Uma epístola de Isaac Abarbanel

Isaac Abarbanel, ou Abravanel, o mais notável dos judeus nados e criados em Portugal no século XV, não encontrou ainda um biógrafo lusitano, apesar da sua biografia, para além do conspecto da personalidade e da consideração das ações, afiançar como nenhuma outra a interferência dos judeus na vida pública portuguesa quatrocentista e a repercussão da cultura ocidental na mentalidade cerrada da Talmud Torah, senão verdadeira Yeschiba lisbonense.

É que Isaac Abarbanel, ao contrário da generalidade dos seus correligionários, não viveu apenas na roda estreita e segregada das relações obscuras e dos pequenos interesses dos usurários, tendeiros e mesteirais da “judiaria” de Lisboa. Exercendo o alto comércio, largo de recursos, considerável prestamista do Estado, conselheiro de D. Afonso V, relacionado e privando com a mais alta nobreza de Portugal, gozando de privilégios, que eram exceções às leis restritivas dos judeus, como o viver na cidade, fora do gheto, e não trazer no vestuário a degradante e preventiva estrela, doutrinando na Sinagoga, oralmente e pela pena, com espírito e zelo de intransigente sequaz, compreende-se que houvesse sido o homem representativo da “gente de nação” e o traço de união de Israel com o Estado e Oliveira Martins tivesse visto nele “a exemplificação suprema” da “situação eminente que o povo, a literatura e a civilização judaicas atingiram em Portugal, particularmente sob o reinado de D. Afonso V”.

Vários documentos coevos testemunham insofismavelmente as excelentes relações de Isaac Abarbanel com o poderoso duque de Bragança, D. Fernando, e próximos parentes. Por elas, sem dúvida, se achou envolvido nas conspirações contra D. João II, — causa direta da fuga para Castela, em Junho de 1483, e da sua condenação, à revelia, em 30 de Maio de 1485.

Não é meu propósito examinar nestas palavras preliminares a sua cumplicidade na conjura, nem tão-pouco apreciar a sentença em que o Rei implacavelmente o condenou a “cruel morte natural, e tanto que for achado e havido nestes reinos, logo seja enforcado e morra na forca, e esteja nela para sempre”, e ainda menos perscrutar os impulsos, de afeto ou de cálculo, que o teriam impelido para a conspiração.

É possível que façamos um dia essa sondagem, indispensável ao esclarecimento e nítida compreensão da patética Elegia sobre a vicissitude dos tempos, de Leão Hebreu, de tão viva expressão de amor paterno e de intensa emoção pelo infortúnio que dispersara e atribulava os judeus peninsulares; assim, como à apreensão do estado de espírito de alguns representativos israelitas nas vésperas da expulsão de Portugal, a cuja história cultural ligaram o nome. Por agora, limitamo-nos simplesmente a divulgar a carta de pêsames que Isaac Abarbanel dirigiu ao conde de Faro, D. Afonso, pelo falecimento de seu sogro, o conde de Odemira.

Em rigor, esta carta não é desconhecida, nem inédita. Citou-a pela primeira vez António Caetano de Sousa, ao traçar na História Genealógica da Casa Real Portuguesa a biografia do conde de Faro, — não de visu, mas socorrendo-se de uma citação do nobiliário inédito de D. Luís Lobo; e mais recentemente Cunha Rivara e Gabriel Pereira  testemunharam a existência de apógrafos, respetivamente na Biblioteca de Évora e no fundo alcobacense da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Em Portugal, que saibamos, nunca foi publicada; não assim na Alemanha. Em ano que não recordo, mas do último quartel do século passado, uma descendente de Isaac Abarbanel, a Senhora J. Schwerin Abarbanel, servindo-se da cópia existente na Biblioteca de Évora, a qual lhe fora fornecida pela Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, deu-a ao prelo, creio que numa revista de estudos israelitas. A raridade, senão inexistência desta publicação nas bibliotecas portuguesas, assim como os erros de revisão, tão numerosos que desfiguram completamente o texto, justificam a divulgação correta da epístola, tanto mais que é valiosa como subsídio biográfico e, principalmente, como testemunho da cultura de seu autor.

A epístola é dirigida ao conde de Faro, D. Afonso, filho terceiro dos duques de Bragança, D. Fernando e D. Joana de Castro, sobrinho do rei D. Afonso V, e que em 1465 casara com D. Maria de Noronha, filha herdeira do 1.0 conde de Odemira, D. Sancho de Noronha. Não está datada; sendo desconhecida a data do falecimento do conde de Odemira e não contendo os seus períodos qualquer referência que de algum modo a estabeleçam, não pode precisar-se com exatidão o ano em que foi escrita.

Braancamp Freire, que diligenciou esclarecer a biografia do conde de Odemira e dilatar as escassas notícias de Caetano de Sousa, apurou apenas que já era falecido em 6 de Maio de 1471. Partindo desta data, é legítimo supor-se fundadamente que foi escrita em 1470 ou 1471; e não anterior, pois em 22 de Maio de 1469 D. Afonso fora feito conde de Faro.

Se a data é conjetural, dentro de um período fácil e estreitamente delimitado, não o é a identificação do signatário, apesar do sobrenome algo indistinto de o barbanel.

Por volta de 1470 viviam em Portugal alguns indivíduos de apelido Abarbanel, ligados, seguramente, por vínculos de parentesco como o foram pela crença religiosa. Pelo menos, Hia Abarbanel, o moço, Yoçe Abarbanel e Isaac Abarbanel.

De Hia Abarbanel sabe-se apenas ter sido em 1478 prestamista do empréstimo de sessenta milhões; e de Yoçe Abarbanel, genro de Isaac e filho de Samuel Abravanel, conhece-se a cumplicidade na conspiração do duque de Viseu. Um e outro, porém, eram obscuros perante a fama e valimento de Isaac Abarbanel. Só este gozava a situação social que lhe permitiu corresponder-se com tão elevado personagem; e além disto, como argumento decisivo, na sentença condenatória a que já aludimos, invoca-se a sua “muita amizade e conversação... com o Duque que foi de Bragança e com seus irmãos”, o mais novo dos quais era justamente o conde de Faro.

A epístola adiante publicada é o mais claro testemunho desta privança, tão íntima que só ela explica a associação de conselhos ao desanojo. Parece até ser resposta a uma carta em que o conde de Faro lhe participava o luto; mas seja ou não exata esta conjetura, é fora de dúvida que houveram mútua correspondência o fidalgo de parentesco real e o judeu que se arrogava de progenitura bíblica, entroncando em David.

Para além do subsídio biográfico, a epístola vale ainda como documento significativo da cultura de Isaac Abarbanel, mostrando-nos que não foi, social nem intelectualmente, um recluso de mentalidade cerrada.

Educado na lição tradicional do Talmud, nem por isso o seu espírito viveu à margem do que constituía a formação culta de um português quatrocentista, apesar da intransigência com que serviu e expôs o seu credo, a qual o distingue entre os mais aguerridos defensores da Sinagoga. A maneira de Zurara, coincidente com o gosto da época, compraz-se em estadear citações de autoridades, como Sócrates, Aristóteles, Cícero e Séneca, o filósogo, cujo doutrinarismo estoico ajuda a compreender a transfiguração do ideal da Cavalaria e o didatismo moral dos tempos da “ínclita geração” e cujo ideal de sageza impregnou profundamente o sentido da vida de alguns dos nossos grandes espíritos do século XVII.

Possuiu, sem dúvida, na mais pura conformação israelita, o sentimento do Eterno e a resignação à vontade do Todo-Poderoso; mas assimilou também o ideário condizente com a sensibilidade dos letrados cristãos, em tal grau que um crente em Deus misericordioso podia subscrever esta carta, cujos períodos, ao gosto do tempo, estão repassados de ensinamento erudito e de uma conceptuação do transe da Morte, que tem similar em escritores coetâneos, notadamente Gomes Eanes de Zurara.

CARTA QUE MANDOU O BARBANEL AO CONDE DE FARÃO

SOBRE A MORTE DO CODE DEMIRA SEU SOGRO

Bem assi como nos principios das infirmidades os rremedios das mediçinas nã prestam. nem a natureza a ellas obedece: assi em quãto estaa fresca a paixão da morte dos diuidos. nã se deuem apresentar as consolatorias palauras. porq com a força da dor e sobeje nojo. nam podem ser rrecebidas lesse em Job as dous cap.os que seus cõpanheiros quãdo ho vierã consolar. e ho acharão tam trabalhado. lhe não falarã sete dias e sete noites nem som.te huma palavra, em quanto a door era grande: atee cÍ elle começou de falar seu neguocio. e eu suor assi temendo de neste trabalho escreuer a V. S. nem me sentindo abastante pera vos nelle saber cõselhar: deixei passar os dias primeiros de vosso nojo. E ora q vossa carta vi tive loguar pera sobre isso escreuer a V. S. como em mi cabe posto q no seja como deuia como muitos crerão e eu mui çerto sei. mui magnifico suor auer auido em vosso nobre e humano coração mayor loguar a door e sentimento da morte do Ilustre cõde vosso padre; q a noua gloria da soçessam. e homrrada herança ã delle ouuestes. me aproue muito: E pensei nõ rreprender vosso grande nojo deueis auer. E todo o rreino geralmente sua morte deue sentir: novo e aspero doo: mas mostrar evidentes rrazões por onde grande porq lembrandouos ho amor que vos tinha, e como o paternal diuído era feito em sua vontade mui natural: amandouos como a proprio f.° tratandovos a grande silor confiandosse de vos como de irmão: E como em vossa absencia cõ mui principal amor e cordeal sospiro em vos falaua e mais que todas as cousas amaua ouvir aquellas que de vos trasia lembrança: lembrandouos isso mesmo ho cuidado de seu spiritu. quando fora do rreino ereis: onde quãto mais conhecia vosso esforço. tanto mais temia vosso periguo: os trabalhos e cuidados que por vossa homrra rreçebia com paçiençia: certamente sñor a lembrança destas cousas vos deuem por sua morte causar mais sentimento: porã se amamos os padres por serem causa de nosso ser. e pella obriguação que de seus beneficios e amor lhe deuemos: a este padre por todolos rrespeitos nõ deuemos menos estimar: nem seu faleçimento nos deue menos doer que do proprio e carnal pai q nos gerou: mas muito mais: pois cõ menos indinação de natura tamto como elle nos amaua: e pois conhecidas suas virtudes muito mais se deue destimar seu fale çimento a quem conheçeo ha autoridade de sua presença: e ha graça e mansidão de seu estado: seu calar e guarda de segredos: que he huma virtude Q muito cõuem aos silores de ha guardarem. e de lha guardarem: lembreuos ha antiguidade e a sageza e boa esquença de sua cavalaria: quãtos anos cõportou as calmas dos verãos frios e tempestades dos invernos cã diversas batalhas de imiguos: pospoendo todolos trabalhos: esquecendo todos os medos cõ mui rrepousado esforço por seruiço de deus e dei Rei. e acrecentamento de seu nome disse o filosofo q a rrepublica era como hum corpuo animado: e bem assi como a door ou perdimento de hum membro sente todo ho corpo e padece por causa delle: e quãto o membro he mais nobre: he mayor a dor ou periguo que se de seu dano segue: assi o faleçimento dos nobres que sam os verdadeiros membros da terra: a todos pertence sua dor e sentimento e todos rreçebem perda em seu faleçimento: pois sñor se dos que parentes nem subditos nã sam. he neçessario sentirem sua morte. como vos podereis dello escusar: a quem por estes e por outros muitos respeitos de natureza e rrezam mais que a todos vos pertence: e posto sfzor que a humanidade sinta paixão da morte dos taes diuidos: nom tem porem nisso justa querella: porq. naturalmente segundo filosophia e por o pecado de adam segundo fee: todos somos obriguados aa morte e diuida he assi obriguatoria q não nos deuemos agrauar em paguala: por que como dis seneca nos rremedios contra fortuna com esta condição entrei que sahisse: nos reçebemos esta alma e esta uida como almoxerifes pera darmos della conta: e pera ha tomar não ha tempo certo: mas quãdo quiser este Rei cujos oficiais somos: diz seneca nas epistolas. q com a mesa posta auemos desperar pena morte como por ospede: se nã uier ao jamtar. uira aa çea: e assi de dia em dia: por que como dizem os legistas. não ha hi cousa tam certa como a morte. e tam incerta como a ora em que ha de ser: e portanto na tragedia primeira diz a ninguem foi Deus tam fauoravel a cÍ prometesse hum dia de uida: mas a xxxbjjji de Isaias q Seneca nã uio diz que prometeo a Izechias sendo em artiguo de morte. xb. anos. de vida: e deste soo se lee que fosse certos anos seguro da morte: nhum outro teue tal priuilegio: porque ha primeira cousa que Deus falou e mandou a adam: loguo foi sob pena de morte. e loguo ho ameaçou cõ ella quãdo se achou nuu: e lhe ouve Deus de dar vestiduras: e de pelles de animais mortos ho vestio: de mortos vestimos: de mortos calçamos. de mortos comemos: todos nossos exercícios sam sobre fundamento de morte: como nas maldições dãe adam foi prometido que terra era e que terra se auia de tornar: nõ temos loguo querela da morte. pois faz ho que deue: nem menos se pode dizer que toma os homens desapercebidos por que ella manda seus embaixadores: diante vem a mãcebia tam periguosa e feruente, e tam vezinha da morte, a velhiçe trabalhosa e fea as dores cõ tamta paixam e marteiro. e tam parentas della uem as cãas bandeiras da morte como diz tulio no liuro da velhiçe: a primeira ora diz de tragedia. que tiuemos de uida. foi loguo comuertida em morte: e pois das causas naturaes nã deuemos tomar nojo: como da morte. que he mais natural que todas se tomara: mayormente os que vam a melhor luguar que qua tinham: e por seus mereçimentos esperam aver muito maior gloria ante Deus. do q neste mundo de trabalhos podiam ter prazer nem bemauenturança. dos quaes o sõr conde deue ser: e alem de ser a morte cousa justa ao corpo. he proueitosa a alma dos bons: e tambem a lembrãça della he rremedio pera muitos desconsolados. os quaes se cuidassem que pera suas desaventuras nã avia cabo nem fim, viuiriam em muita penitencia e perpetua desesperação. assim ho diz Job: he tambem a morte freo pera todolos vicios. a quem della tem cõtinua lembrança: lembrete da morte dis o eclesiastes. e nã pecaras: ensina socrates a desprezar as cousas do mundo. dizendo. se es rrijo. as doenças te emfraqueçeram. e se homem de prol. la vem a velhice q te fara feo. se rrico azougado he o dinheiro que foge azinha donde estaa: se de boa linhagem, isso he homrra de teus parentes. e a elles louvas e nã a ti. E ainda he louvor de homens mortos: aristoteles levou outra rregra no prim.° de ethica. todos porem acharam ha morte. mui proprio meyo pera tirar emveja e cobiça e todolos outros viçios: assaz he grande feito. q o melhor e mais homrrado Rei e sijor do mundo ha de morrer como que nã valha nada: e no primeiro da vida que he o naçer. e no fim della q he o morrer. todos os naçidos sam iguoaes: em que nã ha poder. ter. nem valer: escrevesse que era custume em persia quãdo novamente coroavão Rei: antre suas hõrras e cerimonias. vinha hum pedreiro cõ çertas maneiras de pedras: e requerialhe peramte todos. de quaes daquellas pedras queria ci lhe fizessem ha sepultura: por que no mayor seu triunfo nã lhe esqueçesse ha morte: e lembrandosse della: todas aquellas cousas emprestadas por tam pouco tempo ligeiramente desprezasse: outros Reis por este rrespeito custumavã ter nas suas mesas cabeças de homens mortos; todos estes exemplos sam esquzados quando pollo olho vemos hoje morrer meu pai. e omtem meu irmão. e outro dia meu filho, e meu amiguo. e de menhãa morrerei eu: vedes que ja outra cousa não fica do cõde de mira nem de quantos morrem. senã o nome de seus feitos famosos ao mundo: e ho mereçimento de suas virtuosas obras amte Deus: pera que he loguo nojo do que se cobrar nã pode: em vão he o sobejo sentimento das pedras passadas: lembraivos snor de vos mesmo. pois vedes estes joguos: e fazei como a deus louvores fazeis cabedal de vossa fama e conçiençia: lembrevos sua alma. pois tamto ho amas tes na vida e vos amava: "q" este he o mayor e mais neçessario beneficio q lhe podeis fazer: lenbrevos seus criados pera acharem em vos sempre emparo e favor, e isto em maneira fazendo bem a elles não façais a vos mal: por q a carga da gente. He cargua de pobreza. de pecados. cuidados de cansaço sem proveito: ho que sñor melhor sabeis que eu dizer posso: sñor porque dos grandes e de nobre coração atee a morte pertençe trabalhar por acreçentar em seius stados: mayormente no q justamente lhe pertençe: nõ he diuida cousa q alguma das cousas o dito sñor cõde vosso padre tinha leixeis por negrigencia: pois justo titulo em ellas tendes. e graças a deus soeis delias mereçedor e mui desposto pera as bem gouernar: como a seruiço de deus e del Rei nosso sñor. e bem de vossa fama pertençe: pello qual justamente e sem repremsam podeis e deveis rrequerer os adiamtados q o dito sñor tinha: e sendo deneguado. nõ deveis por isso de tomar fadigua nem nojo: por q a homrra nem a minguoa vos fara bem pouca minguoa: sosseguo e rrepouso por descanso de dez annos ha uos não leixa trabalhos: e por consolardes aquellas sfiras tamta tristeza ora tem: a quem vosso prazer he ultimo rremedio e por criardes aquelles sñres que deus faça tam grandes e discretos como seu pai.


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Vamos corrigir esse problema