«Discours pathétique» do cavaleiro de oliveira - notícia bibliográfica

A presente edição é cópia da edição dita fac-simile que o bibliógrafo e estudioso da obra do Cavaleiro de Oliveira, Joaquim de Araújo, fez imprimir no Porto, em 1893, na Tipografia Ocidental, adotando-se a mesma mancha tipográfica e estampando-se os mesmos erros. Se as primeiras edições eram raras, mormente entre nós, como é óbvio, — Joaquim de Araújo teve notícia apenas de três exemplares respetivamente existentes no British Museum, numa Biblioteca Parisiense e na livraria do bibliófilo João Evangelista Guerra Rebelo da Fontoura — não se pode dizer que a sua reedição difundisse o conhecimento deste livrinho, pois apenas fez uma tiragem de 36 exemplares, que discretamente distribuiu por bibliófilos e amigos.

A inacessibilidade subsistia, pois; e, já para a remover, já como fonte para o estudo da cultura portuguesa de setecentos e das reflexões, correntes de ideias e sentimentos que o terramoto de 1755 suscitou — assunto ainda não suficientemente versado entre nós resolvemos dá-lo de novo à estampa.

De seu autor, nada diremos; mas o livrinho e sua ação no vigiado meio intelectual português seu coevo bem merece que se atente um momento.

Sabia-se que Francisco Xavier de Oliveira, (1702 t 1783) cavaleiro da Ordem de Cristo, natural de Lisboa, fora relaxado (queimado) em estátua em 1761 por ter escrito este Discours pathétique; mas o certo é que, ao descrevê-lo, os bibliógrafos acusavam claramente o seu desconhecimento. Cunha Rivara, o diligente bibliotecário eborense, na notícia apenas à edição que dirigiu na Biblioteca Portuguesa das Cartas do nosso autor (Lisboa, 1855) confessa não ter podido “ver exemplar algum desta obra”, conhecendo “apenas o seu conteudo pelo sumário, que della fez a sentença do Santo Officio quando a condemnou e a seu auctor”. Inocêncio, no Dicionário Bibliográfico (vol. III, n.° 2010), repetindo o título que Rivara referira —Discursos patheticos a respeito das calamidades presentes succedidas em Portugal, dirigidos aos seus compatriotas e em particular a S. M. F. — acrescenta:

“Este título parece ser a tradução do que a obra tem originariamente na língua francesa, em que foi impresso em 1756. Foi esta a que serviu de base ao processo que a Inquisição fez a Oliveira. Não sei onde exista algum exemplar della...”.

Solicitada assim a atenção de bibliófilos e estudiosos, não faltou quem a procurasse. O conde de Azevedo, José Gomes Monteiro, Augusto Soromenho e Camilo Castelo Branco, baldadamente a pesquisaram.

Mais afortunado, Joaquim de Araújo conseguiu poder servir-se dum exemplar; e hoje, pela sua reedição, e pela publicação do processo do Tribunal a que chamavam do Santo Ofício, é possível reconstituir este capítulo da bibliografia oliveiriana.

 Impressionado pelo terramoto, que tão vários sentimentos despertou e tantas ideias sugeriu na política, na ciência e na filosofia, ocupando ainda um momento do pensamento de Kant, o Cavaleiro de Oliveira, ao arrepio da papelada devota que inundava Portugal, oferecia também os seus alvitres.

Na verdade, em 1756, publicava em Londres o Discaurs pathétique au sujet des calamités presentes, arrivées en Portugal. Adresse a mes compatriotes et en particulier a Sa Magesté Très-Fidèle Joseph I. Roi de Portugal, fazendo-o seguir imediatamente, senão acompanhar simultaneamente duma tradução inglesa. Não vimos a edição francesa; mas pela minuciosa análise que Fr. Domingos da Encarnação dela fez e que adiante vai transcrita, parece-nos poder afirmar-se que o texto era absolutamente conforme à edição de 1762, que agora reproduzimos, divergindo apenas na paginação e no formato. Corrobora ainda este juízo o exame da tradução inglesa de 1756, pois acusa um original conforme a edição de 1762.

Desta tradução inglesa temos presente um exemplar, pertencente ao bibliófilo portuense sr. Joaquim Gomes de Macedo, que gentilmente no-lo cedeu. E um volume de 52 páginas, cujo frontispício é como segue:

A / Pathetic Discourse / On The Prefent Calamities / of / Portugal. / Addsessed To / His Countrymen, / And, in particular, / To His Most Faithful Majesty, / Joseph, King of Portugal, / By the Chevalier De Oliveyra. / Translated from the Frendi. / London: / Printed for R. Baldwin, at the Rose in Pater-Noster —Row / MDCCLVI (Price One Shilling.)

Mal publicado o texto francês seu diserto autor envia-o para Lisboa. O Dr. Joaquim Pereira da Silva Leal, membro da Academia Real da História Portuguesa, tem dele conhecimento em 27 de Junho de 1756. Passando-o pelos olhos, viu logo que “se opunha a religião catholica Romana, aos bons costumes, e que era satirico”, resolvendo delatá-lo “por descargo de consciencia”.

Prevenida a mesa do Santo Ofício, este, conquanto não tivesse ainda “individual noticia de todos os perniciozos dictames de que trata”, propunha como medida imediata a publicação dum edital proibindo a sua leitura e cometendo a obrigação de o denunciar “antes que com o tempo faça menor impressão nos animos dos Portuguezes, este atrivimento, que sugerio o Demonio para arruinar a religião neste Reyno” (13 de Julho de 1756).

De facto, em Outubro deste ano era publicado o seguinte edital, abrangendo mais livros, e que reproduzimos na parte que nos respeita, por o julgarmos inédito:

“Os do Conselho Geral do Santo Officio contra a heretica parvidade, e apostasia nestes Reynos e Senhorios de Portugal, etc.

Fazemos saber a quantos a prezente virem, ou della por qual quer via tiverem noticia, que conciderando Nós a obrigação, que temos não só de proceder contra os que offendem a infallivel certeza da nossa Santa Fé Catholica, mas tambem de prevenir que senão offenda, removendo qualquer occasião de perigo, e ruiria espiritual: Fomos informados, que nesta Cidade de Lisboa se introduzio, de poucos dias a esta parte, hum caderno em quarto, impresso em Londres na Lingua Francesa com o titulo seguinte =: Discours Pathetique, au Suget des cal amites presentes arrivies em Portugal adrese ames compatriotes, et en particularier a Sa Mageste tres Fidele JozephIº Roy de Portugal par le Chavalier de Oliveyra a Londres 1756 =. No qual caderno, entre outras muitas, e atrevidas declamaçoens contra a nossa verdadeira Religião, affirma seo Author ser errado o uzo, que tem os Portuguezes na adoração das Sagradas Imagens, sendo nesta parte maiores idolatras, que os que tem havido; e que por este motivo todos os Santos no seu dia depercárão a Deos a total ruma de Lisboa, como tambem as almas do Purgatorio a quem os Portugueses, suppoem fechadas em hum Purgatorio chimerico, e aquem imaginão ser proveitosas a Orações, e Sacrificios, que por ellas fazem. Impugna a prohibição da Biblia na Lingua vulgar, por que diz que dá occazião a que se ignore a Ley, que se deve observar; e satyriza o tribunal do Santo Officio, a quem chama officina de maldades, e ruína do Reino, por impedir a liberdade do Judaismo e castigar por modos extraordinarios os comprehendidos nelle, tirando aos réos a defeza natural. Intenta mais o dito Author persuadir a Sua Magestade Fidelissima, que quando o seu Povo, cheio de erros, clame pela conservação do Santo officio com o fundamento de ser estabelecido por alguns Papas, e por ellas approvado o seu procedimento, assente que isto só o perzuadem os homens ignorantes, e manifestam.te máos, asseverando q os Papas farão os inventores destes erros, e abuzos q reinão em Portugal, como homens q erão viciosissimos, corruptissimos e m.tos delles homicidas, adulteros, incestuosos, Simoniacos, sacrilegos, impios e Atheistas, que a sua jurisdição só se estende aos Dominios q tem na Italia, como seu Soberano, e à Cid.e de Roma, como seu Bispo, e q o contrario só o podem persuadir os inimigos do Rey, e os mais Ecclesiasticos deste Reyno cheios de erros, e armados de Sofismas, e artificios.

Conformando-nos com as disposiçoens dos Súmos Pontifices, ordenámos se passasse a pres.te pela qual auctoritate Apostolica, e virtude de S." obed.a, e sob pena de Excomunhão maior Late Sententiae, cuja absolvição a nos reservamos, mandamos a todas, e quaes4 pessoas, de qualq gráo, ordem, estado, condição, dignid.e e preminencia  sejão, cujos nomes, e cognomes aqui havemos por expressos, e deeclarados, tiverem, ou á sua noticia os dos Caderno, e Livrinhos, acima confrontados, ou quaesqr obras dos b.mos A A., q ja tenhão sahido á luz, as não leião mais do dia, em 4 esta nossa Carta for publicada, antes os entregarão, ou farão entregar na Meza do S.t° Off.° em termo de tres dias pr.os seg.tes, q lhes assignamos pelas tres Canonicas admoestaçoens, termo preciso, e premptorio, dando-lhes repartidam.te hum dia por cada admoestação. E sob as m.mas penas mandamos a todas as sobred.as pessoas, e qualq. delias, q.r souber q. outras, passado o d.° termo, tem, ou lê os d.os Cadernos, ou Livros, ou outro algu dos m.mos A A, no-lo venhão denunciar dentro de sem.e termo, estando nesta Cide. e os q. estiverem fóra della, aos Comissarios do S.to Offi.°; e onde os não houver, a seus Parochos p.a q. elles nos dem a tal not.a, alias humas, e outras pessoas, q o cont.ro fizeram, além das sobred.as penas, incorrerão nas mais declaradas nos Sagrados Canones, e Bullas dos Sümos Pontifices contra os q. tem, ou lem Livros prohibidos. E p.a q. esta nossa Carta venha á not.a de todos, mandamos com a m.a pena de excomunhão maior a todos os Priores, Reitores, e Curas, e aos Prelados dos Conv.tos deste Reyno aq. esta for aprezentada a leião, e publiquem, ou fação ler, e publicar em suas Igrejas na estação, ou pregação do p.ro Domingos, ou dia S.to depois de lhes ser dada; e lida, e publicada, será fixada nas portas principaes de suas Igrejas, aonde não Será tirada, sem nossa licença.

Dado em Lisboa sob nossos Signaes, e Sello do Santo Officio aos 8. de Outubro de 1756 Jacome Esteves Nogueira Secretario do Cons.° Geral a fez = Nuno da S.a Tellez = Antonio Ribeiro de Abreu = Francisco Mendo Trigoso = Simão Jozé Silveiro Lobo”.

A esta proibição, o Cavaleiro de Oliveira respondia com uma nova edição do Discours. No Catalogo da importante livraria do falecido senhor José de Almeida Campos Filho (Porto, 1897), a pág. 67, sob o n.° 1409, lê-se o seguinte: “Discours pathétique au sujet des calamités presentes arrivées en Portugal adressées a mes compatriotes et en particulier a Sa Majesté trés-Fidéle Ioseph I, Roi de Portugal par le Chevalier d'Oliveyra (Francisco Xavier de Oliveira). Suivant la copie de Londres, MDCCLVII (1757. — I vol. in-8.° peq., 88 páginas, enc. a marroquim).

Obra de grande raridade e que foi uma das causas do processo feito pela inquisição ao cavalheiro de Oliveira,... Esta edição tem a mais do que a de Londres de 1762 um “Extrait d'une lettre de Lisbonne”, que vai da pág. 84 a 88, e é desconhecida aos nossos bibliógraphos e, portanto, muito mais rara do que a de Londres”.

Ressalvando um ou outro lapso e a omissão do local da impressão, para nós esta edição tem a importância de conter uma passagem duma carta de Lisboa, em que é legítimo supor o seu autor fizesse uma ou outra consideração de interesse biográfico ou histórico. Este exemplar, que nos parece raríssimo, foi, segundo nos informa o Sr. Joaquim Gomes de Macedo, a quem devemos o conhecimento desta edição de 1757, adquirido por Joaquim de Araújo.

Entretanto, o processo continuava; faziam-se inquirições; o qualificador Fr. José Malaquias relatava, -um pouco superficialmente, o conteúdo do livro; as denúncias acorriam.

Dentre estas é particularmente interessante, por minuciosa, a de Fr. Domingos da Encarnação:

Este papel entregoo Fr. Domingos da Encarnação, e he a denuncia, de que se faz menção em seo testemunho.

Muito Illustres Snres.— Sahio novamente impresso em Londres neste presente anno de 1756 hum Livro de quarenta e oito paginas escrito na Lingoa Franceza, cujo titulo he o seguinte —Discours Pathetique etc.— e cujo Author se intitula no frontispicio —Le Chevalier de Oliveyra—, tão cheio de impiedades, blasfemias, e calumnias contra o Tribunal do Santo Officio e seu rectissimo procedimento, e varias propoziçoins que á minha limitada comprehensão parecerão hereticas, mal soantes, e horrorozas que julguei obrigação indispensavel, forçoza obediencia as Ordens desse Santo Tribunal offerecer a presente Denuncia, offerecendo neste papel tudo o que em summa contem o sobredito Discurso, que hé o seguinte:

Principia o Author o seu discurso com huma larga ponderação dos effeitos da Misericordia, e da justiça, que o Eterno Deos exercita respetivamente ou com os bons, ou com os maos, authorizando quazi todos os conceitos com Textos da Escriptura principalmente dos Psalmos de David, com que promette authorizar as suas propoziçoins, e ainda tecer muitos dos seus periodos, porque para falar a hum tão grande Rey (o discurso todo hé huma falia dirigida a Sua Magestade Fidelissima) não podia uzar de milhor estilo que servindo-se do mesmo de que uzou hum dos mais Santos e mais illustres Monarchas do mundo.

Na pagina 6.ª entra a propor que elle hé Cavaleiro da Ordem de Christo de cujo habito o honrou há 26 annos o Rey Defuncto; e daqui quer fazer manifesta a nobreza da sua Familia, e pureza do seu sangue protestando que elle não he Mahometano, nem Judeo, nem tão pouco Idolatra pela graça de Deos. Na mesma Pagina anathematiza toda a palavra que por descuido seja escrita em ofensa da Magestade de sua Sagrada Pessoa, protestando não escrever mais que com o fim da gloria de Deos, da felicidade de Sua Magestade, e da prosperidade dos seus povos.

Na pagina 7.ª entra a dar graças a Deos pelo livramento de Sua Magestade, e de toda a Familia Real animando ao Soberano com a lembrança das muitas bençoens e graças que tem recebido das mãos de Deos; do feliz estado em que se acha ao prezente o governo, e emfim das muitas riquezas da coroa a entrar na gloriosa empreza de restabelecer a cidade e o Reyno com o exemplo de muitos Principes de inferior poder, e muito menos riqueza que levantarão dos fundamentos muitas cidades, e contárão nos seus dias pelas mais famozas do mundo.

Na página 8.ª começa o A. a deplorar o mizeravel estado de Portugal cujas iniquidades merecendo que Deos Senhor nosso negando ás nossas terras aquella vigilancia com que só se podem guardar, e defender as cidades fizerão descarregar sobre nós o flagelo da Divina justiça no passado Terremoto, cujo funesto estrago descreve o A. com viveza, e energia, concluindo que o Snr em castigo voltando-nos as costas negava totalmente os ouvidos a todos os nossos clamores.

Na pagina 9.ª assignando a razão de tanta indignação da Divina justiça, dis que consiste no modo com que em Portugal se dirigem os homens a Deos o qual he para o mesmo Snor o mais detestavel de todos, isto hé hum modo de invocar, e orar a Deos supersticiozo, e idolatra, que o Snr castigou severamente em todos os tempos, e em todos os que nesta se mostrarão violadores dos mandamentos mais claros, e precizos da sua Santa Ley; transgressão em que, cahindo todos os Catholicos Romanos, se distinguirão com excesso os Portuguezes = por quanto (palavras formaes) à força de devoçoins absurdas, de sacrificios horriveis, e de oraçoins vans, e indignas de ser ouvidas cahirão na superstição mais injurioza, e na Idolatria, mais grosseira =; mas acrescenta que se estes christãos que só o são no nome, quiserem dar ouvidos as vozes de Deos examinando com humildade a sua Ley, aplacarão a ira, e indignação do Snor.

Na pagina 10 depois de ter referido em vulgar o texto de S. Matheos Cap.° 12 em que se intimão os dous preceitos de amar a Deos, e ao Proximo de que depende toda a Ley, confeçando que nos catecismos portugueses, e mais livros espirituaes, se acha exposta esta mesma Ley do Evangelho sem diferença sustancial, e que os Portugueses a observão ao menos quanto he possivel a fragilidade humana, diz que todas estas obras perdem o merecimento e são obras mortas, porque feitas todas sem a fé nescessaria e commumente nascidas de principias que se oppoem a vertuosa Religião e offendem diretamente a Divindade, e ainda que S. Marcos nos asegura, e com razão que do sumario daquelles dous preceitos depende toda a Ley não nos dezobrigou por isto de a examinarmos cuidadosamente, e a observarmos pura, e rigidamente seguindo ao pe da letra toda a força, e expressão com que se nos intima na sua fonte, que he o Cap.° 20 do Exodo), aonde se acha descrita esta Ley com toda a sua pureza, e toda a sua verdade.

Na pagina 11 entra o A. a revestirse de zello de Ministro do Senhor clamando, e pedindo ao mesmo Deos illumine ao infeliz povo de Portugal sepultado no Abismo de tantos erros, e transgressoins da dita Ley, erros e descaminhas em que se acha tãobem Sua Magestade que seguindo os errados passos de seus Antepassados igualmente corno elle enganados pelos Operarias da iniquidade (por estes entende o A. os Sacerdotes, e Pastores das almas) hé cauza ainda que innocente de tanta dezordem, por dar auxillio aos que se oppoem a recepção da divina palavra no nosso Reyna.

Na pag. 12 quer persuadir a Sua Magestade que lendo o Cap.° 20 do Exodo, passe logo a confrontalo com os nossos catecismos liturgicos, obras de moral etc. e achara a Ley de Deos mutilada, e truncada como por exemplo o primeiro preceito do Decalogo em que o Snr. prohibia expressamente o culto dos Santos e adoração das imagens.

Na pag. 13 vai expondo o A. como esta idolatria, e superstição gentilica lançou mais profundas raizes em Portugal, e ao mesmo tempo que já muitos Paizes Catholicos Romanos comprehendendo ainda a Italia, e a cidade de Roma, tem perdido muita da sua força os Portuguezes excedendo na idolatria aos mesmos Gentios se tem esquecido do seu creador, e tem desprezado, e renegado do seu Redemptor, tributando o culto que lhe era devido a vans imagens, e simples creaturas; no que bem longe de honrar aos Santos os envilessem irritão se acazo he (diz o A.) que os taes Santos conhecem as adoraçoins que lhe rendem; e estes mesmos nunca derão culto a creatura alguma e somente a Deos.

A origem deste engano supersticioso, e idolatra em que tem cahido o nosso Portugal traz a origem na sugeição com que os Portuguezes se tem abandonado como innocentes ovelhas á conducta, e governo dos seus Pastores, e ainda a alguns destes desculpará a ignorancia, por serem só capazes do officio de Pastores ao pé da letra, aos mais não valerá esta disculpa, alias internamente persuadidos de quanto hé prohibido na Ley Divina o culto das imagens. Nisto gasta desde a pag. 14 athe 16, aonde nota a circumstancia do dia de todos os Santos em que succedeo o Terremoto, e a do logar em que muitos padecerão a maior ruiria que forão os Templos aonde se offerecia aos Santos este culto supersticiozo, de que elles todos se revindicárão no seu dia; como tão bem as Almas do Purgatorio no seguinte dia, e em todo aquelle oitavario que foi funestissimo para este Reyno, e em que os Portuguezes fazem os maiores sufragios pelas almas que suppoem no Purgatorio, o qual não he mais que chimerico e imaginario forjado pela avareza e cubiça dos nossos sacerdotes, afim de arrancar ao povo as sornas imensas que tem gasto em mandar dizer missas tão inutilmente, e tão rediculamente e que assim as mesmas almas detestavão a superstição, e não tinhão necessidade alguma dos nossos sacrificios.

Na pag. 17 prossegue o A. a descubrir a primeira origem de tanto mal que sobreveio a Portugal, e diz que hé a prohibição que nelle fez o Tribunal do Santo Officio das biblias em lingoa vulgar, e eonsequentemente da lição, e meditação da Divina palavra, prohibição igualmente perniciosa á Republica Christaã como seria para o governo e estado do nosso Reyno se nelle se prohibissem as Ordenaçoins em lingoa vulgar, só se admitissem na lingoa estranha; a este estado se reduzio em Portugal a Divina Ley que por dóllo, interesse e todos os caminhos criminosos dos Maos (os Sacerdotes, e Pastores) se acha nos nossos catecismos mutilada, truncada, e de sorte estropiada que se vem a ensinar aos meninos novas, e execraveis doutrinas; o que a dita justiça veio a intimar, e castigar com a horrorosa voz deste proximo castigo; assim athe pag. 19.

Passa o A. a propor a Sua Magestade a 2.ª verdade e cauza do prezente castigo, e diz que hé a horrivel, e cruel perseguição que em Portugal se exercita há tantas anos no Tribunal do Santo Officio de que são protectores e executores os Familiares que são a maior parte da nobreza de Portugal, com quem entra a fallar nesta materia dando-se por compatriota, pois nasceo em Lixboa a 21 de Mayo de 17(0)2, e foi batizado em S. Mamede o 1.º de Junho do mesmo anno pelo Reverendo Prior Thomè Antunes Madeira. Ainda estando o A. em Portugal entrou a ter grandes duvidas sobre o procedimento do Tribunal do Santo Officio, porem o temor as suffocava, ainda que não deichava de se comunicar nesta materia com os seus amigos que estavão do mesmo accordo: muitos delles ainda estão vivos e por caridade os não nomeia só aponta nas notas alguns que já falecerão, e lhe comunicarão por varias vezes o horror que tinhão a este infame Tribunal, como Jozé da Cunha Brochado, Martinho de Mendonça de Pina de Proença Homem, o P.e Hypolito Moreyra jesuita, o P. Fr. Manoel Guilherme Dominicano, o P. Manuel Ribeyro da Congregação e Tio do Author, o Bispo de Lamego filho do Duque do Cadaval, o Conde de Tarouca, e D. Luís da Cunha, assim athé pag. 21.

Protesta o A. ter abjurado a Igreja Romana para abras sar a protestante (cujos sectarios, nota elle, mostrão ter mais amor de Deos e do Proximo como se vio no presente delRey de Inglaterra). Para seguir esta nova Religião não o moveu interesse algum porque deixou em Portugal as maiores delicias, e conveniencias, sua may e irmãos para se retirar a hum canto do mundo aonde vive, e aonde pudia inquietar o zelo de fazer a Portugal este avizo, em tempo em que tendo já a cabeça toda branca, e a mão tremula, não pode ser suspeitoso de outro interesse, mais que da salvação das nossas almas. Por tanto notefica, a nobreza, povo e familiares do pertendido Santo Officio que nunca já mais lhe professem submissão nem obediencia com seus Ministros, que hé já tempo de sacudir hum jugo que nos envilêce, e nos arruina, e que nossa fidelidade e obediencia seja restricta ao Rey somente assim athé pag. 28.

Daqui desfecha o A. na horrenda calumnia contra o Santo Tribunal, e os seus Ministros, que mete horror, e faz intimidar a minha idea só de a con.siderar; ao Santo Tribunal chama em varias partes Tribunal infame, cruel, tirano, injusto, Officio Diabolico, e digno de ser sepultado nos Abismos. Aos Senhores Inquizidores, e mais Ministros do Santo Officio trata, e chama Raça maldita de Deos, aborrecido de todo o genero humano, criminoso para Deos, rediculos para os homens, Perfidos, sanguinarios, coraçoins Pharaonicos, incor-regiveis, impostores, falsarios, malvados, inimigos declarados de Deos e do Proximo; e protesta o A. que em todos estes nomes lhe não faz injuria porque o nome de Inquisidor de que os Ministros do Santo Officio tanto se jactão hé o mais injuriozo, e odioso que se pode dar a hum mortal. São muitas mais, e atrocissimas as injurias que profere contra os Ministros do Santo Officio, e este Santo Tribunal que diz ser obra do infame Saavedra (cuja historia nota a margem) diz que ha fautor da Ignorancia de Portugal na prohibição da Biblia em vulgar e em fazer odioso o estudo das controversias em que os seus Protestantes sahirão sempre victuriosos contra os Catholicos Romanos, em fim que este Tribunal hé direc-tamente oposto á Politica, e Governo da Coroa, e as prosperidades e interesse do povo; ultimamente para dizer tudo quanto elle trata por longas paginas athé a pag. 34, trarei aqui huns versos em que o A. diz se descreve ao vivo o que o Santo Offi-cio, e he obra, diz, de um nosso compatriota.

Haec maledictá Domus furibunda imago Gehenae est fabricata sacra fatiferaque manu

Saevo Inquisitionis caecum ac turpe Tribunal instituens, Regni debilitavit opes.

Quae mala non affert hoc implacabile monstrum! Maestitiam, angores, dedecus, atque neces! Imposuit servile jugum, et ter amata libertas dulce bonum vitae, proh dolor! interiit!

Est Sophia ex terris: sola ignorantia regnat. Quis dubitat, taceat: quaerere nemo protest. Biblia versantes Sancta apellantur inqui; opposita esse putat scire et habere fidem. Nemo potest isthic tranquille vivere vitam; perpetui Comites sunt timor, atque tremor. Hoc perturbatum Chaos in qua Sede moratur, judicium obtorpe, mentis et usus abest.

Re vera haec est, quae Inquisitio Sancta vocatur. Illa introducta, Natio tota ruit.

Nunc mirare precor! Sapiens Rex protegit illam sunt ejus Famuli, Marchio, Duxque, Comes.

Nestes versos se inclue todo o veneno que o A. espalha em muitas partes do seu discurso, com o qual esperando que se arrependão os Inquizidores, expoem hum formulario de que hão de uzar para pedir a Deos o perdão, e detestar os passados erros.

A pag. 33 entra o A., supondo já a Sua Magestade convencido com o seu discurso, a proporlhe e darlhe dictames para a abolição, e extinção do odioso Tribunal da Inquizição. A 1.ª diligencia hé permitir a lição da Escritura em vulgar para que todos venhão a ter verdadeiro conhecimento da Lei Divina athequi ignorada em Portugal, e por este meio o mais suave de todos se conseguirá que os mesmos inquizidores arrependidos dos seus passados erros irão descubrir a Sua Magestade os perigosos excessos do procedimento do Tribunal. Quando isto não obste e persistão na sua obstinação, então hé que pertence a Sua Magestade tomar o scetro em a mão, e falar como Senhor e Pay dos seus vassalos, e que em dizendo que isto hé do seu Real agrado, e que assim o ordena, logo será recebida nos seus Dominios a verdadeira Ley de Deos; algum dia podia o poder, e authoridade da Inquizição, e audacia dos seus Ministros servir de obstaculo a esta em-preza, mas já hoje não he assim, porque o mesmo Deos tem confundido este Tribunal e os seus Ministros, contando-se entre as ruinas de Lixboa o Palacio, e caza da Inquizição. Toda a Nação athequi consternada e aflicta com os castigos que fizeraão descarregar sobre elles alem das proprias culpas as iniquidades da Inquizição está disposta a aplaudir a abolição e supressão deste Officio Infernal; muito mais sendo o povo de Portugal incapaz de se sugeitar a hum poder illegitimo ao que devia a Augusta Caza de Bragança o estabelecimento no trono dos seus Ascendentes.

Desta total extincção do Santo Officio se deve seguir por boa consequencia a liberdade dos judeos em este Reyno, cuja perseguição cruelissima tem sido contra as Leys de Deos, assim como hé injusta; começa daqui o A. a propor a innocencia dos judeos, e grande fedilidade com que tem servido a esta Coroa em Payzes estranhos, razão porque devem ser admitidos. A inocencia porque na verdade de tantos judeos que tem sahido penitenciados pelo Santo Officio apenas haverá dous ou trez que o fossem sem injustiça: muitos delles andão peregrinando por outros Reynos, fugindo á perseguição de Portugal, tão fora de ser observantes da Ley de Moyses, que custa imenso trabalho aos Ministros das synagogas, aonde os recebem como fugitivos, e Proselytos, a instruilos nos principios da sua crença, e tal houve que não queria entrar na Synagoga, senão com a condicção de que lá se havia de dizer missa; alem de outros que rezão os seus Rosarios, e tem particular devoção com alguns Santos; e se algüa vez confeção cá no Santo Officio algiias culpas, tudo isso os obriga a fingir o rigor dos tormentos, e o temor dos castigos; em tudo isto se refere aos escritos do P.e Vieira, a quem faz os maiores elogios por se oppor ao Tribunal, affirmando que nelle fora condemnado injustamente. A fidelidade dos Judeos e grandes serviços a esta Coroa se empenha o A. em mostrar tecendo hum longo catalogo de judeos que a servirão em Dorninios estranhos, e empregos que tiverão etc.

Conclue finalmente querendo a inflamar a sua Magestade no empenho de por em execução os dezignios que lhe offerece propondo lhe que assim como entre os Reys de Portugal (hé elle o 1.º que tem o nome de Joseph, e o primeiro que uzou o Titulo de Fidelissimo seja tãobem o 1.º que dê ouvidos a hum homem de religião estranha, que quando algum dia houvesse que temer nesta materia, já hoje não estamos em tempo disto, e que quando o Povo cheio de erros, e prejuizos clame pela conservação do Tribunal do Santo Officio attendendo a que foi estabelecido com authoridade dos Papas e aprovado por elles o seu procedimento, assente que isto só o persuadem homens ignorantes e manefastamente maos; que os mesmos Papas forão os inventores destes erros, e abuzos, que reynão em Portugal, como homens que erão viciozissimos, e corruptissimos, e muitos delles homicidas, adulteros, incestuosos, simoniacos, sacrilegos, impios, atheistas. Que a jurisdicção dos Papas só se estende aos Dominios que tem na Italia, como seu soberano e na cidade de Roma como seu Bispo; que Sua Magestade he a unica cabeça da Igreja Luzitana, e de todos os seus Prelados, e Magistrados, e que emfim a authoridade do Soberano he illimitada, e imcõpativel com qualquer outra dependendo; e que o contrario só o persuadirão os inimigos do Rey, e os maos Ecclesiasticos deste Reyno cheios de erros, e prejuizos, e armados de sophismas, e artificios. Assim athe a pag. 47, e na seguinte que he a ultima entra a dar graças a Deos por offercer estes meios para restabelecimento da Religião em Portugal, implorando para este fim os seus Divinos auxilios.

No fim do Discurso vem adjunctas 4 cartas dirigidas a 1.ª para Sua Magestade a 2.ª para o Sr. Infante Dom Manoel a 3.ª para o secretario de Estado Sebastiam José de Carvalho, a 3.ª (Sic) para a Academia Real em todas faz que lhe manda húa copia, e pede que ou dezempenhem o que persuade se se convencerem, ou o convensão com húa resposta exposta ao publico em húa lingoa universal, tal como a Franceza, que por isso uzou della no seu Discurso. E isto hé em summa o que contem o sobredito livro, se me não enganou a debilidade da vista, ou o uzo de húa lingoa estranha. S. Domingos de Lisboa em 22 de Setembro de 1756 Fr. Domingos da Incarnação.

Concluso o processo, o Cavaleiro de Oliveira foi condenado “por convicto no crime de herezia, e apostazia, e que foi, e ao prezente he herege apostata de nossa Santa Fé Catholica, e corno tal convicto, negativo, pertinax, revel, e contumas, e que incorreo em sentença de excomunhão maior, e em confiscação de todos os seus bens para o Fisco, e Camara Real, e nas mais penas em direito contra semilhantes estabelecidas, e o excluem do gremio da Santa Madre Igreija; e que a obra que deu ao prelo, intitulada = Discurso Patetico = he heretica, scismatica, sedicioza, erronea, injurioza á Igreija Catholica Romana, e contraria aos Dogmas de nossa Santa Fé que pertende a minar; e em detestação de tão grave crime, seja lida sua sentença no Auto publico da Fé em prezença de sua Estatua, a qual com a dita obra relaxão em seu nome a Justiça secular, para que nellas se faça inteiro cumprimento de Justiça; a quem pedem com muita instancia, que se o Reo em algum tempo aparecer se haja com elle benigna, e piedozamente, e não proceda a pena de morte, nem effusão de sangue— Luis Barata de Lima — Joachim Jansen Moller —Jeronymo Rogado do Carvalhal e Silva — Luis Pedro de Brito Caldeira.

Publicada foy a sentença atras escripta e o reo Francisco Xavier de Oliveira nella contheudo em sua estatua no auto publico da Fé, que se celebrou no claustro do Convento de S. Domingos desta cidade [Lisboa] aos 20 de Setembro de 1761...”.

Exilado em Iglaterra, a coberto portanto das justiças portuguesas, o Cavaleiro de Oliveira riposta com uma nova edição (1762) do Discours pathétique e com um opúsculo, que não vemos suficientemente descrito em qualquer bibliógrafo, nem referido nas várias publicações de anúncio e crítica literária do séc. XVIII que nos foi possível folhear. Na verdade, segundo o Dictionnaire Universel, historique, critique et bibliographique, etc. (9. ed. t. XIII. Paris, 1810) este opúsculo intitula-se: Le Chevalier d'Oliveyra bredé en effigie cornme hérétique: Comment et pourquoi? Londres, 1762; e segundo o colaborador da Biographie Universelle (Michaud), t. 31: Le Chevalier d'Oliveyra, brúlé en effigie comme hérétique; comment et pourquoi. Anecdotes et reflexions sur ce sujet données au publique par lui-même— que, por demais, afirma transcreverem-se passagens no Gentleman's Magazine, de Maio de 1784.

Tanto do opúsculo, que não sabemos onde se guarde um exemplar como do Discours são bem ténues os sinais da sua repercussão no campo mais sereno das ideias. Não seria acaso uma réplica a impressão da tradução da obra do capuchinho Fr. Norberto, feita pelo culto estrangeirado, o físico João Jacinto de Magalhães: A fé dos catholicos: obra dirigida a instruir e confirmar na sua crença os catholicos, e mostrar aos que o não são que não têm razão alguma para os acusar de que vivem errados,... Escripta pelo abbade Platel e traduzida do francez. Lisboa, 1763?

Que o Discours era absolutamente contrário à mediana mentalidade e cultura do séc. XVIII em Portugal, não é para surpreender. Desde o sentimento religioso, exacerbado com o terramoto, às ideias políticas que orientavam o Estado; desde a estrutura mental e moral da época, cimentada numa tradição de intolerância e purificação, ao tom, por vezes jocoso ou irreverente, e quase sempre panfletário do Discours tudo concorria para a repulsa com que foi recebido e para a conspiração de silêncio, verdadeiramente tumular, que em seu torno se fez.

Obra de sinceridade, o leitor atento nela pode encontrar aspetos interessantes do espírito de seu autor, definido no geral pelas Cartas, e, de par com algumas notícias autobiográficas, um ou outro facto não desprovido de valor para a história das ideias em Portugal.


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