Capítulo II - Conceito e método da Filosofia

17. O filósofo não é para Leão Hebreu, como o não era para Platão ou Aristóteles, o possuidor da verdade, mas, na hierarquia do saber, o intermediário entre o sábio e o ignorante. Não o ilumina, como aquele, o verdadeiro saber, mas tem, contrariamente a este, o amor da sabedoria, e um conhecimento, que não sendo toda a verdade é contudo um grau na aquisição desta. A melhor definição é ainda a de Pitágoras — amante da sabedoria —, porque acentua bem o que o separa do ignorante e do sábio.

Lógico com este conceito, classificou Leão Hebreu as formas da atividade intelectual em arte, prudência, entendimento, ciência e sapiência. A arte, «hábito das coisas factíveis segundo a razão», constitui a dexteridade nas coisas manuais, no sentido lato da expressão; a prudência, «hábito das coisas agíveis conformes à razão»; a ética, ou efetivação das virtudes, pela vontade, amor e desejo e o entendimento, os princípios do saber, isto é, aqueles princípios gerais que a razão comum admite quando compreende os termos que os exprimem, como o dever de procurar o bem e evitar o mal, a impossibilidade de coexistência dos contrários, etc.

A fundamentação e combinação destes princípios ou postulados origina a ciência, que ele define aristotelicamente como o «hábito do conhecimento e da conclusão», e cujo conteúdo classifica e distribui pelas «sete artes liberais». Finalmente a sapiência, síntese de todas as ciências, ocupa-se do princípio das coisas existenciais e das espirituais, eternas, cujo ser, mais excelente que o das corpóreas, a razão descobre, embora os sentidos, embaciados de materialidade, o não apreendam diretamente. Cultivando-a, o espírito humano simultaneamente se exercita no último e mais perfeito ser e atinge, nos limites do possível, o conhecimento da essência divina. Daí o chamarem-lhe «os gregos» teologia e ainda filosofia primeira, por ser «a cabeça» de todas as ciências.

Banais estes conceitos, mormente depois da difusão da Metafísica de Aristóteles, onde talvez os haurisse diretamente, qualquer escolástico, fosse cristão, árabe ou judeu, os subscreveria; mas Leão Hebreu, que antes e acima de filósofo era crente, forçou o espírito do Peripato e, infundindo-lhe o vivo misticismo dos pensadores israelitas (Chasdai Crescas, Maimónides, etc., a cabala), adaptou-o às exigências sincréticas da sua doutrina.

18. Neste conceito intelectualista de sapiência, que denuncia claramente a origem aristotélica, integrou Leão Hebreu a divindade (Deus é a suprema sabedoria) e em geral a dogmática do judaísmo; e em consequência deveio a sapiência, nesta eclética fusão, a primeira das ciências, à qual as outras se subordinam, a fonte imediata da beatitude, para a qual as demais são tão-somente vias. Nas sete artes o saber é limitado e facilmente se satisfaz o natural desejo de o atingir no conjunto e no detalhe; mas a sapiência, «serva de amor», na imagem de Salomão, sendo ilimitada, gera um amor e desejo progressivamente mais intensos e insaciáveis como o sedento que matasse a sede com água salgada.

Apesar da concordância sincrética, as ciências particulares são independentes e afirmam uma origem racional, quanto mais não seja no estabelecimento e fundamentação das suas verdades; mas a sapiência, fundida na dogmática, é obra de fé, e o seu conteúdo não carece de prova, sob pena de devir ciência. O problema da dupla verdade surgia, assim, com flagrante lógica e imperiosa exigência de solução. Este problema, de relevo na história do pensamento e cuja marcha dialética vai desde a incompatibilidade absoluta da crença religiosa e da ciência, quer em detrimento daquela, como nos filósofos gregos e racionalistas modernos, quer desta, como nos fideístas de todos os tempos e religiões, até às várias formas duma harmonia providencial, estabeleceu-o Leão Hebreu dum modo que patenteia logo a sua opinião: a unidade da verdade. «Como é possível, diz, que uma verdade seja contrária da mesma verdade?» «A verdade é sempre a mesma». «Uma verdade não pode ser contrária de outra verdade, e é necessário dar lugar a uma e a outra e concordá-las». «A verdade é sempre anexa e conjunta com a divindade, e irmã de todos os deuses».

Crente como era, aceitando a herança hebraica, religiosa e filosófica, concede a supremacia à fé, tanto mais que ela constitui de per si um saber suficiente e um critério seguro na solução das antinomias entre o seu conteúdo e o de qualquer sistema filosófico. Depende, é certo, o seu pensamento, por mais dum conceito, de Platão e Aristóteles; mas assimilando-os, acentuou a concordância destas capitais correntes da especulação helénica com a Bíblia, suma de toda a ciência natural e espiritual, embora tivesse de forçar textos e por vezes decaísse no mais pueril concordismo. Não se pense, porém, que este fideísmo envolva a negação da filosofia. De modo algum; e até, pelo contrário, alarga o seu conceito. A verdade, pela universal unidade da sua essência, devém complexa, de mil faces, compreendendo desde o empirismo mais positivo até ao misticismo mais exaltado.

Idêntica sempre e pela origem divina pré--fixada, pode o homem pelas luzes naturais atingi-la, ou, mais precisamente, encontrá-la (que não descobri-la). Razão e fé são assim as duas vias da verdade no espírito humano: quando se encontram, harmonizam-se pela identidade de conteúdo, quando divergem, a razão cede à claridade da fé.

Sintetizando, pois, religião e filosofia verdadeira fundem-se, afinal, numa suprema identidade, quando a filosofia não é, em grau mais ou menos próximo, uma derivação da tradição mosaica, como, v.g., certas teses platónicas e em geral toda a especulação helénica.

Numa frase feliz — «Philosophia veritatem quaerit, theologia invenit, religio possidet» —, concretizou João Pico esta atitude. Difuso na exposição do pensamento, não a definiu Leão Hebreu com a fortuna daquele a quem os contemporâneos chamavam «la fenice degli ingegni»; mas a sua doutrina não é porventura o comentário dum idêntico conceito?

19. Una como a essência divina, a verdade é cosmopolita, e se Leão Hebreu a não investigou simultaneamente, como os neoplatónicos Jamblico e Proclo, nos filósofos gregos e nos sacerdotes de Jerusalém ou do Egipto, nos magos da Caldeia ou nos gimnosofistas da Ilidia, todavia encontrava nos mitos e alegorias da teogonia helénica e, num grau menor, em Platão e Aristóteles, a expressão de verdades que a Bíblia revelara. Foram os primeiros pensadores gregos, poetas, e a linguagem poética a forma das primitivas conceções helénicas da vida e do Mundo. Nelas vê a crítica moderna um obscuro pressentimento da verdade; mas Leão Hebreu, confundindo mito e alegoria, considerava-as como criações reflexivas do espírito, velando uma verdade inefável. A alegoria contém assim vários sentidos: o claro sentido literal (histórico), o obscuro sentido moral, quando «não alguma verdadeira inteligência das coisas naturais ou celestiais, astrologais ou teologais». Para nós, hoje, será difícil surpreendê-los; mas essa dificuldade constitui justamente a sua superioridade, pois que, alegorizando, os velhos poetas gregos obedeciam ao que Leão Hebreu chama a lei da conservação da ciência.   

Há homens de espírito acanhado, incapazes de aprender, e confiar--lhes a ciência é ofender a natureza e a própria divindade. «Declarar demasiadamente a ciência verdadeira e profunda é lançá-la aos inábeis em cuja mente se corrompe e adultera como o bom vinho em ruim vasilha». 

A sua época provava-o e em tal grau, que, como pitorescamente diz, «pelo muito falar dos modernos raro se acha vinho intelectual que se possa beber sem estar adulterado». Mas outras razões justificam a alegoria: a concisão, exprimindo in pauca multa e facilitando a memorização, a compenetração da beleza («agradável») com a verdade, e, sobretudo, a fixação da ciência.         

Cimentada na medida dos versos, não podendo variar-se-lhe os termos, pecha a que o vulto é atreito, nem o sentido, perdura a alegoria e o seu conteúdo a coberto da deficiência de quem a assimile e das mais que prováveis deturpações dos vindouros. Os espíritos curtos ou superficiais apreciariam apenas o sentido histórico, ornado pelo verso; os inteligentes apreenderiam o sentido moral e os iniciados conheceriam a filosofia natural, astrologia ou teologia.   

A exposição filosófica sob a forma de alegoria poética é, pois, a lei da conservação da ciência. Foi sempre respeitada? De forma alguma; mas só os grandes espíritos, como Platão e Aristóteles, a podiam derrogar. Platão, querendo «ampliar a ciência» usou só a alegoria, mas sem a medida do verso, e Aristóteles, mais inovador ainda, escreveu apenas «em estilo científico», sem imagens. Leão Hebreu alude ao diverso estilo destes dois filósofos e muito superficialmente acentua em Aristóteles a criação da prosa abstrata, em substituição do estilo simultaneamente abstrato e imaginativo dos filósofos anteriores. Todavia não vá pensar-se que, com a maior acessibilidade da linguagem, as suas doutrinas sejam transparentes. Não. Em Platão, velou-as a alegoria, suficientemente complexa para obstar à profanação do vulgo; no Estagirita, o esoterismo, a concisão e compreensividade das suas expressões concorreram para a conservação do seu pensamento, cujo entendimento cabal exige um espírito de aptidões filosóficas. Mas apesar disto, a reforma de Aristóteles, com ter a justificá-la e preservá-la «a grandeza do seu engenho», viciou-a o consentir «o atrevimento» de «mentes inábeis» árabes e escolásticos, muito provavelmente, como já notou Menéndez y Pelayo  escreverem «a filosofia em prosa solta», falsificando-a, corrompendo-a e arruinando-a.

A inovação deste filósofo é assim a contraprova da lei da conservação, radicando mais a necessidade da alegoria como método filosófico e expressão do pensamento.

Conquanto se apresente com certo brilho, nada tem de original esta doutrina. As suas origens gregas devem filiar-se, remotamente, em Pitágoras, impondo aos discípulos o noviciado, para a iniciação no significado oculto das palavras — didática que na escola alexandrina atingiu a forma prática típica, ao ponto de Proclo só na calada da noite transmitir aos ouvintes o verbo revelador da verdade — e sobretudo, na íntima contradição em que se debatia a cultura helénica nos últimos tempos da sua existência autónoma: uma herança científica e filosófica, como outra não teve ainda o espírito humano, e a sobrevivência baixa de superstições religiosas.

Tentando um supremo esforço de conciliação e de defesa perante a nova conceção da vida, o cristianismo, o neoplatonismo procurou demonstrar a unidade da cultura antiga, — fonte comum donde nasceram como irmãs gémeas a filosofia e a religião.

O mito surgia assim, simultaneamente, como uma obra divina e a expressão da verdadeira filosofia. Todos os alexandrinos, mais ou menos, partilharam esta conceção; nenhum, porém, com tanta fortuna como Salústio. Expor todo o De diis et mundo seria uma derivação inútil; mas não deve omitir-se a sua classificação dos mitos e sobretudo a afirmação da utilidade destes: evitar o desprezo e profanação do vulgo e incitar o bom filósofo a pensá-los, pela verdade oculta e simbólica que encerram. Apesar deste paralelismo, Leão Hebreu muito provavelmente não conheceria no original a especulação grega; mas não ignorou a sua repercussão entre os árabes e mormente entre os judeus. No muito lido Moréh Nebuchim de Maimónides, porventura o livro que mais intimamente assimilara, encontrou uma completa justificação da alegoria, pelo duplo mistério, da essência e da didática, que envolve a metafísica e a física. As ideias fundamentais deste célebre rabino, a quem, não sem motivo, alguns apelidam de Santo Tomás do Judaísmo, constituem, embora sob outra forma, a fonte próxima dos Diálogos; mas não deve esquecer-se, como causa geral, que o pensamento hebraico sempre que se aproximou do pensamento não hebraico recorreu à alegoria, como único processus fecundo de enxertar ideias novas em ideias antigas, aceitar aquelas sem renunciar a estas, mantendo assim a unidade da crença e da razão.

Desde o exílio que este método baseava a atividade intelectual hebraica, chegando mesmo a constituir um verdadeiro género literário, a Midrasch. Em conclusão, pois, a doutrina de Leão Hebreu não é mais que a expressão sub specie temporis duma velha atitude.  


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