, pelo que pressupunha de demolidor, os doutores da Universidade de Paris, habituados a jurar por Aristóteles e a cortar cerce todas as questões com a sua autoridade. Na discussão, ao contraditá-la, se os seus opositores invocavam a autoridade de Aristóteles, Ramo alegava a Petitio Principii, envolvendo-os num círculo vicioso; e se lhe diziam que para a defender recorria aos preceitos aristotélicos responderia então com o próprio exemplo de Aristóteles: Amicus Plato, sed magis amica veritas.  

Em vão todos os peripatéticos, ou melhor escolásticos, se reuniram e durante todo o dia combateram o magistrandum ; mas tão vivamente e com tanto espírito replicou que obteve o grau de mestre de artes, a despeito da manifesta oposição de toda a Universidade, difundindo-se pelas academias de França e de Itália o seu sucesso.   

Mestre de artes, iniciou a sua carreira de professor no colégio de Mans; mas, pouco depois, com Omar Talou (Audomarus Talaeras), professor de retórica e Barthélemy Alexandre de Champagne, que, como o nosso António Luís (#t # 1558? 1565?) ensinava a filosofia pelos originais textos gregos, seus colegas neste colégio, amigos dedicados e entusiastas defensores das suas ideias, passa para o Colégio de Ave-maria, onde ministra uma educação mais conforme ao seu ideal, banindo as discussões escolásticas e aliando o estudo da «eloquência» ou literatura clássica ao da filosofia e o da poesia ao da oratória.

A sua reputação aumentava dia a dia e, como outrora com Abelardo, entusiasmados pela eloquência das suas lições, os estudantes acorriam a ouvi-lo.

Estes triunfos animavam-no e incitado por Tousan aprofundava a dialética, concebendo o projeto de a reformar, tornando-a mais clara e mais útil. A esta preocupação reportou os seus estudos e as suas lições e daí, talvez, pela natural curiosidade que as novidades suscitam, a razão da sua nomeada como professor.

Na progressiva evolução desta ideia guiaram-no muito provavelmente o Sapiens (1522) e De Disciplinis (1531) de Luís Vives, cujas obras conhecia, os trabalhos de Rodolfo Agricola, que frequentes vezes cita e as lições que João Sturm (1507-1589), o pedagogo típico da Renascença, fizera quando mestre de lógica, latim e grego em Paris.

Por outro lado, tudo nos leva a crer que o sucesso que obteve quando da defesa da tese para mestre de artes lhe sugerisse o desejo de a aprofundar, estudando então Aristóteles à luz duma crítica severa para lhe determinar o seu valor real, encarando a sério o que fora um petulante paradoxo.

Como quer que seja, porém, o certo é que em Setembro de 1543, apresentava os resultados dos seus estudos e reflexões nas Aristotelicae animadversiones e Dialecticae partitiones.

IV. Nas Dialecticae partitiones, obra construtiva, expunha dogmaticamente alguns princípios elementares de lógica, sem atacar diretamente Aristóteles, salvo no prefácio. Como Melanchton, e como tantos outros retóricos, Ramo, unia a dialética e a retórica numa ciência normativa cujo fim era a determinação das regras do pensamento e da sua expressão. Definindo a dialética como a «arte de bem dissertar», dividia-a em duas partes: uma, a relativa à invenção (De inventione argumentorum), outra, chamada pelos lógicos posteriores Secunda pars Petri (Rami), ocupando-se dos juízos (De dispositione ou De Judici).

A invenção dos argumentos, conforme se recorre à demonstração ou assunção, é artificial ou inartificial. Nesta classificação Ramo inclui todas as formas de argumentação, ilustrando-as com exemplos dos poe-tas e oradores clássicos.

Os argumentos artificiais baseiam-se nas causas que podem ser materiais, formais, eficientes e finais, nos efeitos, nos sujeitos, nos atributos que entram na categoria dos argumentos concordantes, cujos contrários são os argumentos discordantes, que podem ser opostos e diferentes.

Além destes cinco grupos de argumentos, que são simples, há também argumentos compostos, que entram numa classe mais geral: a dos argumentos primários. Ao lado destes, há argumentos secundários, que são qualitativos, quando referidos aos nomes.

Os argumentos assumidos ou inartificiais derivam dos testemunhos humanos e divinos, que se transmitem respetivamente pelas leis e máximas e pelos oráculos ou profecias.

Na segunda parte, Ramo distingue os axiomas ou proposições da dianóia ou dedução.

Os axiomas, que Ramo definiu como ideias concebidas em relação a outras ideias, dividem-se qualitativamente, em afirmativos e negativos, falsos e verdadeiros e, quanto à quantidade, em simples e compostos, admitindo qualquer destas classes outras subdivisões, que não expomos, porque claramente ressaltam do esquema seguinte:

A dianoia consiste em derivar uma proposição doutra; daí o silogismo e o método.

O silogismo, que é definido como a conclusão necessária que deriva da disposição dos argumentos, consta de duas partes: o antecedente, proposição ou premissa maior, e assunção ou premissa menor, e o consequente, que é a conclusão, podendo ser simples ou categórico e composto ou condicional.

O silogismo é simples ou categórico, quando deriva de duas proposições simples, admitindo apenas catorze modos concludentes se atendermos à qualidade e quantidade das proposições. Ramo rejeitava os cinco modos da Galénica Figura, como imperfeitos.

Os silogismos compostos, que podem ser hipotéticos e disjuntivos se atendermos à natureza das suas premissas, admitem apenas dois modos concludentes: afirmativo e negativo. Ramo refere-se ainda às formas imperfeitas do silogismo: exemplo, indução, entimema, sorites e dilema, que originam conclusões viciosas, salvo o entimema e o sorites, que são legítimos.

O método, ou consecução de raciocínios, reveste duas formas: uma científica (doctrinae), outra de prudência (prudentiae), formas que não divergem pela origem ou natureza, mas apenas pela facilidade com que permitem expor ou versar um assunto. O método, pois, é uno; os seus processos, as suas formas é que variam. O método, quer na forma de doutrina, quer na de prudência, exige uma definição geral do objeto a tratar e a sua divisão ou distribuição — ordem que também se deve observar em cada uma das partes divididas. Quando a exposição for longa, convém recorrer a transições para ser clara e elegante a lição ou a exposição.

Eram estas as regras que, desenvolvidas e explicadas com exemplos dos escritores clássicos, Ramo considerava como a parte mais importante da sua dialética e que os seus continuadores, especialmente na Inglaterra, levaram às últimas consequências.

Tal é, em essência, a dialética de Ramo. O seu mérito reside na simplificação da terminologia lógica e na exemplificação das regras. Todavia em si próprio, independentemente deste valor relativo, este ensaio de renovação é imperfeito e vicioso. Bastaria o pressuposto da lógica ser considerada como «a arte de dissertar» para que Ramo a não pudesse versar como devia; e assim é que alguns dos problemas que constituem o domínio próprio da lógica, como o erro, as suas formas, a maneira de o evitar, os métodos de investigação, para não me referir aos problemas epistemológicos, não tem a mais ligeira referência. Ë que Ramo não podia furtar-se à sugestão do seu meio, em que dominava esse retoricismo que confundia a lógica com a dialética, destinando-lhe como função própria a exposição e a persuasão e não a descoberta da verdade. Demais, não é isto a própria doutrina de Aristóteles simplificada, senão, como tantas vezes diz António de Gouveia, adulterada e incompreendida?

V. As Aristotelicae animadversiones, porém, pela violência e despejo da linguagem, que não pela crítica interna das doutrinas, excediam tudo o que até então se tinha escrito contra Aristóteles.

Aristóteles era apresentado como um sofista, um impostor, um sacrílego e os seus discípulos uns bárbaros que se entretinham em estéreis e barulhentas disputas, em subtis discussões que Ramo condenava, ridicularizando-as. A si próprio, audazmente, se apresentava como opositor da rotina, apóstolo da liberdade de pensamento, disposto a afrontar todos os perigos para destruir a sofística dos seus contraditores, inclusivamente dando a vida pelas suas ideias, como o seu modelo — Sócrates.

De sorte que a matéria das Aristotelicae animadversiones é o desenvolvimento da sua tese de 1532 acrescida de ataques atrabiliários ao estéril ensino dos professores de artes.

Uma obra desta natureza e com estes propósitos não podia passar despercebida no acanhado meio cultural universitário e necessariamente havia de provocar críticas e ódios, tanto mais que diretamente atacava a autocracia intelectual da Universidade e indiretamente a teocracia moral e religiosa da- Sorbonne, senão o próprio poder real, pela conceção que Francisco I tinha do exercício da sua soberania.

Ramo pressentira isto e, na previsão de qualquer emergência, ofereceu a Francisco I um elegante manuscrito das Dialecticae partitiones em cuja dedicatória lhe desejava as maiores felicidades e prosperidades do seu reinado, e as Aristotelicae animadversiones a Carlos de Lorena e Carlos de Bourbon, seus antigos condiscípulos no Colégio de Navarra e protetores desvelados.

VI. O momento não era oportuno, com efeito. A sacratíssima Faculdade de Teologia, guardiã da fé, procurando deter o movimento da Reforma, convoca em 18 de Janeiro de 1543, o claustro universitário, para lhe dar conhecimento dos XXIX artigos de fé que elaborara. A Universidade aprova-os por unanimidade; juram-nos os seus doutores, licenciados e bacharéis, que decidem impô-lo, de futuro, como condição sine qua non para a frequência na Faculdade de Teologia.

Francisco I reconhece-os em 23 de Junho, confessando nesse édito que os contraventores seriam considerados como «séditieux et perturbateurs du repos et tranquillité de nostre republique treschrestienne, occults conspirateurs contre le bien et prospérité de nous et de nostre état, rebelles et desobeyssans envers nous».

Destarte, o antagonismo que bastas vezes se manifestara entre as jurisdições civil e eclesiástica tendia agora a desaparecer e, sob a direção do poder real, estas duas autoridades uniam-se para combater os progressos das novas igrejas reformadas, que rompiam com a tradição. Mas ao mesmo tempo que a Faculdade de Teologia assim esclarecia os fiéis sobre a matéria de crença, procurava preveni-los contra as novas doutrinas, organizando Catálogos de livros que censurara e cuja proibição de impressão e venda solicitara do parlamento.

Por outro lado uma questão não menos importante, e de certo modo conexa com esta, agitava os espíritos. A organização medieval dos estudos subsistia ainda, prescrevendo os estatutos da Faculdade de Artes os exercícios sobre os sophismata e quodlibeta, o estudo constante dos quaestionarii; mas de facto já não eram cumpridos porque o ensino clássico pouco a pouco ia conquistando todos os colégios: daí as queixas e protestos dos partidários dos velhos métodos. Os portugueses Gouveias são os grandes fomentadores desta reforma e, em especial, André de Gouveia, que procurou pôr em prática a pedagogia dos humanistas, banindo dos estudos literários todos os exercícios preparatórios sobre a lógica e familiarizando os jovens espíritos confiados à sua educação nas formas oratórias do pensamento de preferência às investigações sobre a sua natureza.

Os colégios de Sainte-Barbe, em Paris, de Guyenne, em Bordéus, das Artes, em Coimbra, são modelos de organização pedagógica e especialmente estes dois últimos, a bem dizer obra sua, revelam extraordinárias qualidades de organizador, pelo que respeita à marcha geral dos estudos e à disciplina propriamente dita. Não era, pois, sem razão que o «ondoyant et divers» Montaigne o considerava como «le plus grand et plus noble principal de France».

Em 6 de Julho de 1543, Pedro Galland, reitor da Universidade de Paris, apoiado por Martimbos, regente dos dialéticos do colégio de Santa Bárbara, propôs à Faculdade de Artes e em 31 deste mês à Assembleia da Universidade a redução do curso filosófico de três anos e meio a dois anos e meio, reforma que já em 21 de Março de 1539, Diogo de Gouveia, então reitor da Universidade  tentara e que André de Gouveia — seu primo ou irmão? — em Bordéus, no colégio de Guyenne, pusera em prática.

A despeito da argumentação de Galland e de Martimbos, a Faculdade de Teologia, principalmente, não se deu por convencida, apresentando um protesto contra qualquer decisão que a Universidade tomasse enquanto o parlamento, onde a questão era suscitada, a não resolvesse. Entretanto Ramo, em Setembro, publicava as Dialecticae partitiones e as Aristotelicae animadversiones.

Um clamor geral levanta-se por toda a Universidade, e a Faculdade de Teologia, avolumando-o, sugere que, se se persistisse em reduzir o ensino da filosofia, o desprezo de Ramo por Aristóteles e pela sã filosofia tornar-se-ia em breve geral. Por isso, o decreto já promulgado ficou sem execução e a reforma de Martimbos foi relegada por meio século como uma perigosa utopia. Não é de estranhar, pois, que contra Ramo se congregassem todos os conservadores da Universidade, tanto mais que Aristóteles era ainda o filósofo oficial, defendendo-o a Universidade tão vivamente, como outrora, nos princípios do século XIII, o combatera.

Os ressentimentos e os ódios cresciam dia a dia e muito naturalmente o reitor Pedro Galland, mestre de artes, despeitado com o insucesso da sua reforma do curso filosófico, contribuiria para os avolumar.

Em 10 de Outubro de 1543 é eleito reitor Guilherme de Montuelle que logo no dia seguinte conhece oficialmente as graves questões que perturbavam a Universidade. No desejo de a solucionar, visto que cada vez mais se agravava, solicita em 20 de Outubro  do Chatelêt de Paris a proibição de venda das Aristotelicae animadversiones, porque, pelo natural interesse que as novidades suscitam, os jovens espíritos se podiam corromper com a sua leitura.

Entretanto, a combater Ramo pela forma que a natureza da questão impunha só o português António de Gouveia aparecia.


?>
Vamos corrigir esse problema