Dois inéditos de Abraham Zacuto

Abraham ben Samuel Zacuto († 1510?) é, dentre os judeus que definem a cultura dos sefardim, um nome popular em Portugal, prendendo simultaneamente a atenção crítica de historiadores e de sábios e a imaginação romanesca. Gil Vicente, no Auto da Lusitânia, foi o primeiro a recordá-lo; mas desde o cómico do século XVI até aos estudos críticos dos nossos dias que variedade de evocações! Associado pela história e pela imaginação ao descobrimento do caminho marítimo para a India, o seu nome salvou-se em Portugal dessa vaga de anonimato que cobriu Israel nos primeiros tempos da diáspora ibérica. Se o nome tem perdurado, só recentemente, porém, com os sábios estudos de Joaquim Bensaúde, Luciano Pereira da Silva, Maximiano Lemos e F. Esteves Pereira se fez o exame da sua vida e obra, determinando-se-lhe a influência, especialmente a do Almanach Perpetuum, no desenvolvimento da ciência náutica portuguesa.

Zacuto, como todos os sábios da sua raça e da sua época, incluindo o grande Regiomontano, que fez o horoscópio de D. Leonor, filha de D. Duarte, Imperatriz da Alemanha pelo casamento (1452) com o Imperador Frederico III, fundira o aspeto científico da astronomia com as quimeras astrológicas; mas se a crítica contemporânea isolara aquele, estas, por falta de elementos, não podiam ser completamente examinadas, — sem embargo de nos revelarem o “grande estrólico” da corte de D. Manuel, que o mandou ouvir sobre o propósito da viagem de Vasco da Gama à índia, e a “ciência” do físico que na Península praticara a medicina astrológica, na qual deixou pelo menos um discípulo que Nicolau Clenardo foi encontrar em Fez.

Um tratado astrológico de Zacuto seria, assim, o complemento do Almanach e ao mesmo tempo o melhor e mais íntimo testemunho da posição intelectual do celebrado rabino. Foi na Biblioteca Columbina de Sevilha que ele se nos deparou. Trabalhando na famigerada biblioteca, em missão oficial, autorizada pelo antigo ministro da Instrução Dr. João Camoesas, o exame do fundo manuscrito deu-nos a conhecer um códice de papel, em 4.º, de 64 fls., sendo 2 brancas, constituindo portanto um volume de 128 páginas, catalogado sob o título: Abraham Zacuto —Tratado de ias influencias dei cielo, compuesto por mandado dei Maestre de Alcantara, D. Juan de Zunica, I. vol. sig. XV ou XVI.

Fernando Colombo (1488 + 1539), o diligentíssimo e acuradíssimo bibliófilo, teve o generoso propósito de dotar a sua pátria com uma livraria, que fosse um centro de estudo e de peregrinação erudita, reunindo em Sevilha a maior biblioteca que um particular até então organizara: pelo menos 15 370 volumes, entre impressos e manuscritos. O desejo de salvaguardar tamanha riqueza bibliográfica e o natural requinte de bibliófilo levaram-no a catalogar esta livraria com metódica e perseverante minúcia. No respetivo catálogo, ou Regestrum  librorum dom. Ferdinandi Colou primi almirantis indiarum filii in quo tam autorum quam librorum eorum que magnitudinem divisionem et impressionem reperiri datur necnon tempus,, loca et precium quibus ab eo pref ata volumina fuerunt comparata, no qual apenas indicou 4231, registou, sob o n.° 4174, o manuscrito seguinte: Abrahe zaouti tractatus Astronomie manu et hispanico sermone scriptus. Dividitur in tres partes quarum quelibet in capitula epithotica subdividitur. Pª pars est tantum modo aliarum duarum sequentium declarativa. 2.a tractat de his que medico secundum diuersas egrituclines veniunt consyderanda. 3.a vero universaliter docet quid coelestia corpora influant in hec inferiora. In principio huius operis habetur quoddam receptum pro fistulis ah ore vel gutture remouendis. Postea sequitur quoddam fragmentum de more infantis in utero matris. Prima pars trium predictarum. In. — Primero es de saber — tertia et ultima— D. — aquella Revoluçion con aguei luminar. In fine huius operis habentur quedam fragmenta Gasparis torrela docen tia quod signum super quam corporis partem dominetur. In.— sic sculpantur — D. — in eo non morabitur. Est in 4.° Costo en Seuilla por Junio de 1527 34 mrs (maravedis).

Segundo esta pormenorizada descrição, o tratado de Zacuto era precedido “quoddam receptum pro fistulis ab ore vel gutture removendis” e “quoddam fragmentum de more infantis in utero matris” e seguido duns fragmentos astrológicos de Gaspar Torrelasobre o domínio adequado dos signos nas diversas partes do corpo humano.

No manuscrito atual não existem estes acrescentamentos, mas conserva-se integralmente o Tratado de Zacuto, pois tanto o incipit como o explicit apontados por Fernando Colombo são idênticos.

Estaremos assim em face do próprio manuscrito columbino? Tudo indica que sim, a despeito das vicissitudes que o códice sofreu, e pelas quais pereceram os acrescentamentos que Fernando Colombo apontou. O manuscrito é evidentemente uma cópia, feita ainda no século XV ou no princípio do século XVI por um escrevente cristão, o qual deixou expressa a sua crença nas duas linhas finais.

Conquanto inédita, esta obra não pode reputar-se verdadeiramente desconhecida. Os biógrafos de Zacuto, assim como os bibliógrafos Rodríguez de Castro, Fürst  e a Jewish Encyclopedia não o citam; mas Picatoste y Rodriguez deu notícia dele, reproduzindo o resumo que Gallardo fez do registo columbino: “Tratado de Astronomia. Ms. de la Biblioteca Columbina. Se divide en tres partes, que tratan principalmente de Astrologia. Al final contiene un fragmento de Gaspar de Torrella sobre la influencia de los signos”. Pode dizer-se que antes da publicação do vol. II (1866) do Ensayo de una Biblioteca española de libros raros y curiosos, de Gallardo, o manuscrito columbino era desconhecido; e posteriormente a sua existência foi acusada por forma tão sumária e incorreta que bem mostra não ter sido examinado — o que, aliás, a tradição da Columbina corrobora.

Se o tivesse sido, não se falaria no excerto de Gaspar de Torrella, nem se diria ser um tratado de astronomia, mas de astrologia médica, intitulado por seu autor Tratado breve en las influencias dei cielo,, ou Tratado en los Juyzios, ao qual aditou um apêndice sobre o Juyzio de los eclipses.

A marcha das matérias do Tratado é a seguinte:

I)— Importância da astrologia para a medicina. Razões porque foi escrito. Sua divisão em três partes. (Fls. 1-5).

II)— Parte primeira. Introdução aos juízos. Signos; planetas

e suas dignidades; estrelas. (Fls. 5-36).

III)— Parte segunda. Regimento dos físicos. (Fls. 36-58).

IV)— Parte terceira. Mudanças do tempo e do ar; das 28 mansões da lua; dos nascimentos e das revoluções dos anos. (Fls. 58-119).

V)— Apêndice. Dos eclipes. (Fls. 119-128).

Esta obra não está datada; mas é seguramente posterior ao Almanach Perpetuum, redigido entre os anos de 1473-1478.

O Tratado contém alguns dados biográficos apreciáveis.

A declaração de autoria — Rabi Abraham Zacuto de Salamanca — confirma a tradição sobre a cidade natal, e permite supor ser esta a forma como usualmente assinava.

Mas se a tradição da naturalidade é assim corroborada, o mesmo se não pode dizer da que no-lo apresenta corno professor da Universidade de Salamanca.

Desde a segunda metade do século XV, esta Universidade teve uma catedrilha de astrologia, cujos mestres foram sucessivamente Nicolás Polonii (1464?), Juan de Salaya (1464-69), Diego de Calzadilla (1467-75), Fernando de Fontiveros (1476 —?), Diego de Torres (? —?) e Rodrigo Vasurto (? — 1504). Esperabé Arteaga, a quem devemos esta lista, não aponta A. Zacuto; mas no catálogo biográfico dos professores salamantinos do século XV refere-o, afirmando que não só fora consultado várias vezes pelos reis, mas desempenhara a cátedra de astronomia, “pero no se sabe durante cuanto tiempo, ni el dio fijo en que se encargó de su explicación. Hay notas en el Archivo de las que se deduce que su clase se llenaba de alumnos, y que venian desde muy lejos à oir sus lecciones”.

Com a autoridade deste cronista dir-se-ia confirmado o magistério de Zacuto; mas não publicando nem citando as notas do arquivo universitário o seu testemunho aparece-nos como um eco da tradição. A despeito das interrogações, verifica-se que a catedrilha teve quase ininterruptamente regentes, entre os quais sobressaem Diego de Torres e Rodrigo Basurto ou Vasurto; e por outro lado, a condição de israelita não constituiria impedimento para o magistério, numa Universidade tão ciosa da pureza católica? Até hoje nenhum documento publicado confirma a tradição, que julgo ter derivado da interpretação rae: “Preterea anno 1474 incarnationis, hoc est post Alphonsum annis desta passagem do livro de Augustinus Ricius, De motu octavae Sphae223. ferre Abbraham Zacuth, quem preceptorem in astronomia habuimus in civitate salamanche, lunam vidit assimech, id est spicam virginis”.

Agostinho Ricio declara apenas ter sido discípulo de A. Zacuto, a quem alude várias vezes e a quem considera “astronomiae nostra tempestate peritissimus (fls. 6) e “vir nostra tempestate in hac arte singularis” (fls. 32); e das suas palavras não pode concluir-se que o ensino tivesse sido ministrado na Universidade.

Não chegaram até nós notícias pormenorizadas da comunidade israelita de Salamanca no século XV; mas se é exata a informação da Jevvish Encyclopedia, apresentando Agostinho Ricio como judeu converso, é legítimo supor que o magistério de Zacuto se exerceu no seio da comunidade, e em qualquer caso, inteiramente livre. A astrologia era então uma disciplina famosa no meio culto de Salamanca, a tal ponto que, em 1521, Pedro Ciruelo dedicava à Escola que frequentara durante dez anos (1482-1492) os Apotelesmata astrologiae christianae (Alcalá, 1521), porque nada lhe parecia mais conforme à dignidade do estudo salamantino.

Neste meio disfrutou Zacuto uma grande notoriedade. A forma como D. João II e D. Manuel o receberam após a expulsão de Espanha era já um índice claro da sua fama; mas o prólogo do Tratado mostra-nos que ela o conduziu até junto do Mecenas D. Juan de Zúniga Pimentel, filho dos duques de Arévalo e último mestre de Alcântara (†1504).

Na vila de Gata, da atual província de Cáceres e então pertencente à Ordem de Alcântara, por mandado de D. Juan de Zúniga escreveu Zacuto o Tratado de las influencias del cielo, em 1486, “para que com este mas se ayudasen los medicos de su sefloria si fueren astrologos, y esto porque esten todas las cosas acabadas en casa de su sefloria y perfectas”.

Este facto é, biograficamente, a novidade que o manuscrito nos revela. Explicam-no a elevada posição social e as preocupações intelectuais de D. Juan de Zúniga, que um dos cronistas da Ordem de Alcantara narrou com certa particularidade:

“Era el maestre aficionado à todas buenas letras, y demas de los Religiosos que alli [Zalamea] tenia consigo, llevó algunos hombres insignes en ellas, el Bachiller Frey Gutierre de Trijo, jurista, Caballero de la Orden, que por ventura fue este uno de los esentos; el Maestro Fray Domingo, Teologo del Orden de Predicadores; el Doctor de la Parra, medico, abasurto Judio de nacion, Astrologo; el Maestro Antonio de Lebrixa, y el Maestro de Capilla Solorzano, el mayor musico que conocieron aquellos siglos. El Maestro Antonio le enserió latin, y el habia dado el Habito y la Encomienda de la Puebla à Fray Marcelo de Lebrixa su hijo. El Judio Astrologo le leyó la Esfera, y todo lo que era licito saber en su Arte; y era tan aficionado que en un aposento de los mas altos de la casa hizo que le pintasen el cielo con todos sus Planetas, Astros, y Signos del Zodiaco. Ya hoy está esto muy deslustrado con la antiguedad”.

Nesta página, tão rica de notícias, fala Torres y Tapia num Aba-surto, astrólogo e judeu de nação, em termos que não tornam clara a sua identificação. Dir-se-ia à primeira vista ser Rodrigo Basurto (ou Vasurto), o regente da catedrilha de astrologia de Salamanca a quem já aludimos; mas a circunstância de ter sido eleito colegial do Colégio Maior de S. Bartolomé de Salamanca (17 de Julho de 1493) torna impossível esta identificação, pois um judeu confesso jamais poderia entrar numa instituição tão estruturalmente católica como o colégio fundado em 1401, pelo bispo D. Diego de Anaya.

É crível que Rodrigo Basurto tivesse pertencido ao cenáculo de D. Juan de Zúnica; mas os pormenores que o cronista Torres y Tapia aponta em relação a Abasurto, em perfeita harmonia com o prólogo do Tratado de las influencias dei cielo, condizem antes com Abraham Zacuto.

O Tratado é posterior ao Almanach Perpetuum, e ao Juízo do Eclipse— escritos a que Zacuto alude. Em relação ao Almanach, organizado para usos astrológicos e que “por um feliz acaso se transformou em um instrumento de sã aplicação na náutica” dir-se-ia ser como que a introdução e justificação teórica. É este aspeto que lhe confere um interesse particular, esclarecendo com alguma intimidade a cultura astronómica peninsular na época dos grandes descobrimentos, e as fontes bibliográficas de Zacuto.

Só a erudição ou a ilustração filosófica do espírito desenterrariam hoje as conceções puramente astrológicas deste Tratado, onde não seria difícil encontrar o eco de Arnaldo de Vilanova. Dos desvarios da razão humana nenhuns despertam tão compassiva ironia como estas quiméricas superstições, que apenas guardam o valor pragmático de brandamente aconselharem uma discreta humildade intelectual.

Protegidas pelo eterno mas variável império da fraqueza humana, estas quimeras fizeram o seu tempo; o crítico, porém, terá sempre de reconhecer a sua influência na evolução da Humanidade e pode, porventura, estar seguro de que não viverão, sob outras formas, em crenças graves dos nossos dias?


?>
Vamos corrigir esse problema