Este soneto condensa, com efeito, as conceções da vida e da essência do homem expressas nos sonetos anteriores. Invoca a conceção pessimista,
Sou um parto da Terra monstruoso;
a conceção naturalista e evolucionista,
Do húmus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pai nem mãe...;
a conceção, a um tempo filosófica e religiosa, do composto humano,
Misto infeliz de trevas e de brilho
e, finalmente, a concepção bíblica
...Talvez um filho
Bastardo de Jeová;
mas, conhecendo estas conceções, sobre todas estende a mesma dúvida fatal, porque ninguém desvendou o segredo da existência humana,
Nenhum interpretou a minha prece...
A conclusão a tirar é que por 1875 Antero vivia numa crise ideológica, da qual estes sonetos são expressão estética e a carta autobiográfica a W. Storck a descrição psicológica.
No advento e na marcha da crise, cujas projeções intelectuais acabámos de observar, concorreram estímulos diversos, de vária procedência. Um deles soprou da região especulativa da Alemanha, parque, avançando o que a seguir provaremos, foi na filosofia de Eduardo de Hartmann que Antero colheu inicialmente a fundamentação do pessimismo.
Vejamos os factos com nua objetividade. Antero possuiu os seguintes livros de Hartmann.
—Gesammelte Studien und Aufsätze, 3.a edição, Leipzig.
—Phänomenologie des sittlichen Bewusstseins. Prologomena zu feder Künftigen Ethik, Berlim, 1879.
—Religionsphilosophie. Erster historischkritischer Theil. Das religiöse Bewüsstsein der Menschheit, Leipzig.
—Philosophie de l'Inconscient. Traduit de l'allemand et précédée d'une Introduction par D. Nolen..., Paris, 1877.
— La Religion de l'Avenir. Traduit de l'allemand, Paris, 1876.
Este último livro não figura, como os anteriores, no Catálogo da Livraria de Antero de Quental, mas como iremos mostrar leu-o e meditou-o.
Na filosofia de Hartmann dois temas o interessaram acima de tudo: a fundamentação do pessimismo e a conceção religiosa.
Pelo que ao pessimismo respeita, temos a prova tangível no interesse com que se inteirou da bibliografia alemã, que, de certo modo, completava a Filosofia do Inconsciente. No excelente prefácio à tradução francesa, Nolen resumira a polémica suscitada pela publicação, em 1869, da Philosophie des Unbewussten nos vários sectores da ciência e da filosofia alemãs. De tantos livros e artigos de revistas, Nolen acentuava particularmente os escritos de Taubert — Der Pessimismus und seine Gegener (Berlim, 1873) —, por ser «le complément indispensable du treizième chapitre de la métaphysique de Mr. Hartmann», e de Moritz Venetianer — Der Allgeist. Grundzüge der Panpsychismus im Anschluss an die Philosophie des Unbewussten (Berlim, 1874) —, porque, escrevia, se tivesse de indicar «l'ouvrage le plus utile à consulter entre tant d'autres sur le monisme de la philosophie de l'Inconscient, c'est peut-être à l'étude du livre de Moritz Venetianer que nous renverrions le lecteur».
Antro possuiu estes dois livros, o que significa a seriedade com que estudou a filosofia de Hartmann, guiando-se pelo juízo competente do tradutor francês. Simplesmente, quando apuramos a cronologia dalgumas poesias em cujo ritmo de pensamento é claríssima a influência das conceções pessimistas da Filosofia do Inconsciente, encontramo-nos perante o facto de essas poesias terem sido escritas anteriormente ao conhecimento direto do livro de Hartmann (1877-1878).
Assim, os sonetos Elogio da Morte, escritos entre 1872-1874 e publicados em 1875, o soneto O Inconsciente, escrito em 1875, e a poesia Os Vencidos. Nos primeiros é transparente o conhecimento da conceção do inconsciente,
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força e acordo em susto.
assim como o repúdio, justificado por Hartmann, do suicídio individual
Talvez seja pecado procurar-te,
Mas não sonhar contigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser único absoluto.
(VI - Budismo)
Em O Inconsciente, de maneira mais precisa, a afirmação da realidade do grande mito como força criadora e a referência expressa à teoria de Hartmann sobre a ausência da consciência em Deus:
O espectro familiar que anda comigo,
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muito ansioso espreito e sigo,
E um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto, ascético e composto
Mil vezes abro a boca... e nada digo.
Só uma vez ousei interrogá-lo:
«Quem és (lhe perguntei com grande abalo),
Fantasma a quem odeio e a quem amo?»
«Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos,
Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos...
Mas eu por mim não sei como me chamo!»
Finalmente, Os Vencidos são a transposição para o plano poético da teoria das formas da ilusão da ventura, de Hartmann. Segundo o filósofo alemão as formas reais e possíveis da ilusão da felicidade são três: a felicidade é alcançável no presente, ou na vida transterrena, ou na humanidade, como termo do progresso, gerando cada uma destas formas três juízos reais de desilusão: a existência real é má; a vida futura uma quimera; a conquista da ventura pelo progresso e perfectibilidade da humanidade, um sentimento estéril e um valor a que deve renunciar-se.
Foi esta morfologia que inspirou a poesia Os Vencidos, uma das poesias destruídas por Antero, na qual três cavaleiros, símbolos das respetivas formas da ilusão, confessam em diálogo amargurado e desiludido «a derrota traiçoeira e pavorosa». Diz o primeiro «num soluço»:
...Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como um carro de luz, pelos espaços!
…………………………
Irmãos, amei amei e fui amado...
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»
Responde-lhe o segundo cavaleiro,
Com sorriso de trágica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
…………………………
……………………..
Quando há de vir o dia da justiça?
Quando há de vir o dia do resgate?
Traiu-me o gládio em meio do combate
E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de púrpura real.
Irmãos, amei os homens e contente
Por eles combati, com mente justa...
Por isso morro à míngua e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»
Diz então o terceiro cavaleiro:
«Amei a Deus e em Deus pus a alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro.
……………………….
……………………………
Vacila o Sol e os santos desesperam...
Tédio ressuma a luz dos dias vãos...
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que creem! ai dos que ainda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda,
Por isso vago sem conforto e incerto —
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»
E os três, unindo a voz num ai supremo,
E deixando pender as mãos cansadas
Sobre as armas inúteis e quebradas,
Num gesto inerte de abandono extremo,
…………………………
…………………….
Sumiram-se na selva impenetrável,
E no palor da noite silenciosa.
Esta genealogia intelectual não diminuindo o valor poético e filosófico das poesias suscita em todo o caso um conjunto de problemas, dos quais, de momento, cuidaremos apenas de apurar o das respetivas fontes literárias.
Como dissemos, Antero, quando escreveu estas poesias, não havia lido ainda a Filosofia do Inconsciente, e no entanto elas acusam nitidamente a influência dalgumas ideias de Hartmann expostas naquele livro. A conclusão lógica a extrair é a do conhecimento indireto, obtido mediante a leitura duma exposição resumida da filosofia de Hartmann. E com efeito assim foi. Léon Dumont, em 1872, na Revue Scientifique de la France et de l'Etranger (Revue des cours scientifiques, 2.a série), no volume correspondente ao semestre Julho-Dezembro, publicou dois artigos sobre a filosofia de Hartmann: Une philosophie nouvelle en Allemagne — Édouard de Hartmann et la théorie de l'inconscient (pp. 220- -229), e Consciente et inconscience (pp. 601-606), o primeiro, expositivo, o segundo, crítico.
Antero leu, pelo menos, o primeiro artigo e nele apreendeu a substância ideológica destas poesias pessimistas, ficando desde então preso ao interesse pela filosofia de Hartmann, e à curiosidade pelos escritos de Léon Dumont, na verdade lúcidos e precisos. Assim, em 26 de Fevereiro (de 1873), quando estava redigindo o Programa para os trabalhos da geração nova, que nunca concluiu e o exaspero da crise posteriormente arrastou a destruir o que havia escrito, dizia a Oliveira Martins: «Não se me dava de ler alguma coisa de Haeckel (que já conhecia por artigos da Revue des Cours),'e como vejo anunciado nas capas duma recente publicação da Bibliothèque de Philosophie Contemporaine um livro de L. Dumont, intitulado Haeckel et la théorie de l'Ëvolution en Allemagne, peço-lhe que veja se já saiu e em tal caso mo envie. É conveniente não dar a última demão no meu capítulo, sem ver o que há de mais palpitante na ciência». Dois meses depois, em 26 de Novembro, escrevia ao mesmo fraterno amigo e confidente: «Veja v. se me alcança o Haeckel, pois que devendo eu ter terminado, ao tempo em que o receber, o meu capítulo da Evolução, (que já tenho todo instrumentado e em parte redigido), bom será ver o que diz o alemão para retificar algum ponto ou acrescentar alguma ideia que a leitura me sugerir».
E finalmente, no mês seguinte, participava que recebera e agradecia «o livro sobre a Evolução segundo Haeckel. Eu conhecia já tudo aquilo, afinal, por artigos das Revistas dos Dois Mundos e dos Cursos Científicos, de sorte que nada me disse de novo, a não serem miudezas científicas especiais, que pouco me interessaram».
A conexão destes factos impõe as conclusões seguintes:
1.a) Antero leu em 1-1372 o artigo de Léon Dumont, publicado na Revue Scientifique, sobre a filosofia do Inconsciente, de Hartmann;
2.a) É neste artigo que radica inicialmente a comoção intelectual no sentido pessimista, o qual abalou o mundo de ideias em que habitava convictamente e cuja expressão poética e panfletária foram as Odes Modernas.
A filosofia germânica tinha raízes profundas e antigas no espírito de Antero. Na juventude, Hegel, em traduções e na exposição de Vera (Introduction à la philosophie de Hegel, 2.a edição, 1864), fora um dos seus grandes mestres, a cujo método dialético e conceção metafísica da Natureza permaneceu fiel, em grande parte. Mais tarde, Proudhon, sobretudo, foi o guia espiritual da ação militante, mas ao empreender a redação do Programa de trabalhos para a geração nova o desejo de ser moderno e as necessidades de preparação deste livro, que não passou de projeto e cujo plano se pode reconstituir, encaminharam-no de novo para a cultura germânica. As revistas francesas de então, um pouco por curiosidade intelectual, muito pelo objetivo patriótico de reeducarem o espírito público, despertando-lhe a compreensão do desastre de Sedan, ocupavam-se frequentemente da ciência e da filosofia alemãs.
Como vimos, foi pela Revue Scientifique (1872), que Antero teve pela primeira vez notícia dalgumas ideias capitais de Hartmann, e este conhecimento, como o de tantos outros, por exemplo, do monismo de Haeckel, foi inicialmente apreendido com o ânimo de quem colhe subsídios para um trabalho pessoal. Simplesmente, ao conhecimento fortuito e instrumental sobreveio a meditação, e a breve trecho as dúvidas intelectuais e as incitações do seu estado patológico ergueram-lhe perante o espírito o pessimismo de Hartmann, que se reputava edificado sobre a ciência da natureza, com o semblante duma filosofia séria, cujo exame se lhe impunha. Desde então, Hartmann foi o seu filósofo, e embora a meu juízo, exposto já há anos, a sua influência tivesse sido transitória, nem por isso deixou de ser real e profunda.
Como é próprio dos espíritos meditativos, a nova filosofia exerceu inicialmente uma ação de abalo. O mundo de ideias, em que habitara convictamente, tornara-se vacilante, e deste estremecimento interior possuímos um admirável depoimento introspetivo na carta a Oliveira Martins, de 13 de Maio de 1876. Ao despedir-se do amigo, Antero exprimia a esperança no restabelecimento da sua saúde e o intento de a aplicar «num programa de leituras sérias, que levo talhado. Quisera eu, acrescenta, finir com certas questões transcendentais, que a todo o momento me surgem no meio das coisas concretas e perturbam tudo.
Mas talvez que esta seja uma vã aspiração: a metafísica não será sempre o x último, posto além das soluções de todas as equações positivas? Mas, ao menos, determinar a relação desse x com o nosso pensamento e com as coisas cognoscíveis, isso deve ser possível, porque sem isso todo o nosso edifício intelectual, e até moral, ficará suspenso e oscilante como um castelo de nuvens. Eu, por mim, sinto-me incapaz de caminhar direito pela realidade enquanto não tiver, como um espartilho de fino aço, que me sustente, todo um sistema de ideias transcendentais — e é isto o que me faz muitas vezes parecer estranho e sonambulesco».
Necessidade dum sistema absolutista de ideias, carência de bases inabaláveis do pensamento discursivo e da ação — eis a essência da crise metafísica de Antero. A dúvida que então o afligia não era a dúvida dum cético. Ignorava, padecia de incertezas, sentia-se atraído para soluções opostas e diversas, mas no íntimo admitia a possibilidade de certezas e verdades transpessoais, que, «como um espartilho de fino aço», servissem de apoio sólido à visão pan-metafísica. O mobilismo e o fenomenismo repugnavam-lhe como subversores da conceção do Mundo, e porque o entusiasmo idealista e romântico da juventude o habituara nobremente a repudiar o conceito instrumental da verdade, isto é, de pensamentos úteis que o homem vai alijando à medida que perdem o préstimo de serventia, procurava a verdade absoluta ou, como ele diz com sabor kantiano, «um sistema de ideias transcendentais» que tornassem possível e explicável a variedade da experiência e a esta dessem norte.
A admissão da possibilidade da certeza metafísica colocava-o a meio caminho da respetiva conquista, e para a obter lança-se avidamente sobre a literatura filosófica, e em particular os livros de Hartmann.
Na referida carta de 13 de Maio de 1876 fala num programa de leituras. Ignoramo-lo; sabemos apenas que leu e releu a então recentíssima La Religion de l'Avenir, o primeiro livro de Hartmann integralmente traduzido em francês, por ser «um bom tema para cogitações. Ainda que o ache conciso e deficiente em certos pontos, dizia a Oliveira Martins, agradou-me todavia muito: de tudo quanto tenho lido sobre o assunto é o que entra mais no meu modo de ver. Vou percebendo que o pessimismo de Hartmann se parece singularmente com o meu otimismo e estou morto por ler alguma obra mais extensa do simpático filósofo.
Talvez que eu tenha inventado a 'Filosofia do Inconsciente' sem o saber!».
Esta confidência revela claramente que até 1876 Antero conhecia apenas através de exposições resumidas as ideias do filósofo alemão. Prova-o a circunstância da Religião do Futuro ter sido a primeira obra de Hartmann traduzida em francês e prova-o ainda a carta de 3 de Junho de 1876, dirigida a Oliveira Martins.
Antero lera com emoção o livro de Hartmann Dum modo geral, «abundava no modo de ver de Hartmann em quanto ao futuro da Religião», e, embora o não diga, seria com desvanecimento que leu aqueles períodos do filósofo alemão que coincidiam com as apóstrofes da sua juvenil Defesa da Carta Encíclica e com alguns juízos das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.
Para além, porém, dos pontos de coincidência, encontrara matéria de discordância.
Em primeiro lugar, não aceitava a definição de religião formulada por Hartmann — a forma de idealismo acessível ao povo —, por ser «deficiente e parecer deixar margem ao maravilhoso, pelo menos ao imaginoso»; em segundo lugar, e esta era a divergência capital, julgava diversamente o valor do Cristianismo. Com Hartmann, cujas ideias resume nesta carta, reconhecia «o lado fraco do Cristianismo, a lacuna, que, estabelecendo uma contradição fundamental, devia produzir, com o andar do tempo, a sua perversão e total dissolução. Essa lacuna é a ignorância da natureza. Incomparável como religião metafísica e moral, está abaixo, como compreensão das condições positivas da realidade, do próprio Politeísmo. A razão deste fenómeno, que é talvez exclusivamente histórico, conhece-a V. perfeitamente. Se uma religião não é mais do que a síntese coletiva da conceção do Universo numa dada época, cada religião deve refletir fielmente o grau de desenvolvimento dessa conceção, com o ponto de vista determinado pela tendência geral e os conhecimentos da época, as suas lacunas, o seu forte e o seu fraco.
Ora a época em que se formou o Cristianismo é caracterizada por uma extraordinária preocupação pelos problemas metafísicos e morais, por um desenvolvimento quase monstruoso neste sentido, enquanto o conhecimento positivo da Natureza (apesar de estarem formadas ou em via de formação quatro ou cinco ciências, mas que só davam vistas parciais e insuficientes) não só não entrava de modo algum na preocupação geral dos espíritos, mas até era por ela contrariado. A religião que devia sair deste estado de coisas vinha pois fadada a uma desarmonia, um desequilíbrio irremediável.
«Forte e profunda, como conceção metafísica e moral da existência humana, falsa, inconsistente ou quase nula como conceção das condições naturais, fora das quais a metafísica e a moral só produzem sonhos, por muito sublimes que sejam, e no fim de certo tempo, perversão e abatimento. Quer-me parecer que, sem fazer esta distinção, não é possível compreender a história do Cristianismo, história dominada por esta contradição: hostilizada pela razão, pela ciência, pelos instintos, por todas as coisas naturais, e ao mesmo tempo opondo-se triunfantemente a tudo isto, impondo-se e justificando-se por uma eficácia espiritual tão extraordinária, que é ela para os apologistas uma das maiores provas da inspiração e origem divina do Cristianismo».
De tais premissas, aparentadas às de Hartmann, Antero concluía diversamente acerca do futuro do Cristianismo.
O filósofo alemão, ao prefigurar a religião do futuro, «se dum modo geral tal religião é julgada possível», aventava que seria «um panteísmo e mais precisamente um monismo panteísta (com exclusão de qualquer politeísmo), ou um monoteísmo imanente impessoal, no qual a divindade tem o mundo, sua manifestação subjetiva, não fora de si, mas em si. Mas nem o cristianismo positivo com o seu politeísmo da Trindade, nem o protestantismo liberal com o seu teísmo pessoal abstrato, são capazes de dar satisfação à necessidade sentida; segundo a história das religiões, não se pode atingir o que se procura senão por uma síntese do desenvolvimento religioso indiano e do desenvolvimento judeu-cristão constituindo uma forma que reúna em si as vantagens das duas tendências, eliminando os respetivos defeitos, e por isso devenha capaz de as substituir, isto é, de cumprir a missão de religião verdadeiramente universal».
Antero, pelo contrário, não considerava exausto o princípio cristão, e por estranho que pareça àqueles que o imaginam a meio caminho da conversão do Budismo, à porfia do desejo do nada, foi hostil ao sincretismo, isto é, a uma nova síntese pela fusão do Cristianismo e do Budismo. «Creio, dizia, que a obra destes séculos mais próximos será, não destruir o Cristianismo (quero dizer o espírito cristão e ponto de vista de transcendência metafísica e moral), mas completá-lo com a ciência da realidade. A religião do futuro, de que nos fala Hartmann, não pode ser outra, e não julgo necessário ir procurar o Budismo, quando o que nele há de melhor se encontra no Cristianismo e com uma forma sentimental mais pura, mais humana».
A impressão da leitura deste livro de Hartmann fora profunda, e com verdade confessava ao amigo, seu confidente intelectual, que tinha «cismado bastante em volta disto, e creio ter chegado a conclusões definitivas sobre a natureza racional e sentimental (consciente e inconsciente, como diz Hartmann) e individual e coletiva da religião, conclusões que V. apreciará na primeira ocasião em que falarmos —, se antes disso não tiver ensejo de lhas pôr por escrito».
Antero não passou do projeto à realidade; nada escreveu sobre o assunto. Pode afirmar-se, no entanto, que esta meditação o conduziu a convicções, cuja expressão poética foi o soneto Transcendentalismo:
Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.
Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta...
Não é no vasto mundo — por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso...
Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espírito impassível!
O admirável soneto na distribuição de Oliveira Martins é o pórtico do derradeiro ciclo. Erroneamente, porém, porque sabemos ter sido escrito no dia 3 ou 4 de Julho de 1876 — precisamente um mês depois de haver redigido aquela carta sobre A Religião do Futuro. A prova encontramo-la na epístola de 5 de Julho, dirigida a Lobo de Moura, e escrita, como pela primeira vez estabeleceu o Dr. José Bruno Carreiro, em 1876. Nesta carta ao penetrante e esclarecido crítico, seu contemporâneo em Coimbra, Antero enviava-lhe o soneto Transcendentalismo, acompanhando-o dalgumas confidências, para nós hoje o comentário ilustrativo da composição poética: «Há quase um ano que não fazia versos e nada tinha para lhe oferecer. Mas veio a ponto a inspiração, acudindo-me ontem com esse soneto, que lhe envio. Tenho deveras pena de se me ir tornando já tão escassa esta bela faculdade poética, e de não tomarem já naturalmente os meus sentimentos a forma do soneto, porque reconheço que de tudo quanto tenho escrito é onde tenho posto mais verdade, digo verdade pessoal, expressão exata do meu íntimo sentir.
«O atual, mais do que qualquer outro, tem esse valor. Posso chamar-lhe um salmo, uma efusão religiosa, porque está ali com efeito a minha religião, o meu culto da existência suprassensível, sem o qual não sei o que seria desta minha pobre existência sensível (helas! trop!). O meu misticismo dia a dia se consolida mais, como sentimento e como doutrina. Neste último ponto tenho realmente feito importantes progressos, devidos a um belo método que inventei e que consiste no estudo das religiões (especialmente o Cristianismo) segundo um critério metafísico. Creio que já uma vez lhe toquei neste meu método, a que eu dou a máxima importância, porque o tenho achado fecundíssimo. É neste sentido que vou prosseguindo os meus estudos, lentamente, mas com segurança, porque caminham com alvo fixo».
Da correlação dos factos estabelecidos salta à vista que o soneto Transcendentalismo é ideologicamente o produto da meditação da Religião do Futuro, cuja influência capital reside, a meu ver, na apreensão da existência metafísica como realidade suprema. Daí o título, pois transcendentalismo não tem o significado kantiano, nem tão-pouco o cartesiano e escolástico; é a apreensão ôntica, «na esfera do invisível e do intangível», das supremas essencialidades e valores.
Chegados ao termo do breve ensaio de investigação, podemos sintetizá-lo dizendo que a influência de Hartmann se exerceu inicialmente, em 1872, no sentido da fundamentação do pessimismo, e posteriormente, em 1876, na meditação duma conceção da religião, especialmente cristã, e na descoberta, crítica, da realidade metafísica.
Em 1877, publicava-se em Paris a tradução francesa da Filosofia do Inconsciente. Ao conhecimento superficial e indireto ia suceder o conhecimento direto e meditado.
Antero havia atingido, porém, o caminho do transcendentalismo, e por isso o terceiro contato com a filosofia de Hartmann reveste acima de tudo feição subsidiária, isto é, de contributo para a elaboração pessoal do sistema exposto sinteticamente nas Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX. Traçar-lhe a influência, assim como as de Leibnitz, Hegel, Lange, é devassar o sistema, nos seus elementos arquitetónicos, o que ultrapassa o objetivo deste ensaio.
No entanto, quem um dia tentar esse estudo não deve esquecer nunca que Antero, a despeito da libertação do desespero metafísico e da filosofia pessimista, se inclinou perante Hartmann como «o representante nosso contemporâneo da alta especulação».
Coimbra, 1934.