Joaquim de Carvalho, historiador da cultura portuguesa, por José V. de Pina Martins

Admiravelmente preparado para a reflexão filosófica, capaz como ninguém em Portugal de surpreender as conexões de civilização através da evolução e da revolução históricas, Joaquim de Carvalho foi também um grande historiador da filosofia e das instituições políticas. Estudámos o primeiro aspeto nas introduções dos volumes I e II da OBRA COMPLETA. Estudaremos o segurulo no volume VI. Nos volumes III e IV, consagrados à História da Cultura, cumpre-nos analisar os estudos mais importantes que ele dedicou a este domínio das ciências humanas. Porque Joaquim de Carvalho foi, no século XX, o maior historiador português não só da história da Cultura Portuguesa, mas da história da Cultura tout court. Neste III volume reúnem-se os trabalhos publicados de 1922 a 1948, nos vinte e cinco anos da juventude e da primeira maturidade. No volume IV reunir-se-ão os da plena maturidade, isto é os que ele publicou nos últimos dez anos da sua vida.

1. A biblioteca pessoal de um investigador representa não só uma documentação preciosa para ajuizar dos seus interesses histórico-culturais, filosóficos e científicos, mas ainda um instrumento de pesquisa de valor extraordinário: uma tal biblioteca, dado o seu carácter monográfico, é por assim dizer a arquitetura ideal e o lanço estrutural sonhado pelo seu organizador para a obra que, se não conseguiu realizar, pelo menos desejou construir. A biblioteca de Joaquim de Carvalho é formada por mais de vinte mil espécies, felizmente hoje pertencentes à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde ensinou. Não é a biblioteca de um bibliófilo, mas de um grandíssimo investigador. E, não obstante, Joaquim de Carvalho foi, como poucos universitários do seu tempo, sensível à raridade e à beleza de certas edições. A sua bibliofilia, como é evidente, estava intimamente relacionada sempre ou quase sempre com a importância e o valor dos textos. Para o demonstrar, bastaria aquilo que escreve no primeiro trabalho deste III volume da sua OBRA COMPLETA acerca do Discours pathétique do Cavaleiro de Oliveira. A sua «Notícia bibliográfica” de 1922 é, a tal respeito, um documento do maior interesse. O facto de reconhecer a raridade da espécie e a sua “inacessibilidade” estimula-o a estudá-la e a divulgá-la, sobretudo a divulgar o seu conteúdo, dada a sua importância “para o estudo da cultura portuguesa de setecentos e das reflexões, correntes de ideias e sentimentos que o terramoto de 1755 suscitou”.

O seu apreço sincero e profundo - dele, republicano histórico — pelos estudos de D. Manuel Il na sua obra capital Livros Antigos Portuguezes, é bem uma prova desta bibliofilia, deste reconhecimento de que o amor do livro está ou pode estar na origem de descobertas essenciais para a cultura portuguesa. Se o primeiro estudo deste volume é, a tal respeito, elucidativo, o último, de um quarto de século depois, é-o de maneira ainda mais nítida. Com efeito, tratando-se embora de uma pequena introdução ao catálogo de oitenta e sete espécies portuguesas raríssimas que estiveram patentes numa exposição, oferece interesse para julgar do que Joaquim de Carvalho pensava da bibliofilia e da bibliografia. Deixando de lado os elogios, formulados com perfeita elegância, acerca das qualidades insignes do bibliófilo que foi D. Manuel II, Joaquim de Carvalho sublinha que este conjunto bibliográfico é de importância fundamental como ponto de partida para um estudo sistemático da nossa cultura de Quinhentos.

Entendemos que era de manter, como se Joaquim de Carvalho estivesse na base da sua organização, a lista bibliográfica, isto é a menção dos títulos de obras expostas, com os resumos ou notas descritivas e didascálicas sobre a raridade das espécies e o seu valor. É que, mesmo que a responsabilidade da escolha tenha também pertencido a outrem (pelo menos através da sua concordância e da sua decisão), de facto as descrições são do mestre de Coimbra: o seu estilo é inconfundível e, além disso, alguns juízos sobre livros portugueses do Renascimento só podem ter sido redigidos por ele.

Joaquim de Carvalho compreende que um bibliófilo requintado como D. Manuel II dê atenção também às encadernações, aos livros sumptuosamente impressos em papéis de alta qualidade e com uma combinação sábia de caracteres, os quais, pela sua arquitetura e harmonia gráficas, pressupõem um culto íntimo da arte'. Não é só a raridade do cimélio, portanto, que está em causa. D. Manuel II não separava a beleza da edição da sua importância civilizacional (literária, histórica ou científica). O próprio facto de ter desejado constituir uma coleção única de livros portugueses do século XVI já é bem significativo do sentimento profundo, que o possuía, de que essa época histórica é o período áureo das grandezas nacionais. Sentindo-se, além disso, ligado pelo nome ao reinado manuelino (1495-1521), apostou no seu estudo através dos exemplares da sua biblioteca, já que, não sendo numerosos (não obstante o seu esplendor gráfico), marcaram, ainda pelo menos até 1540, a evolução da arte do livro em Portugal. Na biblioteca de D. Manuel II, como põe bem em evidência Joaquim de Carvalho, encontram-se representados produtos fundamentais do Humanismo, da Ciência, da Técnica e do Direito do nosso Renascimento. A bibliofilia e a bibliografia transformam-se, deste modo, em fonte de um saber metódico, em verdadeiro conhecimento crítico. É por isso que, como na introdução do catálogo se observa, a bibliofilia e a bibliografia estão na origem de aspetos não secundários da história da cultura.

Se é verdade que os cimélios mais esplendorosos da nossa prototipografia quinhentista apareceram durante o reinado de D. Manuel I, desde a Vita Christi (publicada ainda no ano da morte de D. João II) até, por exemplo, ao Espelho de Cristina (1518), não é menos verdade que a tipografia portuguesa do reinado de D. João III, mais orientada para publicações menos sumptuosas mas mais aptas, pelo seu pequeno tomo, formato e pelo maior número de exemplares, à difusão da cultura, se limitou artística e tecnicamente a continuar a experiência anteriormente adquirida, mesmo através de impressores, como Germão Galharde, que começaram a sua atividade ainda no reinado de D. Manuel.

O ensaio sobre “A livraria de um letrado do século XVI —Fr. Diogo de Murça” é outro exemplo de como, a partir da análise das obras de uma biblioteca, é possível reintegrar aspetos fundamentais da mentalidade humanista que teve uma função de relevo na Universidade portuguesa do Renascimento. Nada de sólido se poderá escrever de futuro sobre o erasmismo português sem citar alguns passos da introdução à lista bibliográfica, não obstante a grande cautela com que Joaquim de Carvalho analisa as orientações erasmianas da forma mentis de Diogo de Murça, antigo discípulo de Paris e de Lovaina. Foi talvez por isso que Marcel Bataillon considerou precioso este trabalho. Possuímos hoje, quarenta e cinco anos depois da publicação deste contributo (embora tenha sido refundido e desenvolvido cerca de duas décadas mais tarde), instrumentos de pesquisa mais eficazes do que em 1927. Não cremos, porém, que seja possível a um investigador, mais apetrechado filologicamente, ir além do que estabeleceu então Joaquim de Carvalho. A identificação das edições, a partir de dados muito vagos fornecidos pelo manuscrito, é, de modo geral, corretamente feita, embora se possa, às vezes, discordar de uma ou outra sugestão. Só um exemplo: o n.º 20 “Ciprianj opera” tanto pode ser, de facto, a edição lionense de 1535, que era corrente em Portugal, como a própria edição princeps de 1520, ou a segunda de 1522 (ambas foram mais tarde censuradas no prefácio por imposição inquisitorial). No n.° CCXXVI do segundo inventário, que compreende livros idos para Coimbra do Colégio da Costa, menciona-se novamente um “Cyprianus”: o estudioso refere-se então à edição de 1520 assim como à terceira de 1525, mas não à de 1522. Com as noventa e quatro unidades da primeira relação, estas duzentas e oitenta e quatro espécies perfazem o número de trezentos e setenta e oito livros quinhentistas, um manancial riquíssimo que era, na verdade, um instrumento admirável para o estudo não só do Humanismo e da teologia humanística, mas da ciência, do pensamento e da história da Antiguidade e do Renascimento.

Embora este trabalho tenha sido ulteriormente completado pelo aparecimento de um outro manuscrito, representa, em Portugal, o primeiro ensaio importante para o estudo das tendências gerais do Humanismo, a partir do inventário de uma biblioteca renascentista. Outros inventários foram depois descobertos, mas nenhum tão importante como este.

2. Joaquim de Carvalho escreveu antes dos quarenta anos, em histórias gerais de Portugal e da nossa Literatura, colaboradas pelo escol universitário português, os cinco capítulos deste volume que versam as instituições de cultura da Idade Média e do Renascimento (séc. XVI). Não se trata de contribuições monográficas, metodologicamente arquitetadas com a explícita finalidade de apresentar uma visão crítica e histórica original das nossas instituições culturais. Além disso, o professor de Coimbra dominava ainda melhor a época moderna, a partir do século XVI até ao século XIX, não só para o debuxo histórico da cultura mas também do pensamento filosófico. Não obstante, lemos ainda hoje com proveito estas sínteses, escritas curremte calamo num estilo claro e seguro, que nos informam, elucidam, esclarecem e reconstituem, de maneira sugestiva e nítida, o funcionamento das nossas instituições da Idade Média e do Renascimento.

São cerca de duzentas páginasem que o investigador é simultaneamente professor, pondo em relevo o factor determinante, formativo e informativo, das escolas e bibliotecas, na transmissão do saber e do método, desde o século XII ao século XVI, em quase meio milénio de história portuguesa. O debuxo é delineado num estilo inconfundível e, às vezes, de fino recorte literário, o que não exclui rigor e atenção às fontes, que o estudioso procura sempre avalizar através da sua crítica.

Embora a elaboração destas sínteses não tenha sido efetivada segundo uma orientação metodológica predominantemente erudita, cujo aparato tornaria a leitura difícil e monótona, a despreocupação aparente não exclui remissões aos documentos e às nascentes de informação, as quais, para maior acessibilidade de contacto, são indicadas sumariamente no próprio texto.

Outra preocupação do extensor é a de estabelecer os quadros institucionais dentro das suas fronteiras nacionais e cronológicas, mas procurando sempre perspetivá-las num conspecto internacional, pois, como é sabido, o conceito de fronteira nacional é geneticamente muito posterior a esta época.

Joaquim de Carvalho é dotado de uma capacidade verdadeiramente excecional de exposição clara e simples. A vocação do professor patenteia-se em cada página, sem, porém, que a arquitetura compositiva denote a deformação profissional, identificável, por exemplo, com uma tal ou qual suficiência, com o tom magistral e dogmático. Trabalhos de síntese como estes pressupõem uma imensa informação erudita, um domínio perfeito das matérias tratadas, com o respeito do evolver das situações históricas, dentro dos esquemas institucionais definidos. Ser, além disso, capaz de uma exposição límpida e concisa, exata e fiel, em prosa não só corrente e correta mas elegante, é que só a pouquíssimos investigadores é concedido. Com cerca de uma dúzia de anos de experiência professoral, Joaquim de Carvalho é senhor do seu tema através, decerto, de uma preparação informativa extraordinária, mas ainda pelo poder de clarificação dos mecanismos da dinâmica histórica, das relações de causa e efeito, sempre atento à verificação de que os resultados, no plano do florescimento civilizacional, pressupõem o funcionamento institucional da cultura. O saber é, assim, transmitido pelo livro —manuscrito e depois impresso —, acumulado metodicamente nas bibliotecas (o que significa, pois, um princípio de ordenação constante) e pela traditio magistral, que está na origem da formação de docentes e da criação do espírito crítico. O método aprende-se na escola e na biblioteca. Não há.síntese capaz, verdadeiramente científica, se não for precedida pela análise, pelo ensaio da experiência, pelo estudo atento do concreto através de uma orientação criteriosa, isto é do método. Joaquim de Carvalho, nas suas vastas, arejadas sínteses, põe tudo isso a claro e oferece-nos, portanto, um quadro geral, ao mesmo tempo debuxo colorido do funcionamento das instituições da cultura e traçado da sua evolução através dos séculos. Esclarece, pois, o mecanismo da produção cultural e da sua transmissão pelas gerações que se sucedem. Porque o que está em causa na razão de ser desta produção e dessa transmissão é ainda e primariamente o homem. Verificamos, por consequência, que, a uma certa forma de humanismo, ainda não definido por categorias modernas, se segue o humanismo renascentista, o qual nasce também através de análogos mecanismos, mas numa situação histórica em que a ressurreição da Antiguidade, nos seus monumentos mais insignes, irá em breve criar uma nova cultura, uma nova ciência, uma nova civilização.

3. O Humanismo do Renascimento possui, em Portugal, textos importantíssimos relacionados com a cultura europeia, mas, a nível universitário, foi abafado por uma programação escolástica, logo que se falhou a tentativa de instituir na Universidade de Coimbra, um pouco antes dos meados do século XVI, o ensino livre das letras humanas, com o Colégio das Artes. Os professores de Bordéus levaram à cidade do Mondego uma aragem fresca de liberdade espiritual, logo asfixiada, porém, pelos primeiros processos inquisitoriais aos lentes recém-chegados. E verdade que a Companhia de Jesus, através de alguns dos seus maiores teólogos e filósofos como Suárez, Pedro da Fonseca e Molina, iria ainda dar às Universidades de Coimbra e de Évora uma hora de glória, já que o próprio Descartes se serviria dos Conimbres, como então se dizia em França, no colégio de La Flèche. Mas enquanto por essa Europa fora começavam a impor-se os Copérnicos, os Galileus, os Bacon, os Descartes e os Espinosas, em Portugal continuávamos, nas duas Universidades, a discutir escolasticamente Aristóteles e a congeminar aristotelicamente exegeses psitacistas da Escolástica. Com as honrosas exceções, naturalmente.

Joaquim de Carvalho, ao estudar as instituições de cultura do século XVI (trabalho breve de 1933), oferece-nos o quadro minucioso da estrutura hierárquica das nossas Universidades de Coimbra e Évora, o programa dos estudos para alcançar os graus académicos e uma descrição suficientemente elucidativa dos problemas e assuntos debatidos nas conclusões e oposições. Tem razão em observar que, de programas como estes, em que o Aristóteles da Antiguidade era reduzido a uma explicação puramente escolástica, não podia resultar progresso algum para o pensamento e a ciência.

O declínio da cultura nacional nos fins do século XVI e durante todo o século XVII, quando na Europa se desenvolvia uma florescente renovação científica, tem, na sua origem e em grande parte, uma atividade universitária esterilizante da criatividade intelectual, através de programas sistematizados em questiúnculas que só serviam para exercitar o espírito numa dialética vazia, divorciada do saber autêntico.

O mestre de Coimbra, contudo, não se limita, como universitário, a pôr em relevo os aspetos negativos desta deformação intelectual. O seu pequeno mas lúcido estudo sobre “A atividade científica da Universidade de Coimbra no Renascimento”, publicado já no ano de 1937, é, a tal respeito, bem revelador. Aceitando os cálculos de Sousa Viterbo para a produção bibliográfica nacional do século XVI (cerca de 1.200 livros, aumentados de algumas dezenas, graças em grande parte às investigações de D. Manuel II), Joaquim de Carvalho deve ficar muito aquém da realidade. Sabemos hoje, depois das mais recentes investigações, que a produção bibliográfica nacional foi, no século XVI, de mais de 1.500 unidades, pois Anselmo, já em 1926, apresentava mais de 1.300 e, depois de então, descobriram-se muitas, mesmo muitas dezenas. Coimbra ocupa, de facto, o segundo lugar, logo a seguir a Lisboa, e esse facto deve-se decerto às atividades docentes e eruditas da Universidade.

Como podia, porém, a partir da segunda metade do século XVI, uma Universidade cujo ensino se degradava cientificamente, alimentar o fogo sagrado da criatividade científica? Joaquim de Carvalho reconhece que o declínio da nossa cultura coincide com o declínio da Universidade, orientada num ensino puramente livresco.

Pedro Nunes seria decerto uma exceção. Não obstante estas limitações, a Universidade teve, mesmo assim, uma função não secundária no estímulo à produção bibliográfica e à pesquisa. Porque essas limitações estão também relacionadas com o desinteresse do Humanismo em relação ao estudo da realidade objetiva, da natureza, do cosmos. Só que, fora de Portugal e sobretudo além-Pirenéus, os fins do século XVI e inícios do século XVII são assinalados por uma curiosidade nova e ardente no sentido de novas pesquisas, incluindo a dos métodos científicos modernos, enquanto, em Portugal, se continuava a dissertar de acordo com lúdicas congeminações aristotélicas, à luz de achadilhos subtis, pseudofilosóficos. Joaquim de Carvalho apresenta-nos, na sua exposição, as razões essenciais de todo este declínio, com um equilíbrio modelar de historiador sereno da cultura.

O estudo sobre o texto de uma edição raríssima, Contra os juízos dos astrólogos de Fr. António de Beja(Lisboa, Germão Galharde, 1523) foi publicado em 1943, quando o seu autor tinha ultrapassado de pouco os cinquenta anos. Este estudo, a preceder a reprodução diplomática do texto, prova à saciedade que o professor de Coimbra amava a cultura do primeiro Renascimento humanístico português, reconhecendo embora que Fr. António de Beja era uma “mente de formação medieval”.

Num dos nossos ensaios sobre o Renascimento discordámos da opinião do mestre, pois a dependência ostentada pelo frade em relação a Giovanni Pico della Mirandola inculcaria, pelo contrário, a sua abertura ao Humanismo italiano. Na realidade, parece-nos hoje, à distância de dezassete anos dessa discordância, que a obra do frade jerónimo permanece fiel a aspetos da parenética pré-renascentista, embora aquele livro signifique já algo de novo na história da nossa cultura. Em pleno florescimento humanístico do Renascimento, na Florença de Lorenzo dei Medici, um Savonarola ergue-se contra aspetos, que ele julgava pagãos, da nova civilização renascentista. No caso específico da astrologia judiciária, Savonarola foi discípulo de Giovanni Pico e, assim, os dois eram já modernos. Joaquim de Carvalho põe justamente em relevo que a importância do tratado se situa mais na perspectiva de documento ou texto significativo para o estudo da mentalidade espiritual do círculo da rainha velha, D. Leonor, sensível ao influxo de uma religio interior, à maneira de Fr. Jerónimo de Ferrara, anunciando já, pelo menos em certos aspetos, a religião erasmiana do Enchiridion militis christiani, depurada e limitada ao essencial da fé.

O interesse de Fr. António de Beja pela “parisina ciência” a que se refere também Joaquim de Carvalho, sublinhando sobretudo a sua dependência das fontes italianas, explica-se pelo facto de Giovanni Pico della Mirandola ser discípulo, não só de Florença e de Pádua, mas também de Paris, como observa no início das suas Conclusiones, expressando uma grande admiração pelo estilo sorbónico. Duas décadas depois da investigação do mestre de Coimbra, pudemos identificar outros passos dependentes das Disputationes aduersus astrologiam diuinatricem. Isso, porém, em nada diminui o valor desta pesquisa que prova como Joaquim de Carvalho, com meios bibliográficos limitados como eram os da Universidade coimbrã nos anos de 1940, supria essas deficiências do meio com uma inteligência agudíssima, com uma capacidade invulgar de indagação e de relacionação criativa da cultura. Num outro domínio, porém, ele pôde ainda ir mais além, no que se liga à especificidade do Renascimento português, que é sobretudo valorizado pela grande obra das nossas Descobertas geográficas.

4. Três ensaios, insertos neste volume, podem analisar-se na ótica desta perspectiva, dos que Joaquim de Carvalho escreveu na sua primeira maturidade: os dois primeiros, de 1938 e 1940, respetivamente acerca de “Os Descobrimentos e a ação colonizadora dos Portugueses como factor de progresso científico e de civilização” e “Influência dos Descobrimentos e da colonização na morfologia da ciência portuguesa do século XVI”. O terceiro, mais breve mas nem por isso menos sugestivo, é de 1943 e intitula-se “O Pensamento Português da Idade Média e do Renascimento”.

Este último trabalho não passa de um indículo conciso e breve ou de uma enunciação sintética das reflexões que o professor de Coimbra tinha elaborado no quarto de século que vai de 1918 até 1943. Lê-se de um só fôlego, pois está escrito num ritmo rápido, traçando as grandes linhas de força do pensamento português, desde os teólogos e teóricos medievais como Santo António, Pedro Hispano, Álvaro Pais e Diogo Lopes Rebelo até humanistas e sábios do século XVI como Estêvão Cavaleiro, Pedro Margalho, Pedro Nunes, António Luís, João de Barros e Garcia da Orta. Aos que manifestarem reticências perante a existência histórica de um pensamento português coerente durante a Idade Média e o Renascimento, Joaquim de Carvalho opõe dados concretos, exatos e fundados em obras relevantes da produção bibliográfica nacional e em correntes de doutrina que, se não eram específicas de uma cultura estritamente nacional, pertenciam ao pensamento dos Portugueses de Portugal vivendo no país ou no estrangeiro. Esse pensar, talvez mais científico do que filosófico, está ligado, no século XVI, sobretudo a Pedro Nunes e a Garcia da Orta, nomes relacionados com a obra da expansão ou, pelo menos, da experiência das navegações e dos contactos com o Oriente.

Na mesma linha de discurso é situável o primeiro destes três estudos, redigido de um só jacto, através de uma ordenação mnemónica mais de reflexões e ideias que eram o resultado de um longo e profundo aprendizado— do que de factos e documentos. Joaquim de Carvalho propõe-se, neste texto, sublinhar principalmente a importância dos Descobrimentos como factor de progresso científico, sem dissociar deles o que chama “a ação colonizadora dos Portugueses”. Tendo sublinhado acima de tudo a conquista do espaço geográfico, não deixou de evidenciar o papel essencial das viagens orientadas através do Atlântico no sentido norte-sul junto à costa de África, com a demonstração de que mesmo no Equador há zonas habitáveis e habitadas. Este juízo de verificação traz implícito um outro, a saber: a navegação no ynar africano representa, para a ciência, um papel de maior relevo do que a descoberta casual do Novo Mundo. A convicção de que o “achamento” do continente americano é o facto central dos Descobrimentos — o qual deixaria a perder de vista, até, a viagem de circum-navegação do globo — é corrente mesmo entre investigadores bem informados, especialmente entre os estudiosos do Humanismo. É esta uma prova da ignorância monumental do método com que os Portugueses agiram nas suas progressivas navegações atlânticas. O mestre de Coimbra cita o juízo de Pedro Nunes, formulado já em 1537, segundo o qual os Portugueses descobriram uma realidade “de que até os santos duvidavam”. Foi graças aos Descobrimentos que pôde desenvolver-se a nova ciência que tem, por exemplo, no De crepusculis de Pedro Nunes, de 1542, um dos seus textos fundamentais na história científica moderna.

Pelo que respeita à nossa colonização, o professor de Coimbra sublinha a importância da “aproximação com o nativo”e a superação “dos preconceitos de raça” e considera esta última, como “honra, glória e exemplo da colonização portuguesa”, sem, aliás, ignorar “as inevitáveis violências e rapacidades”.

O trabalho de Joaquim de Carvalho é mais uma prova da serenidade lúcida e do juízo crítico que devem caracterizar a indagação de todo o verdadeiro historiador que se preze.

Dos três estudos mencionados, o que nos falta analisar é mais valioso ainda do que os outros dois já que, embora escrito com a mesma clareza e elegância, foi construído sobre uma documentação mais vultosa e implica a posição de uma tese de maior originalidade. Antes de mais, o seu autor afirma a existência histórica de uma ciência portuguesa do século XVI, o que quer dizer todo um conjunto orgânico de- conhecimentos suscetíveis de serem atribuídos à criatividade dos nossos cientistas: matemáticos, geógrafos, cosmógrafos, cartógrafos, botânicos, astrónomos e filólogos.

Sem esquecer Martinho de Figueiredo, cuja edição da Epistola Plinii (Germão Galharde, Lisboa, 1529) é porventura menos valiosa pelo seu rigor do que pela novidade do método em Portugal, Joaquim de Carvalho salienta o que representa como lição de bom senso o tratado de Fr. António de Beja contra uma astrologia supersticiosa, o papel de D. Francisco de Melo e de Pedro Margalhoe sobretudoo alcance de obras como o De crepusculis e o Tratado da Esfera de Pedro Nunes, assim como o interesse científico do Esmeralda de situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira. Além disso, não esquece também livros ainda hoje pouco estudados como o De occultis proprietatibuse os cinco capítulos Problematum (1540) de António Luís, o autor da Panagyrica oratio a exaltar as navegações, promovidas pelos reis portugueses.Como é natural, Garcia da Orta não podia deixar de ser referido, não só pelo contributo original dos seus Simpres e Drogas (Goa, 1563) mas principalmente devido à sua repercussão europeia. A citação de um passo da Imagem da vida cristã de Heitor Pinto é bem significativa, porque tanto o moralista como já antes Pedro Nunes tinham expresso a perfeita consciência de que, sem a ciência matemática e astronómica, os Portugueses não teriam podido chegar à Índia por mar, demonstrando a comunicação entre os Oceanos Atlântico e Indico.

Foram, então, os Portugueses homens mais de ação do que de contemplação ou de especulação? Na verdade, o que fizeram foi o resultado de uma preparação metódica (científica e técnica), portanto de uma reflexão persistente e sistemática, que os levou a afinar os meios aptos a transformar em astronómica uma navegação a princípio costeira. Os Descobrimentos identificam-se, portanto, com o nosso Renascimento.

5. Deixando sem referência especial outros contributos de valor dos anos 1926-1928, em que se patenteiam já as qualidades eminentes que iriam mais tarde guindar Joaquim de Carvalho à altura do nosso maior historiador da cultura portuguesa, e sendo forçado também a não fazer qualquer referência a outros dois ensaios dos anos 1945-1946 (qualquer deles muito valioso), fixemos a nossa atenção no discurso sobre “Galileu e a Cultura Portuguesa sua contemporânea”, de 1944, e no excurso sobre “Teófilo Braga”, de 1948, ambos já, por consequência, da maturidade do insigne professor.

O estudo sobre Galileu e a nossa cultura lança a hipótese de o sábio italiano ter conhecido a obra de Pedro Nunes, nomeadamente o De crepusculis, que teve a sua repercussão europeia e sublinha que foi Cristóvão Clávio, “por antonomásia o Euclides da Companhia de Jesus”, que divulgou entre nós, a partir de 1631, as descobertas científicas de Galileu (que teve, aliás, nos matemáticos e astrónomos jesuítas, alguns dos seus admiradores). O Sidereus nuntius, com efeito, abalou o edifício da ciência ptolomaica e estabeleceu novas exigências para a investigação da Natureza com base na observação experimental, facilitada pela invenção de mais potentes meios de análise física. As notas com que Joaquim de Carvalho enriqueceu o seu discurso poderiam permitir-nos inseri-lo no volume da OBRA COMPLETA, justamente na parte consagrada à História da Ciência. Mas o texto, pondo em relevo as relações culturais entre Galileu e Portugal, através especialmente de Cristóvão Clávio, impunha que devesse figurar entre os trabalhos da maturidade do professor de Coimbra, consagrados à História da Cultura Portuguesa. O contributo original dado por Joaquim de Carvalho a este domínio das ciências humanas, torna-os de uma importância imensa e vem, portanto, provar que nem todos os docentes da Companhia de Jesus se limitavam a glosar, nos seus colégios, a doutrina do Perípato. Também a Portugal chegava o eco das grandes descobertas de Galileu e de outros sábios e filósofos europeus como Descartes e Espinosa. Na memória de Galileu apostou-se o mestre de Coimbra em honrar “o amor da Ciência, a perseverança no trabalho, o escrúpulo moral e intelectual da exatidão, e a alacridade e o risco das ideias”. Virtudes, estas, que o historiador da cultura portuguesa cultivou também em alto grau, como prova a sua obra.

Mas o estudo sobre Teófilo Braga oferece, para a nossa crítica, um alcance ainda maior. Não conhecemos, sobre aquele autor, indagação alguma mais objetiva, mais serena, mais fundada. Nela se elogiam, como não podia deixar de ser, qualidades invulgares de inteligência, de austeridade, de afinco ao trabalho, de fidelidade ao próprio ideário político e filosófico. Mas sem esconder o orgulho luciferino, a vaidade incomensurável, o ressentimento e os ódios. O estudioso e o historiador são julgados à luz de comparações iluminantes com Herculano, com Oliveira Martins, com Antero de Quental. Os defeitos da falta de rigor, dos prejuízos teoréticos, da formulação de um sistema, copiado de Comte e de Littré, antes do apuro da documentação, frequentemente postergada ou mesmo manipulada, as interpretações inexatas das teorias de Giambattista Vico e de Michelet, o primarismo na judicação, a facilidade de aventar juízos inapeláveis, dogmáticos, como se as próprias opiniões não pudessem discutir-se, tudo isso é equilibradamente analisado e julgado por Joaquim de Carvalho, na ótica de um critério de uma grande exigência científica, sem acrimónia, sem unilateralidade, sem parcialidade. “A primeira condição da objetividade —escreve o professor de Coimbra, a propósito do fecundo polígrafo— assenta na informação minuciosa do maior número possível de documentos, sem que nenhum seja desvirtuado ou deliberadamente excluído. É a condição fundamental, na história política como na económica, na história literária como na filosófica”. Não serve a ciência quem “confiou demasiadamente no pressentimento alvoroçado da intuição e trocou frequentemente o raciocínio severo pela imaginação escandecida”. E, não obstante, quem escreve um juízo tão implacável pensa que não devemos postergar ou esquecer essa obra, mas discuti-la com serenidade e rigor críticos. “O seu pensamento filosófico foi vassalo, a atitude científica eivada de ídolos e de preconceitos, a investigação nem sempre escrupulosa, as generalizações frequentemente precipitadas?”. «Também não há dúvida —responde o biógrafo de Teófilo—, e tanto que cumpre ler-lhe a obra com prudente reserva e algum arame farpado; mas trabalhou como ninguém em Portugal [...]”. Merece, portanto, não a nossa concordância e o nosso assentimento, mas o nosso respeito e a nossa atenção vigilantes.

Este volume III da OBRA COMPLETA de Joaquim de Carvalho, primeiro dos dois consagrados à História da Cultura, já nos recomenda, por consequência, um grandíssimo historiador da civilização cultural portuguesa, senhor das qualidades excelentes, que ele irá aperfeiçoando cada vez mais. Sendo integrado por obras ainda da juventude e da primeira maturidade, estas já revelam as virtudes eminentes de um pensamento histórico que é ao mesmo tempo reflexão crítica e ciência rigorosa, sentido do respeito pelas fontes do saber, mas sem acorrentar a reconstituição dos eventos à constrição dos documentos, que devem subjacer mas não violentar, sensibilidade delicada (que é uma forma de inteligência, aplicada ao objeto do conhecimento histórico), aberta às conexões factuais e às influências determinantes, sobretudo tratando-se de correntes de ideias e de textos literários e culturais.

Estas características tão raras, que já são evidentes nos escritos deste volume, vão ainda tornar-se mais perfeitas, por uma maior exigência de clareza, de elegância da forma e por uma mais subtil e profunda penetração analítica, nos escritos que aparecerão no volume IV, compreendendo os trabalhos da plena maturidade do investigador.

Paris-Lisboa, Julho de 1982.

JosÉ V. DE PINA MARTINS


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