Cultura filosófica e científica - Período Medieval

NACIONALIDADE E FILOSOFIA. PROBLEMAS FILOSÓFICOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA MEDIEVAL PORTUGUESA. SANTO ANTÓNIO DE LISBOA. HERESIAS MEDIEVAIS. CARACTERES DA CULTURA

TEOLÓGICA NO SÉCULO XV. PEDRO HISPANO E OS PROBLEMAS DA ORIGINALIDADE, AUTORIA E INFLUÊNCIA DAS “SÚMULAS LÓGICAS”. GOMES DE LISBOA E O AVERROISMO PADUANO. PEDRO MARGALHO. A FILOSOFIA POLÍTICA E MORAL. ÁLVARO PAIS,

O INFANTE D. PEDRO E D. DUARTE. SUMÁRIO DA ATIVIDADE CIENTIFICA.

A expressão “filosofia”, de origem helénica, adquiriu através dos tempos significações profundamente diversas, tão diversas que quem percorrer os escritos filosóficos de várias épocas e línguas se encontra com uma multidão de conceitos diferentes, por vezes contrários, quando não contraditórios. É que, ao invés das ciências particulares, a filosofia não possui um objetivo constante no decurso do tempo, cuja história seja sinónima das conquistas e progressos dos conhecimentos acerca desse objeto, e, portanto, jamais a história pode fundamentar uma definição da filosofia. Isto, porém, não significa que a filosofia se furte à consideração histórica; inculca apenas a necessidade lógica de atribuir à história da filosofia um objeto tal que a torne cientificamente possível, isto é, se não confunda com a mera exposição, descontínua e individualizada, das opiniões de pensadores isolados. Os mais simples dados claramente nos mostram que a reflexão filosófica se sintonizou sempre com os conhecimentos científicos, atividades e necessidades íntimas de cada época; e assim, como notou Windelband, quer a filosofia se volvesse em conceção geral do Mundo, sob a forma de mundividência, ou de síntese dos resultados das ciências particulares; quer se resolvesse em conceção geral da vida, dos seus fins e valores supremos; quer se absorvesse na autorreflexão crítica da razão e do conhecer — a reflexão filosófica teve sempre como finalidade dar expressão, mediante conceitos, às formas e conteúdos da atividade humana.

É este denominador comum que estabelece o nexo entre as doutrinas filosóficas, por diversos que sejam os respetivos conteúdos e objetivos, e nos permite, consequentemente, fundamentar a história da filosofia, evitando que ela degenere em história de escolas ou “seitas” e se perca na poeira das opiniões isoladas. Pela natureza a-espacial e intemporal dos pensamentos e pelo plano lógico em que se coloca, a reflexão filosófica, como a investigação científica, ultrapassa as fronteiras da nacionalidade; e assim, não houve nunca, nem pode haver, uma filosofia estritamente nacional, tanto mais que, frequentemente, o filósofo é um ser solitário, que empreende a reflexão sistematicamente, ah ovo, num desprendimento, quando não oposição, a todos os que o precederam.

Singularidade no pensamento e universalismo na intenção e no objeto são, pois, predicados inerentes à criação filosófica; porém, o filósofo é uma pessoa, e como tal sofre inexoravelmente a limitação do tempo e as sugestões conscientes ou inconscientes do ambiente. Por isso, a sua reflexão nasce com o cunho da época e da sociedade e este vinco determina uma conexão indissolúvel entre a matéria da reflexão, o filósofo que reflete e o ethos e as apetências da sociedade e da época em que ele vive.

É sob este aspeto que pode falar-se da influição da nacionalidade sobre a filosofia; mas apesar de restrita, mediante o estudo dos problemas que incitaram a mente dos filósofos de um dado país e a compreensão histórica dos resultados das suas reflexões, atingimos a compreensão das aspirações, tendências e características de uma nacionalidade. Estas considerações, simples e prévias, ditam o objetivo ideal do nosso trabalho.

Com efeito, empregando esta expressão — história da cultura filosófica em Portugal —, não pensamos em narrar apenas a sucessão dos filósofos que nasceram em Portugal, nem tão-pouco em fazer a apreciação das suas doutrinas segundo um critério valorativo ou esquema lógico; pensamos antes que o seu objeto deve dar-nos a visão compreensão da vida do espírito em Portugal, desde a sua gestação até às repercussões e incidências. Por definição, um povo é uma unidade de cultura; e como tal supõe a existência de uma consciência coletiva e de um ideal comum, assim como de indivíduos em cuja consciência pessoal se opera a reflexão prática e teórica.

Deste objetivo ideal resulta que o historiador da filosofia carece de percorrer e examinar as manifestações religiosas, científicas, literárias e políticas da comunidade portuguesa, assim como sondar as condições psicológicas, coletivas e individuais, que tornaram possível a reflexão filosófica autónoma e sua persistência sob a forma de escolas ou diretrizes de pensamento.

Assim compreendido, um lógico como Pedro Hispano, um filósofo da política como o Infante D. Pedro, um místico como Heitor Pinto ou Manuel Bernardes, um moralista como Matias Aires, um teórico da ciência como Francisco Sanches, um esteta como Francisco de Holanda, um crítico como D. Francisco Manuel de Melo, ou um poeta como Camões ou Antero de Quental, impõem-se ao exame do historiador, já pelo que exprimem na esfera ideal do espírito, já pelo que contribuíram para o desenvolvimento do pensamento filosófico, embora as suas mundividências e intuições da vida não tenham o selo da tecnicidade.

Tão largo conceito da história da filosofia não o poderíamos desenvolver atualmente; por isso, restringiremos o nosso estudo ao domínio tecnicamente considerado como filosófico, não nos ocupando igualmente do delicado e subtil problema da desintegração do pensar filosófico autónomo da massa indistinta da consciência coletiva.

Nos tempos mais recuados da história, o instinto e a espontaneidade regem os povos, revestindo então o pensamento uma feição mítico-religiosa. Pensar individual e pensar coletivo misturam-se e confundem-se no mesmo plano da consciência, mas com o alvorecer da dúvida, sucede a esta fase uma outra, na qual o homem, tomando consciência de si próprio, interroga e examina o pensamento tradicional e os seus mitos. A partir deste momento a sua posição perante o Mundo deixa de ser passiva, e abandonando os mitos e explicações legendárias, empreende a rota da explicação racional e do estabelecimento de fins ideais.

Só então desponta verdadeiramente o pensamento filosófico, que quase sempre, senão sempre, se confunde de início com a atividade científica. O estudo exaustivo da filosofia em Portugal devia, pois, começar com o exame do trânsito do pensamento mítico-religioso para a reflexão pessoal, e ocupar-se sucessivamente da influência romana, e da sondagem da cultura no período visigótico, no qual avultam Paulo Orósio e S. Martinho de Dume, no domínio árabe e por fim na reconquista e nos tempos que imediatamente precederam a autonomia política do reino de Portugal.             

Deixaremos, porém, em suspenso este estudo, já pelo seu carácter propedêutico, já porque à hora atual não atingimos ainda resultados concretos e objetivos, para nos ocuparmos apenas da cultura filosófica e científica desde o século XII até ao primeiro quartel do século XVI, isto é, desde o início da autonomia política de Portugal até ao raiar da Renascença, a qual trouxe uma nova estimativa de valores espirituais, uma diversa conceção da Natureza e inéditas direções e preocupações intelectuais.      

Durante estes três séculos, o ideal da Respublica Christiana impregnou a Europa de um profundo internacionalismo nas ideias, nos sentimentos e nas instituições. Ernest Renan, que possuiu o fino e penetrante sentido da observação do espírito humano, numa frase feliz do seu Averroes e o Averroísmo, livro ainda hoje famoso, sugere-nos admiravelmente este internacionalismo ao escrever que “certa obra, composta em Marrocos ou no Cairo, era conhecida em Paris e em Colónia em menos tempo do que necessita nos nossos dias um livro capital da Alemanha para transpor o Reno”.        

Tão íntimo e dilatado intercâmbio, espontâneo, sem agências nem sociedades que o incitassem, manifestou-se sobretudo nos países do centro e do ocidente europeu até ao século XVI ou XVII, e abrange todos os domínios da atividade espiritual.               

A existência de uma língua internacionalizada — o latim —, a unidade religiosa, e alguns pressupostos da especulação teológica, filosófica e científica, explicam suficientemente a comunidade espiritual da Europa medieva. Disse pressupostos, e com efeito são vários; porém, para a compreensão da problemática que se impôs à inteligência do português medieval, basta aludir apenas ao que se me afigura basilar o conceito e o valor que então se atribuía à verdade.

O espetáculo, patente no século findo, de radicais e quase súbitas revoluções jurídicas e políticas, e das profundas mutações na ciência e na filosofia, assim como a popularização de teorias do conhecimento de base psicológica e antropológica, conduziram o europeu médio atual ao convencimento de que não há uma verdade absoluta, que toda a verdade é relativa ao tempo e ao lugar, e mesmo, como se chegou a dizer e a tornar-se escola na América do Norte, que o mais coerente será identificar a verdade com o sucesso ou rendimento útil de uma ideia ou atitude.

Tem-se dito que esta posição, acrítica e falsa, é a projeção na ordem filosófica da atitude do homem de negócios; se a invocamos é apenas para acentuar que a conceção da relatividade do pensamento — inteiramente desprovida de base, porque os pensamentos, ao contrário dos objetos físicos e tangíveis, se furtam ao espaço e ao tempo — se generalizou por tal forma que constitui ainda hoje, a despeito da reação epistemológica contemporânea, uma característica da inteligência mediana.

Na Idade Média, porém, a conceção dominante era inteiramente oposta. O absolutismo e o universalismo da verdade foram, pode bem dizer-se, unanimemente reconhecidos, e, como justamente observou Landsberg, “a ideia central, a chave que nos abre a inteligência do pensamento, da visão do Mundo e da filosofia na Idade Média, é a crença de que o Mundo é um cosmos, um todo organizado em conformidade com um plano, um conjunto que se move tranquilamente segundo leis e ordenações eternas, as quais nascidas com o primeiro princípio de Deus, tem também em Deus a sua referência final. S. Tomás de Aquino, o espírito maior dos que plasmaram a ideia medieval do Mundo, considera que a finalidade da filosofia ut in anima describatur totus ordo universi et causarum eius — consiste em imprimir na alma a ordem total do universo e das suas causas. A confiança apriorística de que no Mundo, em todas as partes limitado, reina a ordem, constitui o grandioso otimismo metafísico do mundo medieval, sobre cujo fundo se destaca igualmente o pessimismo moral” (A Idade Média e Nós).

Os homens, fossem cristãos, árabes ou judeus, encontravam a verdade fundamental por assim dizer estabelecida, e como que limitaram os seus esforços a torná-la mais clara e acessível. Por isso, a Idade Média nos oferece o espetáculo da serena unidade, de uma síntese superior que a todos se impõe. A oposição tão radical entre o nosso século e os tempos medievos manifesta-se de uma maneira flagrante no sentimento da probidade e da propriedade intelectual. Hoje, o plagiador é pura e simplesmente um ladrão de ideias, porque todos admitimos que os resultados intelectuais a que um homem chegou são o produto do seu trabalho, da sua inteligência, do seu génio. Não assim na Idade Média. Ninguém atentava no plágio e se atentava não lhe atribuía uma significação subversiva da dignidade, porque a verdade era independente de quem a formulava. As contribuições ou variações individuais tinham uma importância escassa, salvo em matéria religiosa, e o amante da verdade procurava-a onde quer que lhe parecia existir, expondo-a sem se sentir moralmente obrigado a dizer onde a colhera. Por isso foi tão frequente a apropriação do trabalho alheio (deflorationes), não se lhe eximindo ninguém, dos mais obscuros aos mais afamados e criadores, como São Tomás de Aquino.

Estes factos, à guisa de prefácio, são suficientes para predisporem o leitor à ideia de que o Portugal medieval refletiu, clara ou palidamente, os movimentos da sensibilidade e do pensamento da Europa ocidental. Durante os três séculos de que nos ocupamos a cultura do espírito fez-se quase exclusivamente nos mosteiros e nas escolas, nacionais ou do estrangeiro, e nos paços régios, episcopais e nobres.

Perante a variedade dos factos que temos de examinar impõe-se, naturalmente, como questão prévia, a adoção de um método expositivo. O que primeiro acode é o critério cronológico, isto é, a exposição, segundo a ordem do seu aparecimento, das ideias ou atitudes de significação filosófica.

É óbvio que este método, fácil e intuitivo, tem o inconveniente grave de nos apresentar as doutrinas como que solitárias, não permitindo, demais, apreender a problemática que se impôs à reflexão; por isso, trocá-lo-emos pelo método histórico-filosófico, isto é, pelos problemas, indicando em relação a cada um dos problemas a sucessão cronológica das respetivas respostas ou soluções.

Este método supõe desde já uma visão do conjunto, que nos permita construir o esquema dentro do qual caberão todas as atitudes especulativas; e com efeito, se examinarmos todos os aspetos que implícita ou explicitamente envolvem uma conceção do Mundo ou da vida, ou simplesmente exprimem uma atitude de reflexão, notaremos como que quatro planos sobre os quais se inserem as inquietações do espírito lusitano durante a Idade Média. Esses planos são formados respetivamente pelo predomínio dos problemas teológico, filosófico, no sentido didático ou técnico, moral e político. O nosso trabalho vai consistir, pois, na exposição histórica de cada um destes problemas.

A filosofia medieval nasceu e, em grande parte, gravitou em torno das religiões, ou, mais precisamente, das teologias, das quais era solidária, quando não subordinada. Esta relação, verdadeira para os povos ocidentais da Idade Média, é-o de uma forma muito particular para Portugal, pois é quase só na esfera da patrística e da teologia cristã que se move o vago e ténue espírito filosófico. A primeira grande figura, de ressonância e hoje de culto universal, que nos aparece é o franciscano Santo António de Lisboa. Como acentuou o P.e Aloísio Tomás Gonçalves é a Fr. António de Lisboa, que cabe a honra de ter colocado “S. Francisco em circunstâncias de resolver” a sua atitude “perante a ciência em geral e perante o estudo dela em relação ao Frade Menor”.

Bastaria este facto para que o eflúvio religioso do saber de Fr. António de Lisboa fosse relembrado na história do franciscanismo e se considerasse peça fundamental para o exame da complexa e sempre discutida questão dos estudos na ordem dos menores; porém, a existência de uma carta de S. Francisco ao próprio Fr. António de Lisboa, como que transporta o nome e ação do famoso pregador do círculo da sua ordem para o seio da história da cultura teológica no Ocidente. Essa carta, de autenticidade controvertida, e cuja data a crítica coloca nos últimos dias de Dezembro de 1223 ou primeiros meses de 1224, comete a Fr. António de Lisboa o ensino da teologia:

“A frei António, meu bispo, frei Francisco envia saudações.

“É de minha vontade que leias sagrada teologia aos frades, de tal maneira que este estudo não extingam o espírito da santa oração e devoção, como na regra se contém. Adeus”.

“São estas breves linhas, no dizer preciso e elegante de Aloísio T. Gonçalves, a carta constitucional dos estudos franciscanos, o germe dessa florescência magnífica que tornou gloriosa a Ordem dos Frades Menores no campo das ciências.

António de Lisboa é o primeiro doutor franciscano, nas suas três manifestações características: teólogo na cátedra, pregador no púlpito, missionário no mundo. É o primeiro dessa série esplêndida de sábios ilustres pelo saber, e gloriosos pela santidade; série continuada por S. Boaventura, B. João Duns Escoto, B. Raimundo Lulo, S. Bernardino de Sena, B. Bernardino de Bustos, S. Leonardo de Porto Maurício, Frei Roger Bacon, Frei Nicolau de Lira, e outros inumeráveis, quer da Primeira, quer da Terceira ordem” (Ob. cit., p. 145).

Na sua simplicidade, a carta revela simultaneamente a índole do ensino segundo S. Francisco, e o saber de António de Lisboa, graças ao qual, porventura, se radicaram os estudos no seio da Ordem num momento crítico, e se marcaram, talvez, as diretrizes do movimento que culminou definitivamente com S. Boaventura.

São temas de controvérsia o local e a duração do ensino teológico do companheiro lusitano de S. Francisco, embora a crítica mais segura se incline para Bolonha e para um magistério fugaz, o máximo durante dois anos. Sem a pretensão de analisar estes factos, e de um modo geral a sua biografia, aliás cheia de obscuridades e lacunas, o que nos desviaria do nosso objetivo, basta acentuar que, sob o ponto de vista secular e leigo, a glória contemporânea e póstuma de Santo António se edificou sob o seu génio de pregador e missionário. A sua palavra ardente e incisiva ora se dirigia ao povo, ora ao clero, alternando a pregação com o que hoje poderíamos chamar conferências, isto é, o desenvolvimento e comentário de temas teológicos e escriturários. Como supõe fundadamente o seu biógrafo português já citado, devia “ter sido esta a maneira porque se formou a lenda do professorado de Santo António em tantas cidades da Lombardia, como são as que reclamam essa glória. As conferências teológicas havidas umas vezes ao clero secular e regular, outras só aos seus confrades, deram azo a que seja tido como professor em Pádua, em Vercel, e em vários pontos de Itália e França. Não o era, porém, de facto, com nós entendemos hoje a palavra” (ob. cit., 1567).

Para nós, hoje, o testemunho supremo do seu saber e da sua atitude teológica são os Sermões; vejamos, pois, previamente, e como introdução necessária, os momentos capitais da história bibliográfica das obras atribuídas a Santo António.

Os sermões dominicais ou de tempore foram a primeira obra divulgada pela imprensa. Publicou-os em Paris, em 1521, o famoso tipógrafo e editor Josse Bade, com o título Divi Antonii Patavini, vulgo dicti de Padua. Sermones Dominicales sive de Tempore.

A esta obra, posteriormente reeditada várias vezes, sucedeu em 1624 a publicação feita por Wadding das Concordantiae morales Bibliorum, e em 1641, a primeira edição dita completa, organizada por João de La Haye, contendo, demais, as obras de S. Francisco, sob o título: Sancti Francisci Assisiatis minorum Patriarchae, nec non Sancti Antonii Paduani eiusdem Ordinis Opera Omnia. Esta edição, reeditada em 1651 e 1739, compreendia além das obras já conhecidas — Sermões dominicais e Concordâncias morais — a Interpretatio mystica in S. Scripturam, que o editor de La Haye não atribuía diretamente a Santo António mas a um compilador que a organizou com base nos sermões do Santo. À data da edição completa de La Haye consideravam-se perdidos os outros sermões; porém, Francesco Antonio Pagi, explorando um códice da biblioteca Magliabechiana, teve a fortuna de encontrar um conjunto de Sermões inéditos, que publicou em 1684, em Avinhão, com o título Divi Antonii Paduani O. M. Sermones hactenus inediti de sanctis et de diversis. A edição de Pagi, que tinha várias omissões, foi completada em 1885 por António Josa, que além disso publicou um volumezinho de sermões marianos: Sermones Sancti Antonii de Padua in laudem gloriosae Virginis Mariae... Finalmente, os últimos sermões divulgados pela imprensa, que alguns críticos supunham ser os primeiros que o santo redigiu, foram os sermões sobre os salmos, descobertos por Azzoguidi num códice existente no convento de S. Francisco, de Bolonha, e por ele publicados em 1757: Sancti Antonii Ulyssiponensis sermones in Psalmos, ex autographo nunc primum in lucem editi ac praefatione…

Perante tão diversas edições dos Sermões impunha-se naturalmente uma edição crítica de conjunto. Foi o sacerdote Dr. António Maria Locatelli quem a empreendeu, e tão notavelmente que o seu trabalho acurado e erudito relegou para o domínio da arqueologia bibliográfica as edições anteriores.

A edição Locatelli — S. An.tonii Pat. Thaumaturgi Incliti Sermones Dominicales et in Solemnitatibus, quos ex mss. sec. XIII Cod. qui Patavii servantur, faventibus quinqueviris S. Antonii Arcae Curandae, consultis etiam Vaticano, Casanatensi aliis que exemplari bus, edidit notis que et illustrationibus locupletavit Antonius Maria Locatelli — foi publicada aos fascículos em Pádua, saindo o primeiro em 1895. Locatelli faleceu quando preparava o quinto fascículo; porém, a sua empresa, para a qual coligira numerosas notas, foi continuada em 1903 por um grupo de eruditos sacerdotes, que a dilataram a treze fascículos, num total de 926 páginas in-fólio, a duas colunas. Esta edição, apesar de alguns defeitos, serve hoje de base aos estudos antonianos, compreendendo as seguintes obras:        

a) Sermones in Evangelia Dominicarum per anni circulum. (Pág. 1-690), isto é, os sermões dominicales, a que Santo António chamava Quadriga.       

b) Sermones in laudem Beatissimae M. Virginis (Pág. 696- 736);             

e) Evangelia et Sermones Solemnitatum Sanctorum per anni circulum. (Pág. 741-926), isto é, Evangelhos e Panegíricos para as várias solenidades do ano litúrgico.  

Além destas obras, alguns críticos atribuíram ainda ao taumaturgo o Incendium amoris, a Sacra Biblia cum scholiis, as Concordantiae bibliorum in festivitatibus S. Mariae Virginis, e duas cartas em português, uma datada de Pavia, a 3 de Maio de 1223, e outra de Roma, a 10 de Maio de 1228.           

Tão grande variedade de escritos, exarados em códices diversos e de data diferente, suscitou naturalmente o problema crítico da autenticidade, tanto mais que não chegou até nós um único autógrafo do famoso pregador. O chamado Codice dei Tesoro (século XIII), durante séculos reputado autógrafo e que como relíquia se conservara desde o princípio do século XIV no tesouro das relíquias da Basílica de Pádua até que no século XIX passou para a Biblioteca Antoniana, embora digno de fé, não resistiu ao exame paleográfico, que nele descobriu a letra de quatro copistas diversos. Levar-nos-ia longe o relato dos vários juízos acerca de cada escrito; mas remetendo o leitor curioso para os estudos especiais, interessa-nos acima de tudo colher o que a crítica contemporânea quase unanimemente considera como autêntico. De tão vasto conjunto duas obras apenas são indiscutíveis: os Sermones dominicales, começados a redigir provavelmente em 1226, em França, e terminados em Pádua em 1230-1231, e os Sermones Solemnitatum. Os Sermões sobre os Salmos, cuja autenticidade era controvertida nos nossos dias, não pertencem a Santo António, como acaba de demonstrar num recente e eruditíssimo estudo o franciscano André Callebaut, que de uma forma indiscutível provou serem da autoria do Cardeal João Alegrin de Abbeville, legado pontifício em Espanha e Portugal.

Os sermões, na forma em que chegaram até nós, não contêm o texto íntegro das prédicas. Em rigor, são esboços ou esquemas, aliás redigidos depois de proferidos. O primeiro facto que impressiona o leitor atual é a variedade das citações, nas quais se espelha vasta erudição escriturária e teológica. O franciscano Gustavo Cantini, que acuradamente organizou o inventário das fontes dos Sermões, apurou, além das constantes referências ao Antigo e ao Novo Testamento, as seguintes citações de Padres e Doutores da Igreja: Santo Agostinho, 54 vezes; S. Gregório, 48 vezes; S. Bernardo, 35 vezes; S. Jerónimo, 11 vezes; Santo Isidoro, 6 vezes; Santo Ambrósio, 3 vezes; Orígenes, 3 vezes; Beda, Damasceno, Raban Mauro e Cassiodoro, respetivamente uma vez. Como era natural, dominam as citações patrísticas; porém, o mesmo diligente investigador apurou que as leituras do famoso pregador abrangiam ainda a literatura pagã, citando Solino, 4 vezes; Séneca, 2 vezes; Josefo, Horácio, Virgílio, Lucano, 1 vez respetivamente, além de várias referências sem indicação, designadamente ao Philosophus (17 vezes), que ora designa Aristóteles, ora Séneca, ora outro filósofo.

Dentre tão variadas leituras, o seu pensamento foi particularmente informado pelos escritos de Santo Agostinho e de Santo Isidoro de Sevilha. E compreende-se.

Sob o patronato do Bispo de Hipona dera os primeiros passos na vida religiosa, e para a obra do santo hispalense, verdadeira enciclopédia do saber da alta Idade Média, necessariamente tinha de orientar-se a sua curiosidade, nas matérias não puramente teológicas. Antes de abraçar a regra dos Frades Menores, o jovem Fernando de Bulhões estudara durante quase dois anos no mosteiro de S. Vicente de Lisboa e nove no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, um e outro dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Onze anos de aplicação e estudo em cenóbios augustinianos, cuja regra e ambiente intelectual o exortavam à meditação da obra de Santo Agostinho, e durante os quais, segundo a legenda Assídua, “revolvendo com a mais bem sucedida curiosidade as profundezas da palavra do Senhor, munia o seu entendimento dos testemunhos das Letras Divinas, para zombar dos laços e subterfúgios do erro; e por outra parte, examinava com uma indefesa aplicação as doutrinas dos SS. Padres, e desta maneira guardou na memória, por extremo fiel, tudo quanto lia no Convento, para que uma ciência não esperada das Escrituras houvesse de sair algum dia, como improvisadamente, da sua boca” (Trad. de Frei Fortunato de S. Boaventura).

Socorrendo-nos uma vez mais das sábias investigações de Cantini, verifica-se que era extenso e profundo o conhecimento das obras de Santo Agostinho. Assim, cita expressamente o De natura et gratia para provar a santidade da Virgem Maria; o De Trinitate e o De vera religione sobre o mistério da Trindade, e o tratado V In Epistolam S. Joannis acerca da perfeição da caridade; e além das citações expressas, há referências à letra ou ao sentido de outras obras, como à Enarratio in Psalmos, aos Sermones e ao De doctrina christiana.

A obra de Santo Isidoro de Sevilha partilhou com a de Santo Agostinho a influência primacial na formação e na cultura de Santo António, porém num sentido diverso. Santo Agostinho foi, acima de tudo, o orientador do seu pensamento teológico; Santo Isidoro, a fonte dos conhecimentos concretos. É no De ordine creaturaram liber, que Santo António cita sob o título Librum creaturarum, e sobretudo nos vinte livros Etymologiarum, que se encontra a origem dos conhecimentos acerca da etimologia dos nomes e da natureza, estes últimos colhidos também, em grau menor, no Rerum orbium memorabilium de C. Júlio Solino e nos Libri naturalis historiae de Plínio Segundo. Cometeria um erro grave, porém, quem visse nestas citações o prazer frio do erudito ou do exegeta que apenas procura a harmonia das ideias. Não é pelos raciocínios e construções teológicas que os seus sermões merecem ser conhecidos, mas pelo método incisivo, de comentário breve e rápido às invocações das Escrituras e pelo objetivo da pregação.

Martelo das heresias, lhe chamaram os contemporâneos, e com verdade, porque nas páginas espessas dos sermões, sob a secura dos períodos que chegaram até nós, ouve-se ainda o eco de uma voz sensível e apaixonada contra os desvarios do século e desvios morais dos povos e do clero. Foram os dissídios religiosos da Itália e do sul da França que estimularam a sua eloquência, e por isso pregou principalmente para o povo. Ouviram-no, por vezes, segundo se afirma, auditórios de trinta mil pessoas; e se para tal sucesso contribuíam o talento oratório e o perfeito domínio das línguas que utilizava, não deve esquecer-se também a fama prodigiosa dos seus milagres, que exaltavam a imaginação das gentes, e lhe propagandeavam o nome.

A erudição foi para ele um instrumento, e não um fim; e assim, quando recorria a episódios da história sagrada ou profana, a autoridades, a exemplos ou factos dos três reinos da Natureza, quase sempre interpretados alegoricamente, era para comover o ânimo dos auditores e sugerir-lhes uma regra de ortodoxia religiosa ou uma virtude moral de aplicação prática. Não dissertava, pois; exaltava as virtudes da caridade e da fidelidade ao corpo místico da Igreja, e, como franciscano, em cujo coração e o sentimento do parentesco da ordem física e da ordem moral, exaltava Deus, procurando que os incultos e simples o amassem, e o descobrissem sob as maravilhas do universo criado. Não se veja nestas observações a insinuação, sequer inconsciente, do panteísmo. A atitude mental e a índole de Santo António foram plenamente ortodoxas. Com a tradição teológica repartiu a vida em duas direções — a vida ativa e a vida contemplativa —, aquela serva desta, e a vida contemplativa impossível fora da Igreja. Só esta realizava plenamente os fins da vida religiosa ideal; porém, se do ideal passarmos para a observação crítica da noção de contemplação, teremos de reconhecer com Ludgero Meier  que o seu pensamento se não fixou em fórmulas precisas.

Um ponto parece assente: não foi intelectualista, mas voluntarista. Daí o predomínio da atitude ascética no seu pensar e sentir, e o primado da vontade na contemplação. Devemos, porém, considerá-lo um pensador da mística?

Apesar do juízo em contrário de alguns críticos como Lempp, cremos que Heerinckx demonstrou amplamente que Santo António deve ser incluído entre os autores místicos, já pelo saber teológico, já pela reflexão sobre a sua própria experiência religiosa pessoal.

Mediante as acuradas e penetrantes investigações de Heerinckx, que resumiremos concisamente, apura-se uma vez mais que as fontes dominantes do seu saber teológico foram Santo Agostinho, S. Gregório e S. Bernardo. Não ocorre uma única citação dos escritos de Dionísio Areopagita, e só nos derradeiros sermões, isto é, nos Sermones Sanetorales, se acusa a influência de Ricardo de S. Vítor, na doutrina da dúplice contemplação infusa. Sob este ponto de vista, Santo António pertence, pois, à corrente mística ocidental, geralmente qualificada de pré-dionisiana e pré-Vitorina.

Para além, porém, do saber e da meditação inspirada nas ideias de outrem, as suas reflexões sobre a vida contemplativa têm o calor da experiência religiosa pessoal. Ao que parece, não foi nunca tocado dessa manifestação suprema e típica a que o psicólogo contemporâneo Delacroix chamou experiência teopática; no entanto, transparece nelas um fervoroso sentido da vida espiritual e contemplativa, sobre o qual os mais antigos biógrafos, que se detiveram embebecidos na gesta do taumaturgo, coincidem, ao louvarem-lhe a alta oratio e a contemplado perfecta. O que vimos escrevendo não significa que atribuamos a Fr. António de Lisboa a auréola da santidade seráfica, porque o realismo das suas imagens, o popularismo da sua prédica e o estilo combativo da sua ação missionária apresentam-no-lo antes como tipo de santidade ativa e militante. Pela índole do seu carácter e apostolado, Santo António não deu, pois, uma feição especulativa às suas vivências místicas. Trocou frequentemente, é certo, a interpretação literal das Escrituras pelo sentido espiritual ou místico; mas ao fazer esta transposição, ao aludir em passos diversos e incidentais à natureza e graus da contemplação infusa, e aos estados ascéticos e místicos, a teologia mística tem no seu verbo o acento prático, que não puramente especulativo. É, que, insistimos, o pensamento antoniano não se movia com finalidade escolástica ou teórica, mas impregnado de espírito franciscano visava fins práticos e afetivos.

Como notou Heerinckx, cujas observações têm por vezes o sabor do inédito e são sempre penetrantes, Santo António apelidou de noite a purgado passiva. Foi S. João da Cruz quem, segundo cremos, fez a análise profunda da purgação, e é singular que tivesse empregado o mesmo termo, ao distinguir a noche del sentido da noche del espiritú. Identidade de pensamento, que não imitação ou influência; mas não obstante, Heerinckx não receia afirmar que Santo António foi o primeiro dos autores espirituais, e três séculos antes de S. João da Cruz, a apontar “os três sinais clássicos da purgatio passiva», embora lhes não desse a forma clara e metódica do místico carmelita.

Pelo seu magistério, assim como pela índole da sua atitude mística, Santo António foi o precursor de S. Boaventura, († 1274), o teórico do espírito franciscano e o segundo fundador da Ordem.

Como dissemos já, Santo António integra-se na cultura medieval portuguesa pela sua formação intelectual em Santa Cruz de Coimbra; e sob outro aspeto o podemos ligar ainda à vida religiosa do país natal: pela atitude dentro da Ordem dos Frades Menores.

Nas pugnas que dilaceraram a ordem franciscana após a morte do fundador, Santo António tomou francamente o partido dos zelanti, e contra Fr. Elias foi o eloquente defensor do ideal da pobreza, Summum da perfeição cristã. Os parcos elementos que até agora colhemos habilitam-nos a supor ter sido esta a doutrina inspiradora do primitivo movimento franciscano em Portugal. De S. Francisco diz Tomás de Celano que “amabat ut omnia peregrinationem, omnia cantarent exilium”, e só a prática fremente deste sentimento de renúncia torna explicável a enérgica oposição de certo sector do clero. A voz dos interesses seculares consolidados foi a clamorosa e por vezes demagógica, ousando dizer, em 1233, o deão do Porto, que os frades menores eram ladrões, gente prejudicial ao mundo, não eram católicos, senão hereges, falsos profetas e enganadores dos povos.

O pontífice Gregório IX, na bula Nimis iniqua de 1231 procurara quebrar a resistência do clero secular; mas em Braga, em 1238, desviavam-se os fiéis de dar esmolas aos mendicantes e de cumprir os legados prometidos, e no Porto, em 1241, o bispo manda ou autoriza que se destrua e saqueie o convento franciscano da cidade.

Não chegou talvez a Portugal a ressonância do Evangelho Eterno, de Joaquim de Flora; porém, houve sem dúvida fraticelli e beguinos, porquanto na Lei das Sesmarias se afirma que “alguuns filham avitos de Religiam, e vivem apartadamente... e sob fegura de Religiosos e da santa vida andam pelas terras pedindo, e ajuntando algo, e induzindo muitos, que se ajuntem a elles, e per seu induzimento deixam os mesteres e obras, de que usam, e vaão estar e andar com elles nom fazendo outro serviço, nem outra obra de proveito — (Ordenações Afonsinas, IV t. 81, § 5.°). Esta atitude religiosa, de vagabundagem e talvez anticlerical, afigura-se-nos ter uma raiz espiritual idêntica aos fraticelli e irmãos da pobreza. O laicismo é evidente, o qual se denuncia igualmente nas beguinas, cuja existência se comprova nos fins do século XV (1481): “fazem conventículos de fora, e não querem tomar ordem aprovada, praticando obras a Deus pouco agradáveis e contra seu serviço e injúria sua”.

Os factos descarnados e simples que vimos de apontar não permitem sequer a sondagem das doutrinas professadas por tais errabundos e heréticos religiosos; mas temos por muito provável que com eles surgiu entre nós o problema do direito de propriedade, ou mais precisamente a conceção da propriedade como fruto do pecado e da corrupção humana. No próprio episcopado uma voz houve, a do bispo do Porto (1310) e mais tarde bispo de Lisboa (1313), Fr. Estêvão, confessor do rei, que em resposta à famosa consulta do papa João XXII não receou exprimir a opinião acerca da pobreza de Cristo e dos Apóstolos — o que lhe valeu a transferência em 21 de Agosto de 1322 para a diocese de Cuenca por ordem do papa.

E compreende-se. Enquanto a questão se debatera apenas entre teólogos e canonistas era essencialmente uma questão teórica, embora de grave projeção prática na vida da Igreja; porém, a partir do momento em que o capítulo geral dos franciscanos, realizado em Perusa no Pentecostes de 1322, ousara dirigir a toda a Cristandade duas epístolas nas quais os ministros provinciais, custódios, leitores, licenciados e bacharéis da Ordem, afirmavam não ser herética, mas ortodoxa, a doutrina de que Cristo e os Apóstolos nada possuíram em comum ou como próprio, a cúria de Avinhão sentiu-se diretamente atingida. Indignado, o papa João XXII desfere sucessivamente sanções de carácter pessoal, como ao bispo de Lisboa, e, em termos nada lisonjeiros para a ordem de S. Francisco, responde à decisão do capítulo com a bula Ad conditorem canonum de 8 de Dezembro de 1322, cuja violência de forma e fundo mais tarde atenuou na bula Cum inter nonnullos, de 12 de Novembro de 1323, na qual dogmaticamente decretou ser herética a opinião de que Cristo e os Apóstolos nada possuíram em particular ou comum, ou apenas tivessem tido o uso dos bens.

Os fiéis à letra e ao espírito da regra franciscana, cujo ânimo se não compadecia com a posse e a propriedade, transigindo apenas com o usufruto em nome da Igreja, sofreram um abalo profundo com a decisão do pontífice. A maioria submeteu-se; porém, alguns raros, como Guilherme Ockam, tornaram-se adversários do pontífice, e outros não calaram as dúvidas e razões para persistirem na doutrina da pobreza teórica. Por falta de elementos e testemunhos ignoramos qual foi, neste transe da Ordem, a atitude doutrinal dos franciscanos portugueses; sabemos apenas que um, Álvaro Pais ou Pelágio, largamente expôs a sua opinião posteriormente às decisões do pontífice, entre 1330 e 1332.

É duvidosa a nacionalidade do famoso teólogo, cuja ilustração de espírito foi vasta, embora a viciasse a tendência depressiva e irresistível para o exagero. Sabemos de segurança que era hispano, isto é, peninsular, como ele próprio confessou: Alvarum Pelagium de ordine minorum professorem, natione hispanum; Frater Alvarus professione minor, Silvensis minister, natione ispanus, respetivamente, no De plancto Ecclesiae, e no Collyrium fidei adversus haereses. Concorreu talvez para esta obscuridade a circunstância de Álvaro Pais ser filho ilegítimo, como notou o franciscano Alejandro Amaro ao encontrar numa bula de João XXII dirigida a Alvaro Pais a dispensa da macula geniturae ex prohibita parentum copula, per verba de praesenti conjugatorum, contracta. Fosse, porém, galego, andaluz ou português, o certo é que uma parte considerável da sua vida se desenrolou em Portugal. Em Lisboa, frequentou a Universidade — Schola Decretaliurn, como ele lhe chama, ignorando nós se como escolar, se como mestre, embora pareça ter sido ocasional e transitoriamente professor. A sua passagem por Lisboa, assim como por Coimbra, devemos hoje a indicação do elenco das heresias e opiniões dissidentes, a que em breve faremos referência, e finalmente foi bispo de Silves desde 1333 a 1348 ou 1349.

O seu episcopado foi agitado por querelas e pleitos de vária ordem; de tal sorte que, por motivos que ao certo desconhecemos, teve de abandonar a diocese, indo para Sevilha, onde faleceu em 1349. O seu cadáver foi deposto no convento de Santa Clara da capital andaluza, num mausoléu de alabastro, que é um admirável monumento da arte funerária gótica.

Se invocamos estes factos é para acentuar que alguns aspetos da atividade doutrinal e prática de Álvaro Pais se filiam no meio cultural e religioso do Portugal seu contemporâneo, o que aliás, em parte, a simples indicação das suas obras corrobora. São de Mvaro Pais os escritos seguintes:

a) De Planctu Ecclesiae.

Foi redigido de 1330 a 1332, em Avinhão, onde exercia o ofício de Penitenciário, como declara no explicit da obra. Dirigiu-o ao cardeal D. Pedro Barroso, bispo de Cartagena, escrevendo-o, como declara no prólogo, ad honorem Dei et Ecclesiae romanae, matris meae, et Francisci seraphici almi mei Patris. Foi impresso em Ulm, em 1474, e posteriormente em Lyon (1517) e Veneza (1560). Existem vários códices, dos quais A. Amaro dá notícia, assim como das obras seguintes.

b) Speculum Regum.

Foi escrito entre 1341-1344, em Tavira, como declara no explicit: Finivi hoc opus ego Presul indignus Silvensis, frater Alvarus de Ordine Minorum, in Algarvia, in villa de Tavira, anno Domini milesimo CCCXLIIII, mense Iulii, decima die transacta.

Como o próprio título indica, é uma obra de filosofia política. A. Pais dirige-a a Afonso XI, de Castela, inculcando-lhe, sob a forma de um espelho no qual devia ver a sua conduta, um programa de ação para o governo de um príncipe católico. Conserva-se ainda inédita, salvo alguns passos que Scholz publicou nos Unbekannte Kirchenpolitischen Streit, aus der Zeit Ludwig des Bayern (1327-53). Analisen und Texte. Parte II. (Roma, 1911), pp. 514-29, e Alejandro Amaro, no estudo citado. Ao tratar da filosofia política, voltaremos a este trabalho.

c) Collyrium fidei adversus haereses, do qual Diillinger (Beitriige zur Sektengeschichte des Mittelalters, 1890), Menendez y Pelayo (História de los heterodoxos espaholes). Scholz (ob. cit.) e A. Amaro (ob. cit.) publicaram alguns fragmentos, foi escrito, segundo parece, em Portugal, durante o governo da diocese de Silves, e depois de 1344, pois não só cita o Speculum regum, como acentua a sua atividade anti-herética em Lisboa e em Coimbra. O fim desta obra é a extirpação das heresias antigas e modernas, e como o título mostra, pretende curar os olhos dos hereges e dos infiéis, iluminando-os com a fé e a doutrina católicas. Segundo A. Amaro, que examinou um manuscrito da Biblioteca Nacional de Madrid, a obra divide-se em seis partes. “A primeira contém sessenta e cinco heresias ou erros, que noviter pullularunt. Trata do dogma da Igreja, do primado do Papa, leis eclesiásticas; das tradições da Bíblia, a bel-prazer de cada um; da comunicação com os excomungados, para o que obtinha cartas régias, aludindo a práticas espanholas neste sentido; das superstições, adivinhos, agoireiros, espiritismo, etc., de grande valor para a compreensão da cultura medieval espanhola; dos hereges Tomás Auriano ou Escoto e Geraldo de Montemor; das relações entre cristãos, mouros e judeus; do rebatismo dos cristãos apóstatas que regressem à Igreja; da corrupção eclesiástica; da intromissão laica no terreno eclesiástico; práticas simoníacas, etc.”.

“A segunda parte abarca os erros que se mencionam nas decretais, especialmente no Decreto XXIV, qu. III, Quidam. São setenta e sete heresias condenadas em concílios particulares, ecuménicos até então havidos, e decisões papais. Respeita especialmente às heresias da Igreja antiga, como gnósticos, menandristas, basilidianos, carpocracianos, novacianos, arianos, etc.

“A terceira parte compreende outras heresias contidas nos Decretos. São dezassete, de carácter principalmente disciplinar.

“A quarta abarca trinta e duas heresias, citadas nas decretais dogmático-disciplinares.

“A quinta contém vinte e três heresias que ante et nunc noviter pullularunt. É de especialíssimo interesse, pois se ocupa de heresias e erros que brotaram diante dos seus olhos, como as heresias de Marsílio de Pádua, e dos já referidos Tomás Escoto e Geraldo de Montemor, aos quais combate nesta parte; a impugnação de que é objeto Marsílio não tem o interesse do inédito, visto encontrar-se literalmente no cap. LVIII, I, do De Planctu Ecclesiae, mas não assim a refutação dos outros hereges. Neste ponto reside precisamente o seu interesse para o conhecimento da Espanha [aliás Península] medieval, tanto mais que foi protagonista em muitos dos casos, e conhece a fundo a sociedade de que fala. Finalmente, na sexta parte fala dos erros dos gregos, indicando quarenta e quatro heresias. O processo de exposição e refutação usado por Álvaro Pelágio é o escolástico típico: apresenta o erro, refere a sua história, e em seguida repele-o com abundante cópia de razões teológico-filosóficas, ou da Escritura e Direito; no fundo, é um tratado histórico-dogmático” (Alej. Amaro, ob. cit.).

Às heresias que respeitam ao meio português, faremos em breve referência.

d) Quiquagesilogium.

É uma coleção de sermões, completamente inéditos. Existe um manuscrito na Biblioteca Canoniciana de Oxford.

e) Sermo de visione beatifica.

Manuscrito perdido, que A. Amaro supõe “tratar da célebre questão acerca da glória, suscitada pelo sermão de João XXII acerca da glória dos que morrem em graça, perfeitamente purificados de toda a culpa e reato dela”.

f) Obras menores. Temos ainda notícia dos seguintes escritos inéditos:

1) — Comentário sobre o Evangelho de S. Mateus (Vid. Iung, ob. cit., 63).

2)—Papae potestas adhuc super Imperii et Concilii generalia, ejus que infallibilitas, existente na Biblioteca Casanatense de Roma (Vid. Amaro, ob. cit.).

3) — Quaestiones quodlibetales, existente na Biblioteca de Pádua (Amaro, ob. cit.).

4)— Epistola Alphonsi IV regi Portugalliae, a qual começa: Domine mi, Rex. Ms. do século XV, existente na Biblioteca dos duques de Borgonha (Vid. Amaro, ob. cit.).

5) — Barbosa Machado e Wadding atribuem-lhe ainda um Comentário aos Quatro Livros das Sentenças, cuja existência não é acusada em nenhuma biblioteca.

Após este indículo biobibliográfico, retomemos o problema da pobreza teórica. Foi no De Planctu Ecclesiae, caps. LV-LXII do livro II, que Álvaro Pais expôs a sua opinião, impregnada, como era natural, dos sentimentos da ordem franciscana. Contra a bula Ad conditorem sustenta que Cristo e os Apóstolos, assim como os frades menores, nada possuíram em comum ou em particular, visto que o uso das coisas, como procura demonstrar contra juristas e romanistas, é separável da propriedade e do domínio; e contra a bula Cum inter nonnullos afirma a existência de quatro tipos de posse: uso simples, de facto, como os servos e religiosos, especialmente franciscanos; uso com direito de administração, como os bispos, pois as coisas não lhes pertencem em propriedade; uso com domínio, como por exemplo os dízimos da Igreja, e uso com direito positivo, o qual foi introduzido iniquamente no Mundo, dando lugar ao meu e ao teu. Esta forma de uso não é reconhecida aos franciscanos.

Como notou A. Amaro, que a este assunto dedicou uma acurada monografia, “pelo mero facto de abdicar da propriedade, não se segue a renúncia do uso simples, uso que se exerce sobre as coisas, não de direito mas de facto. O uso de facto é necessário para sustento da Natureza, logo é de lei natural, e por nenhuma lei pode ser restringido ou mudado. A propriedade, a posse e o domínio são de direito humano, e o usufruto e o direito sobre o uso, de direito civil; a estes pode renunciar-se, não ao primeiro. Fora disto, as coisas na extrema necessidade estão sem dono, e qualquer as pode usar; logo, pode haver uso sem propriedade, logo são separáveis. É, diz Álvaro Pais, como o cavalo que tem o uso da aveia e do feno que come, e sobre o qual não tem domínio Assim é o servo e o religioso”.

Basta esta sumária indicação para nos mostrar que Álvaro Pais defendeu a tese da sua ordem, reagindo contra o conventualismo que foi uma das consequências das decisões de João XXII.

Com a exaltação dos espirituais no seio do franciscanismo entramos nas fronteiras da heresia; e com efeito no século XIV ela aparece-nos sob formas diversas, revelando a existência de um meio intelectual agitado, no qual ecoam algumas das dissidências que perturbavam as escolas de Paris, principalmente pela irradiação do ensino averroísta. É, ainda Álvaro Pais quem nos guia neste emaranhado dédalo de dissídios doutrinais com as obras De Planctu Ecclesiae e sobretudo o Colyrium fidei adversus haereses.

Na segunda parte do De Planctu, a sensibilidade de A. Pais, refratária à serenidade crítica, transborda de amargura pelos defeitos e vícios da sociedade, da cúria, do clero, dos reis, das magistraturas, numa palavra, de todas as classes e profissões. É um quadro sombrio da vida medieval; mas através dos negrumes da visão pessimista surpreendem-se, por vezes com intimidade, os sentimentos da época.

É no Colyrium fidei, porém, que Álvaro Pais, desejoso de medicar o mal, ao diagnosticá-lo nos deu notícias sobre as heresias em Portugal.

Menendez y Pelayo na História de los heterodoxos españoles, inventariara as heresias deste século; porém, é de elementar justiça citar o estudo de A. Amaro, pois dilatou consideravelmente o quadro herético que o polígrafo insigne organizara, embora em nada lhe alterasse o valor interpretativo. Seguindo A. Amaro, que examinou um códice do Colyrium, A. Pais dá notícia de vinte e duas heresias, que sistematizaremos em dois grupos: heresias propriamente teológicas, e conceções filosóficas de consequências heréticas.

Nas heresias teológicas contamos, entre outras, as seguintes:

1.°) Os cânones, Concílios e Decretais não têm a autoridade do Antigo e do Novo Testamento;

2.°) A Trindade foi criada e incarnada no útero virginal, como diz, “na sua cantiga sobre a Beata Maria, Afonso Geraldes de Montemor, que é tido como homem virtuoso”;

3.°) A virtude do Espírito Santo foi-lhe dada pela Natureza;

4.°) Moisés, Cristo e Maomé foram três impostores, que enganaram respetivamente os judeus, os cristãos e os mouros. Assim dizia Tomás Escoto, pelo que foi encarcerado em Lisboa, o qual sustentava ainda a conveniência da vinda do Anticristo;

5.°) Comentando Isaías, IX, dizia Tomás Escoto que Deus fortis era um nome próprio, que se não podia aplicar a Jesus Cristo;

6.°) Negava ainda o mesmo herético a imortalidade da alma, a virgindade de Maria, a existência dos anjos e demónios, a transubstanciação da Eucaristia, e que Cristo fosse filho próprio ou natural de Deus: era tão-somente filho adotivo;

7.°) Sustentava, demais, que o poder dado por Cristo a Pedro e aos Apóstolos não fora transmitido aos sucessores destes, e que Cristo tinha sido um homem mau, pelo que o crucificaram, e fizera milagres não por virtude divina, mas por mágica e poder natural.

Nas conceções filosóficas de consequências heréticas são dignas de nota principalmente:

1.°) A afirmação de que o Mundo é eterno e regido pela fortuna e pelo destino;

2.°) A afirmação da eternidade do homem;

3.°) A afirmação de que a fé se provava melhor pela filosofia que pelas Escrituras e pelas Decretais;

4.°) A afirmação da superioridade intelectual de Aristóteles, o qual fora mais sábio, mais subtil e havia falado com mais elevação que Moisés.

Destas heresias interessam-nos particularmente as que têm como arauto Tomás Escoto ou Auriano, ignorada personagem, talvez de nacionalidade escocesa, que Álvaro Pais nos apresenta como emigrado das ordens franciscana e dominicana, e “seductor publice in scholis decretalium Ulixbone”. Com ele disputou Álvaro Pais, mas só a prisão nos cárceres de Lisboa parece ter feito calar o corrosivo heresiarca.

O seu espírito audaciosamente crítico não se deteve perante as mais atrevidas consequências, as quais simultaneamente atacavam as crenças, as doutrinas teológicas e as conceções filosóficas então dominantes. As teses antiteológicas deste “summus hereticus hereticorum” eram essencialmente negativas. Negava a ressurreição, a imortalidade, a filiação divina de Jesus, a virgindade de Maria, etc. e como síntese destas negações condensara numa blasfémia inaudita toda a sua irreverência de desesperado na teologia: as religiões judaica, cristã e maometana eram obra de três impostores.

Estas negações são o corolário duma conceção filosófica racionalista; e na verdade Álvaro Pais diz-nos que Tomás Escoto julgava Aristóteles mais sábio que Cristo e sustentava que a fé encontrava na razão, que não nas Escrituras, o seu melhor fundamento. Este racionalismo é um eco da influência de Averrois, e quer-se melhor prova do que a tese da eternidade do Mundo, isto é, a negação da criação ex nihilo, que T. Escoto defendia? O conceito aristotélico da matéria primeira, eterna, substrato lógico do devir e ideia-limite da máxima indeterminação, é a fonte remota desta atitude; mas a sua origem próxima deve filiar-se no averroísmo latino, de que Siger de Brabante fora neste século o representante supremo.

Segundo Averrois, o mais famoso intérprete medieval de Aristóteles, a geração, em si mesma apenas movimento, supõe um sujeito, isto é, a matéria primeira, ou substractum de infinitas possibilidades, ingerado e incorruptível, que não possui nenhuma qualidade positiva, mas é apto a sofrer as mais opostas modificações. Semelhante interpretação, que, com as teorias da unidade do intelecto ativo, eternidade do tempo e do mundo, constituiu a essência do averroísmo, foi um verdadeiro Schibbolett entre crentes e espíritos fortes; e apesar de refutada, perseguida e odiada, gerou de uma forma mais ou menos inconsciente e subterrânea as tendências libertinas e racionalistas da Idade Média e da Renascença. A esta luz, as heresias de Tomás Escoto, procedem do ensino parisiense de Siger de Brabante, bastando notar a similitude das suas proposições com os ditos, blasfémias e juízos dos estudantes de Paris, que não hesitavam em dizer que “a teologia se funda em fábulas; que só os filósofos são os sábios deste mundo; que o cristianismo é um obstáculo à ciência; que só neste mundo existe a felicidade; que a morte é o termo final de tudo; que nos não devemos preocupar com a sepultura; que a confissão não deve ser sincera; que se não deve rezar e que o coito não é um pecado.

A literatura trovadoresca do século XIII oferecia-nos já, e com abundância, alguns temas de imprecação, de desalento, paródia e brinco com a ortodoxia. Assim algumas canções de João de Guilhade, Vasco Gil, D. João Soares Coelho, João Lopes d'Ulhoa, Gil Peres Conde e sobretudo Pero Garcia Burgalês.

O Dr. Rodrigues Lapa, que na sua tese Das Origens da Poesia Lírica em Portugal na Idade Média (Lisboa, 1929, pp. 99-105) pela primeira vez entre nós sondou com penetração e saber este aspeto da lírica trovadoresca, pensa que estas “atitudes eram mais uma tradição literária do que propriamente uma rebeldia em matéria de crença; eram devidas à excessiva e perigosa familiaridade com o tema da coita-expiação, obra de Deus, da qual ele se servia para provar a paciência e a constância do namorado. E quando este já não pode mais aturar o sofrimento, ou finge não poder, surge a imprecação herética, que, sendo como é um formalismo literário, não deixa de ser um rasgo distintivo do lirismo galego-português. Parecendo paradoxal, é assim mesmo: esse facto constitui uma das provas mais concludentes das origens eclesiásticas da nossa poesia lírica.

“Todavia, não exageremos esse carácter literário em prejuízo da verdade: os homens da segunda metade do século XIII disfrutavam uma liberdade, em matéria religiosa, que degenerava por vezes em desbocada soltura: era a consequência, mais ainda que duma esparsa cultura filosófica com carácter heterodoxo, das lutas ardentes com a Igreja, que não pouco abalaram a consciência religiosa do País. A indiferença, o ceticismo com que se acolhiam as decisões proibitivas da Igreja, ressalta deste texto legal de 1250: “os meirinhos e os outros homens nossos dizem que já não dão uma palha pela excomunhão”.

“As Cantigas de Santa Maria revelam sacrilégios variadíssimos, sendo curioso observar como um livro de edificação religiosa nos mostra crimes nefandos de religião, que, trezentos anos mais tarde, teriam trágico epílogo na fogueira inquisitorial”.

Na primeira metade do século XIV, porém, a avaliar pelo que Álvaro Pais diz das poesias de Afonso Geraldes, de Montemor, hoje perdidas, a heresia procede do averroísmo latino, filiando-se mais na filosofia que no protesto sentimental do amoroso; mas tanto aquelas, como estas, foram manifestações episódicas de uma ligeira varíola, que não afetou a integridade ortodoxa da nação. No século XV tais manifestações atenuam-se profundamente. D. João I, o rei de boa-memória, alude ainda a pessoas “que caíram e caem em mui grave pecado de heresias, dizendo e crendo e afirmando coisas que são contra o nosso Senhor Deus e a Santa Madre Igreja” (Ordenações Afonsinas, t. I, liv. V, § 4); porém, estes desvios são episódios obscuros, sem significação geral. Pelo contrário, este século conheceu um entusiasmo religioso, que se manifesta desde as formas externas, como a multiplicação de fundações monásticas, até ao desenvolvimento da cultura teológica.

Os pregadores desta época são acima de tudo teólogos, e os seus sermões o desenvolvimento de um ponto de doutrina.

É o que flagrantemente nos prova a pregação de Mestre Francisco, à qual D. Duarte alude no Leal Conselheiro. Nela desenvolveu o ignorado pregador um raciocínio idêntico ao famoso pari de Pascal, porém superficialmente, sem as dimensões metafísicas que o génio do autor dos Pensées lhe conferiu: o homem tudo tem a ganhar com a prática dos mandamentos da Igreja, porque ou há uma vida futura ou não há. Se há, perderia “por sua descrença a maior perda que poderia perder”; se não há, não perdia coisa alguma.

Tão singular coincidência, que julgamos corroborar a hipótese dos antecedentes muçulmanos do pari, tão erudita e penetrantemente elucidados pelo Prof. Miguel Asín Palácios, revela uma larga cultura teológica, que visava acima de tudo fins apologéticos. É que em Portugal havia então mesquitas e sinagogas, protegidas por discreta e caritativa tolerância, e este facto explica-nos, de certo modo, aquela tendência apologética, que encontrou a sua mais perfeita concretização no livro chamado Corte Imperial, publicado em 1910, por José Pereira de Sampaio (Bruno) como vol. I dos Inéditos da Biblioteca Pública Municipal do Porto. É este livro um verdadeiro tratado no qual o seu desconhecido autor faz uma breve suma teológica, aliás sem a ordenação escolástica, versando a existência de Deus, o dogma da Trindade, o pecado original, a ressurreição, etc., e incidentalmente alguns temas filosóficos, como o problema dos universais.

Ditou-o sem dúvida o veemente desejo de defender a fé católica contra a filosofia pagã e as teologias rabínica e do Islão; mas o saber e o tom elevado e raramente depreciativo das suas páginas emprestam-lhe uma profunda significação moral. A agilidade intelectual que patenteia é grande, e não menor a erudição das Escrituras e teólogos cristãos, árabes e judeus, citando expressamente, dentre estes Maimónides. A própria forma literária, de ossatura dialógica, merece um momento de atenção. O autor imagina umas cortes celestiais, na presença do celestial imperador, isto é, Jesus Cristo, da Igreja triunfante e de toda a “a cavalaria dos céus”.

A Igreja militante, rainha das partes do Oriente, aproxima-se, acompanhada de grande multidão de pessoas, das quais a maioria “eram os que vinham arredados dela”, isto é, judeus, mouros, gregos e gentios; e osculada pelo celestial imperador, começa a exposição da teologia católica, e discussão e crítica das crenças destas variadas gentes e religiões. Esta ficção recorda a lenda dos Santos Barlaam e Josafat, o Cúzari, de Jehuda Halevi, o Libre dei Gentil e los tres savis, de Raimundo Lulo, e o Libro de los Estados, de D. Juan Manuel, e embora não possamos determinar qual destes livros a sugeriu, sem dúvida se deve integrar no género literário que eles exprimem.

É ainda neste século XV que a comunidade israelita de Lisboa assume uma significação cultural apreciável, embora nunca atingisse o brilho de certas comunidades de Espanha. Isaac Abarbanel, o pai de Leão Hebreu, é a personalidade de maior relevo. Os seus numerosos escritos exegéticos traduzem acima de tudo a formação rabínica e uma atitude de comentador, cujo guia é Maimónides, embora não desconheça S. Tomás de Aquino, Séneca e outros. Na ordem propriamente filosófica é tradicionalista, divergindo da conceção do judaísmo segundo Maimónides e criticando o racionalismo de Levi ben Gerson, em especial a negação da criação ex nihilo e a tese averroísta da imortalidade como mera união com o intelecto ativo uno .

As atitudes teológicas até agora apontadas supõem uma interferência filosófica, pelo menos no sentido propedêutico que a Idade Média atribuiu à filosofia. Nem todos os filósofos medievais viram na filosofia a serva da teologia; porém, em Portugal, segundo cremos, só na aurora da Renascença se discrimina a separação nítida e progressiva dos dois conceitos. Antes do século XIII, o século de oiro da escolástica, são tenuíssimos os vestígios da cultura filosófica entre nós; mas após este século, com a criação da Universidade de Lisboa-Coimbra, com o desenvolvimento das escolas monásticas e com a larga emigração de estudantes para as Universidades de além-fronteiras, observamos um progresso apreciável.

A atividade das escolas portuguesas parece ter-se exercido obscuramente na repetição dos mesmos textos, e do quadro dos seus estudos só a dialética, ou como hoje diríamos a lógica teria estimulado a reflexão filosófica. Por isso, não foi talvez por fortuita casualidade que viu a luz em Portugal o mais afamado dialético medieval, Pedro Hispano, o autor das Summulae logicales. Livro famoso, de extraordinária fortuna escolar, pois serviu de texto do ensino da dialética em toda a Europa durante três séculos, a tal ponto que quando os humanistas, especialmente Luís Vives, combatiam as argúcias escolásticas e a bárbara terminologia lógica, o visavam ou aos seus comentadores, constitui ainda hoje objeto de investigações e polémicas.

A despeito das quarenta e oito edições diversas durante o primeiro século da imprensa, a sua fortuna escolar findou na segunda metade do século XVI com o desterro do terminismo. Desde então deixou de ser o vademecum dos estudantes de Dialética e de Lógica, e o texto de explicações e comentários de mestres.

Ao perder definitivamente a atualidade didática caiu no olvido; mas no século passado, que foi o século da história, recobrou uma outra espécie de atualidade, o interesse histórico-crítico, impondo-se aos historiadores da Gramática e da Lógica como tema de árduas dificuldades.

Independentemente da análise interna das fontes, às quais aludiremos no momento oportuno, à crítica externa deparam-se hoje dois problemas preliminares: o da originalidade e o da autoria. Examinemos separadamente os dois problemas.

A tradição secular da originalidade foi pela primeira vez quebrada em 1597 por Ehinger, ao editar a Sinopse do Orgarnon de Aristóteles atribuída ao bizantino Miguel Psellos, cujo manuscrito, então existente na biblioteca de Augsburgo, se conserva atualmente na biblioteca de Munique: (n/a)edita a Elia Ehingero, Augustae-Vindelicorum, 1597.

O recém-conhecido texto grego da Sinopse tinha uma flagrante identidade com o velho texto latino das Summulae. Um era tradução do outro, e como Psellos vivera no século XI (1018 #t # 1075), Ehinger facilmente concluiu pela originalidade da Sinopse. Pedro Hispano havia sido tão-somente seu tradutor.

Este juízo tornou-se por assim dizer dominante quer entre os eruditos, como Bartolomeu Kekermann, em 1614, quer entre os historiadores da filosofia, à cabeça dos quais está Brucker, verdadeiro fundador desta disciplina (Historia critica philosophiae, III (1742-44), Tennemann (Geschichte der Philosophie, 1798).

A tradição da originalidade de Pedro Hispano aflorava de vez em quando, como nos Scriptores ordinis praedicatorum (I, 486), em cujo artigo os bibliógrafos Quétif e Echard (1719) qualificavam a autoria de Psellos de “foeda allucinatio heterodoxi.”; mas os factos novos pareciam mais fortes que a tradição. Fr. Fortunato de S. Boaventura, no artigo sobre Pedro Hispano dos seus Literatos Portugueses na Itália, legou-nos uma descrição precisa do estado da questão ao findar o século XVIII. Supondo verdadeira a autoria de Psellos, escrevia o erudito alcobacense, assim mesmo ficaria pertencendo ao nosso português uma glória de outro jaez, qual seria a de possuir no século treze vastos conhecimentos da língua grega, o que lhe asseguraria um certo primado, quero dizer, o de sabedor desta língua, o que sendo raro ainda nas outras nações, durante o século treze se deve ter como raríssimo na península das Espanhas... Não era possível que um tal roubo literário escapasse à notícia já não digo dos Latinos, muito pouco versados naquela língua, mas aos Gregos, que até em pontos literários costumavam sempre levar a excesso a sua indisposição contra os Latinos, fruto de um antigo e desesperado ciúme, que tantos males causou à Igreja e ao Estado, como sofreriam os Gregos este plagiato sem o contradizerem, e sem vingarem para o seu compatriota esta propriedade, caso lhe pertencesse? E como poderia Ricobaldo de Ferrara, historiador do século XIII, afirmar expressamente que Pedro Hispano compusera tratados de Lógica, se porventura ele não tivesse feito mais que uma tradução? Esconder-se um tal plagiato a Latinos e Gregos era coisa impraticável, e por isso, ainda na falta de outros argumentos, nunca eu me chegaria a persuadir da existência de um tal crime literário; há porém não só a certeza de que Maximo Planudes traduziu em grego a obra do nosso Português, quando eram passados ao menos trinta anos depois da sua morte, mas também o expresso testemunho de outro grego -- Jorge Scholario — que traduziu na sua língua alguns pedaços da Dialética de Pedro Hispano, o que deixa inteiramente resolvida a questão da genuinidade de um tal escrito, que por tantas e tão multiplicadas provas se conhece ser obra original do nosso Português”.

Como Fr. Fortunato de S. Boaventura, seguindo vias diversas, o erudito Daunou, na Histoire Littéraire de la France (XIX) e o lógico e filósofo William Hamilton, nas Discussions on Philosophy and Literature, Education and University Reform (1852), opunham graves adversativas à autoria de Psellos, mas a dúvida persistia sem resolução definitiva.

Sob a aparência de uma mera questão bibliográfica escondia-se o problema grave e delicado das origens da lógica no Ocidente. Se Psellos era o verdadeiro autor do livro ao qual os latinos chamavam Summulae Logicales, a influência do filósofo bizantino ultrapassara as fronteiras do mundo grego medieval e na cultura bizantina radicava em grande parte o desenvolvimento da Lógica Nova, após o século XIII, nas escolas do Ocidente.

A coerência intelectual impunha esta filiação dos factos, e por assim pensar é que o sábio autor da Geschichte der Logik im Abendiande, Cari Prantl, dilatou consideravelmente o velho debate, transformando-o de questão bibliográfica em problema fundamental da história das origens da lógica medieval. Na Geschichte der Logik (vol. II, 1861), em vários passos desta obra monumental, Prantl fizera pender a sua opinião a favor de Psellos, e esta afirmação, aliás fundamentada, particularmente na circunstância de as Summulae empregarem um vocabulário técnico de origem grega, suscitou logo a revisão crítica de Thurot.

Segundo Thurot, a originalidade de Pedro Hispano apoiava-se nos seguintes factos, que Zervos resume desta forma:

1.º) As autoridades citadas pelo redator da Sinopse pertencem ao mundo latino: Prisciano, Boécio;

2.º) O redator da Sinopse cita como exemplos vulgares Catão e Cícero;

3.º) A Sinopse apresenta latinismos evidentes;

4.º) Os termos novos de Lógica e de Gramática empregados nas Summulae não se encontram na tradição grega bizantina, enquanto que podemos seguir a respetiva genealogia na tradição ocidental do século XII;

5.º) Sinopse é uma obra absolutamente isolada na literatura bizantina. Antes dela, os termos lógicos e gramaticais não têm o mesmo sentido com que nela são empregados.

As objeções de Thurot caíam de pleno no campo em que Prantl alicerçara a sua opinião; por isso, se compreende que o historiador da Lógica as examinasse, para as refutar uma a uma.

Assim, no opúsculo Michael Psellus und Petrus Hispanus, (Leipzig, 1867), Prantl, assevera, segundo Zervos (ob. cit., pp. 40-41), que:            

1.º) Prisciano tinha ensinado o latim em Constantinopla no começo do século VI;

2.º) Os jurisconsultos bizantinos empregavam em exemplos familiares os nomes de Catão e de Cícero, — acrescentando Zervos que estes nomes ocorrem frequentemente nos tratados de Psellos;

3.º) A história da língua grega, durante o período bizantino, não é suficientemente conhecida, por forma a poder surpreender-se a influência de um original nas frases da tradução. Pelo contrário, aparecem helenismos em duas proposições das Summulae;

4.º) O termo técnico propositionum materia das Summulae Logicales só podia ter por fonte o comentário de Amónios sobre o Da Interpretação, que é um dos tratados que constituem o Organon de Aristóteles. Quanto à enumeração das aceções da palavra infinitum, segundo todas as aparências, foi colhida na Física de Aristóteles. Ora, segundo Prantl, nem o comentário de Amónios, nem a Física de Aristóteles foram conhecidos no Ocidente antes de 1250 — juízo que a erudição contemporânea, diga-se de passo, não aceita relativamente à Física;

5.º) A divisão dos juízos hipotéticos em condicionais, copulativos e disjuntivos remonta aos Estoicos por intermédio da Sinopse, visto Boécio não falar dos juízos copulativos;

6.º) As particularidades que distinguem a Sinopse filiam-se em Temístio.

A estas razões, nem todas probatórias, aditou Zervos em 1920, na monografia já citada, dois factos novos:       

a) A declaração de Psellos de haver redigido um resumo do Organon, a qual se encontra no preâmbulo do seu Comentário à Física de Aristóteles, cujo manuscrito se conserva no fundo grego da Biblioteca Nacional de Paris (n.º 1920). Fez-se deste Comentário uma tradução latina, que foi impressa por Aldo, em Veneza, 1554.              

b) No livro II da Sinopse há muitas definições e frases inteiras decalcadas textualmente sobre a Isagoge et in Aristotelis Categorias Commentarium, de Porfírio, que dificilmente se explicariam, se a Sinopse fosse simples tradução das Summulae. Zervos, que revelou o facto, inclina-se, no entanto, de preferência, para a hipótese do autor de uma parte da Sinopse, pelo menos, ter sob os olhos o original de Porfírio, filósofo neoplatónico, hipótese que, como é óbvio, não destrói a anterioridade das Summu1ae em relação à Sinopse. 

As razões invocadas por Prantl na sua monografia de 1867 respondeu logo Thurot com um artigo da Revue critique, no qual o erudito francês, entre outras razões, alegava o facto de no manuscrito grego da Sinopse que Ehinger utilizara para a sua edição, o qual existe atualmente na Biblioteca de Munique, o nome do autor (Psellos) e o título da obra serem de data mais recente e de letra diferente do texto. Em seu juízo, a atribuição a Psellos dataria dos séculos XV ou XVI. A observação de Thurot minava pela base a argumentação de Prantl, e tornou-se verdadeiramente decisiva quando, no mesmo ano de 1867, Valentin Rose afirmou e provou que os códices da Sinopse, existentes nas bibliotecas de Milão, Florença, Viena de Áustria e Oxford, os quais datam do século XV, explicitamente a consideram tradução grega das Summulae de Pedro Hispano, feita por Jorge Scholarios, patriarca de Constantinopla em 1453 com o nome de Gennádios.

Perante a existência de factos tão contrários, compreende-se que alguns críticos só aparentemente considerassem decisivas as revelações de Thurot e V. Rose. Daí o esforço de uma conciliação, de que é tipo Zervos, o qual na já citada monografia de 1920, formula a hipótese de Psellos ser o autor do livro II da Sinopse, que, como dissemos, contém transcrições literais da Isagoge de Porfírio. Sendo assim, a parte da autoria de Psellos, “por erro de um copista, foi introduzida na obra de um autor latino, provavelmente de Pedro Hispano. São frequentes as interpolações nos manuscritos do período medieval, e por vezes, mesmo, encontra-se a reunião de extratos de autores diferentes sobre o mesmo assunto. Isto provém de serem as cópias feitas, na maioria dos casos, por mestres ou escolares para seu uso pessoal, e de se preocuparem naturalmente mais com o conteúdo das obras que com os respetivos autores”.             

A hipótese de Zervos tem o mérito e o defeito de todas as soluções ecléticas, e, como na generalidade dos casos, mais defeitos que méritos.

Nada mais falaz que o apelo à prática usual de um método de trabalho ou de uma atitude mental dominante para provar a existência de uma interpolação — o livro II — no texto original e primitiva redação das Summulae. A hipótese só adquiriria viabilidade desde que revelasse a existência de um códice onde a interpolação fosse manifesta, ou demonstrasse — o que se nos afigura impossível — que o primitivo redator das Summulae não carecia de versar a matéria lógica do livro II. Zervos não fez nenhuma destas demonstrações, e por outro lado parece ter desconhecido a crítica, em nosso parecer decisiva, de Stapper. No Festschrift zum Elfhundertjeihrigen Jubileium des deutschen Campo Santo in Rom, (Freiburgi. B. 1897) publicou Stapper, o mais diligente e sábio dos biógrafos modernos de Pedro Hispano, um eruditíssimo estudo sobre a Relação das Summulae Logicales de Pedro His-pano com a Sinopse de M. Psellos (Die Sumrnulae logicales des Petrus Hispanus und ihr Verheiltniss zu Michael Psellus). Não seguiremos analiticamente o autor no seu denso e acurado trabalho. Bastar-nos-á saber que, após o exame e refutação de todas as objeções, tanto de crítica interna como externa, apresentadas contra a anterioridade das Summulae, chegou à conclusão de ser original a obra atribuída a Pedro Hispano e de a Sinopse contida no manuscrito de Munique e publicada por Ehinger não passar de uma tradução grega ulterior.

O problema da originalidade do texto das Summulae, que não deve confundir-se com o da originalidade das respetivas doutrinas, encontrou, pois, uma solução terminante e definitiva; mas sendo originais, a quem pertence a autoria? Sem dúvida a um escolástico latino, de nome Pedro Hispano; mas quem é Pedro Hispano? Será o pontífice português João XXI, falecido em 1277, ou um seu homónimo, natural de Burgos, dominicano, cuja ordem professou no convento de Esteia, na Navarra? Será o professor da Universidade de Siena, ou tratar-se-á do mesmo indivíduo que foi sucessivamente prior de Mafra, cónego da Sé de Lisboa, prior de Guimarães e arcebispo de Braga? E, finalmente, podem atribuir-se ao mesmo autor as Summulae logicales, o Thesaurus pauperum e as obras médicas e filosóficas descobertas recentemente pelo prof. Martin Grabmann?       

Tais são algumas das dúvidas que a crítica contemporânea formula acerca da autoria das Summulae e cuja solução vamos tentar através de uma densa floresta de dificuldades. 

A solução tradicional, que depois das investigações de Stapper  é a mais fundamentada, identifica no mesmo indivíduo o clérigo português, o autor das Summulae, do Thesaurus e demais obras médicas e filosóficas descobertas por Grabmann, e o pontífice João XXI.     

Na nossa era de especialização seria singularíssima tão grande disparidade de obras e multiplicidade de aptidões, mas nem o século XIII é sob o aspeto da sociologia do pensamento e dos objetivos intelectuais comparável à nossa época, nem os factos consentem outra explicação coerente além da tradicional. O dominicano Martin de Tropau, (Martinus Polonus), falecido em 1278, capelão dos pontífices Clemente IV, Gregório X, Inocêncio V, João XXI e Nicolau III, ao referir-se no seu Chronicon Pontificam a João XXI diz que fora “in diversis scientiis famosas”.

Este juízo de pessoa tão bem informada dos fastos da Cúria Romana estabelece indubitavelmente os créditos intelectuais do pontífice; e, se descermos da generalidade da predicação às espécies de conhecimento em que se tornou famoso, notaremos que os mais antigos testemunhos nos apontam a Lógica, a Teologia e a Medicina. Assim, Ricobaldo de Ferrara, Fra Salimbene e Tolomeu de Luca.

Ricobaldo de Ferrara, historiador contemporâneo, ao referir-se a João XXI diz: “Hic magnus Magister, in scientiis plus delectabatur, quam omnibus reliquis in negotiis, cui nomen fuit Magister Petrus Hispanus, qui tractatus in Logica composuit”, e o seu juízo coincide em geral com o de Fra Salimbene, que na Chronica Parmense, ao referir-se a Fr. João de Parma, o Geral dos Menores que S. Boaventura substituiu em Paris, relata o seguinte: “Et notandum, quod quamvis fr. Ioh. de Parma habuerit muitos mordaces occasione doctrine abbatis Ioachim, habuit tamen muitos qui eurn dilexerunt. Inter quos fuit Magister Petrus Hispanus, qui factus Cardinalis et postea ipse idem factus Papa Iohannes XXI, cum esset magnus sophysta, logycus et disputator atque theologus, misit pro fr. Iohanne de Parma, qui similia in se habebat. Voluit ergo papa, quod semper esset cum eo in Curia, et cogitabat eum facere cardinalem, sed mortem preventus non potuit facere quod mente conceperat”.

Os dois cronistas são concordes em atribuir a Pedro Hispano ou João XXI conhecimentos lógicos, precisando Ricobalclo de Ferrara que ele escrevera um tratado de Lógica, que não nomeia e sem dúvida era as Summulae Logicales, e acrescentando Fra Salimbene, além da inclinação de João XXI para os franciscanos, que o lógico fora também teólogo. Estes últimos factos, que são importantes, concorrem para explicar, como veremos, a condenação do averroísmo filosófico e teológico feita em 1277 por João XXI.

Além destes testemunhos possuímos ainda o de Tolomeu de Luca, cronista contemporâneo, o qual na Eclesiástica História se refere a Pedro Hispano nos seguintes termos: “dominus Petrus Hispanus dictus Petrus Jullani, Cardinalis Tusculanus, natione Portugallensis de Cardinalatu assumitur in Papam et Joanes XXI est vocatus. Hic generalis dericus fuit et in praecipue in medicinis”.

Na essência, Tolomeu de Luca coincide com os outros cronistas; mas dos três foi o único que indicou a bibliografia do “português” Pedro Hispano ou Pedro Julião, Cardeal de Túsculo e mais tarde o pontífice João XXI, atribuindo-lhe a obra médica — Thesaurus pauperum, e omitindo a obra lógica — Summulae Logicales.

Foi esta omissão de Luca que em grande parte, senão exclusivamente, concorreu para distinguir Pedro Hispano autor das Summulae de Pedro Hispano, pontífice e autor de obras médicas.

Quem pela primeira vez separou os dois indivíduos foi o bibliógrafo espanhol Nicolau António, na Bibliotheca Hispanica Vetus, e as suas dúvidas foram acolhidas pelos bibliógrafos dominicanos Quétif e Echard nos Scriptores ordinis praedicatorum. Os argumentos dos famosos bibliógrafos são os seguinte:

1.°) O silêncio de Tolomeu de Luca acerca das Summulae Logicales.

2.°) A atribuição das Summulae ao pontífice João XXI é relativamente recente, tendo talvez origem na confusão feita por Tritémio (século XVI) entre as Summulae e o Thesaurus.

3.°) O Thesaurus pauperum, expressamente atribuído a Pedro Hispano (João XXI), é uma obra médica de carácter acentuadamente técnico.

A despeito da autoridade de Nicolau António pode dizer-se que a generalidade dos críticos e historiadores do século XIX se inclinou para a identidade num só indivíduo do lógico, do médico e do pontífice, até que em 1898 Stapper consolidou esta opinião com acuradas e sagazes investigações. Dir-se-ia perdida a dúvida nas páginas do erudito bibliógrafo; porém, o dominicano francês H. D. Simonin, ressuscitou-a há pouco, do que se fez eco em Portugal o Dr. Alfredo Pimenta, e considerando a tese da identidade como “solução preguiçosa”, tentou reanimar os argumentos de Nicolau António e dos bibliógrafos dominicanos de uma forma que não se nos afigura convincente.

Com efeito, o silêncio de Tolomeu de Luca não é um argumento decisivo, já em si mesmo, já porque não deve esquecer-se que o cronista qualifica João XXI de clericus generalis — isto é, de um sacerdote versado nas disciplinas do seu tempo, entre as quais a Lógica, que então servia de fundamento comum a qualquer especialização.

É certo que as Summulae Logicales só alcançam difusão europeia depois da morte do seu autor, mas não foram desconhecidas durante a vida de Pedro Hispano. Prova-o a referência de Dante, que por assim dizer as consagrou nos versos tantas vezes citados do canto XII do Paraíso (Divina Comédia):

Ugo di San Vitore é qui con elli

E Pietro Mangiadore e Pietro Hispano

 Lo qual giá luce in dodeci libelli.

João XXI foi contemporâneo de Dante, durante cuja vida ocuparam o sólio pontifício catorze pontífices (de Clemente IV a João XXII), e esta contemporaneidade dá uma feição singular ao problema que nos ocupa, e em especial à questão de saber se o Pedro Hispano do Poeta é ou não o pontífice. Nenhum dos mais antigos glosadores e comentadores da Divina Comédia—, Jacopo della Lana, Benvenuto Rambaldi, Francesco da Buti (século XIV), Serravalle, Landino, (século XVI), Vellutello, Daniello, Venturi e Lombardi (século XVIII), identificou o lógico com o médico pontífice; e Scartazzini, dos mais recentes e eruditos comentadores, pensa que a identificação “é tanto mais problemática quanto Pedro Hispano é colocado pelo poeta entre frades franciscanos, quando João XXI gostava pouco dos monges e frades”.

Uma vez mais o silêncio como prova, e uma suposição ultra-duvidosa; mas nem o argumento nem a suposição resistem, após as investigações de Stapper e G. Petella, que a este tema dantesco dedicou uma acurada monografia, ao facto indestrutível de Ricobaldo de Ferrara e Fra Salimbene coincidirem na atribuição de conhecimentos lógicos ao Pontífice e de Martim de Tropau e Tolomeu de Luca salientarem a variedade e vastidão da sua ilustração.

Como observou Joaquim Carreras Artau, “o próprio Pedro Hispano se antecipou a protestar contra esta futura cisão da sua pessoa no interessante exemplo com todos os visos de uma referência autobiográfica, que se encontra intercalado no texto da sua Súmula de Lógica (“... esse Medicum vel Grammaticum convenit solum homini, sed non omni”); e para além disto, o mesmo professor recorda a existência de códices trecentistas das Summulae. Assim, o Arquivo Histórico Arquidiocesano de Terragona guarda atualmente um códice do século XIII, e “em 1278 existia já um exemplar no convento de Santa Catarina em Pisa, pois no catálogo das obras legadas a este convento por Fr. Proynus, falecido naquele ano, figura com o n.º 45 um manuscrito dos “tractatus magistri Petri Yspani loycales”.

Estes factos, conjugados com os testemunhos dos cronistas contemporâneos ou quase contemporâneos, inculcam indubitavelmente a identidade do lógico, do médico e do pontífice, tanto mais que Stapper documentou o magistério de Pedro Hispano na Universidade de Siena desde 1247 a 1252.

Apesar da carência de notícias acerca do seu magistério, Stapper supõe que foi durante estes seis anos que Pedro Hispano compôs as Summulae Logicales (ob. cit., § 4, p. 26), tendo também escrito, a rogo de Fantino, médico senense, o livro sobre a dieta nas lesões violentas.

A existência destes códices tem uma importância capital para a crítica da recente opinião de Simonin, exposta no citado artigo dos Archives d'histoire doctrinale et littéraire du moyen-âge (vol. V).

Nicolau António e Echard, nas respetivas Bibliotecas, coincidiam em separar Pedro Hispano lógico, autor das Summulae, do Pedro Hispano médico, que ascendera ao pontificado. mas tomaram posições diversas acerca da identificação de Pedro Hispano lógico: Nicolau António limitou-se a referir a existência de três Petrus Hispanus (Petrus Juliani, o pontífice João XXI; Petrus Hispanus, dominicano e Petrus Hispanus [Junior], mestre secular), e a transmitir a tradição da ordem de S. Domingos de lhe pertencer o autor das Summulae; Echard, que era dominicano, repudiou, porém, esta tradição.

A tradição dominicana identificava o autor das Summulae com Petrus Alphonsi Hispanus, e ao repudiá-la Echard baseara-se principalmente no silêncio dos mais antigos cronistas da Ordem acerca de um Petrus Hispanus autor lógico, e em considerar muito posterior (1400) a indicação do catálogo de Laurent Pignon, n.º 91, em que ela parecia assentar: “Fr. Petrus Alphonsi Hispanus scripsit Summulae logicales quae communiter traduntur pueris».

Nem só os dominicanos quiseram contar na sua Ordem o famoso lógico; o mesmo ocorreu com os agostinhos, porém, sem eco fora dos respetivos claustros.

Depois da crítica dos Scriptores ordinis Praedicatorum (1719) obliterou-se completamente a tradição dominicana, até que nos nossos dias (1931) Simonin, sacerdote dominicano, procurou torná-la digna de crédito com argumentos de crítica externa e interna:

a) Externamente, Simonin baseia-se na atribuição da autoria das Súmulas a Fr. Pedro Afonso Hispano o. p., exarada no catálogo dos escritores dominicanos descoberto por Denifle na abadia de Stams, o qual, sob o n.° 63, refere: “Fr. Petrus Alfonsi hyspanus scripsit Summalas (sic) logicales».

O documento autêntico que faltara aos bibliógrafos Nicolau António e Echard existe hoje, no juízo de Simonin, e por isso conclui que «a indicação de Laurent de Pignon não data, como julgava Echard, de um ano próximo de 1400, mas reproduz, neste ponto, um documento muito mais antigo e cuja composição é anterior a 1311”.

A tabula de Stams e o catálogo dos escritores dominicanos de Bernard Gui (Guidonis, 1261 #t # 1331) atribuem com efeito as Sum. Logicales a Petrus Alphonsi de Espanha; mas podem aceitar-se sem crítica as respetivas indicações quando ambos erram no inventário dos escritos do grande luminar da Ordem a que pertenciam, S. Tomás de Aquino?

Mandonnet invoca a referência de Gui a propósito do averroísta Boécio de Dácia precisamente para provar que o bibliógrafo “não está isento de erros ao organizar a lista dos escritores da sua Ordem”, pois atribuía as “Summula Logicales de Pedro Hispano, mais tarde o papa João XXI, a Pedro Afonso de Espanha”, cometendo uma “confusão de pessoas” acerca de “uma obra e de um autor célebre no século XIII”.

A autoridade deixou há muito de ser, em benefício da crítica e dos progressos do espírito humano, um argumento decisivo; mas sendo Mandonnet um dominicano e sobretudo um dos mais sábios conhecedores da filosofia medieval, o seu juízo, nos termos em que Simonin repôs o problema, tem uma importância singular.

Demais, que saibamos, só a Tabula de Stams e o catálogo de Gui, os quais por carência de fontes não cotejamos, apurando a mútua interdependência, atribuem as Summulae Logicales ao dominicano Petrus Alphonsi; todos os manuscritos de que houvemos conhecimento ou não aludem à autoridade ou indicam, como os dois já referidos, anteriores a 1311, o nome de Petrus Hispanus — Petrus Juliani Hispanus, segundo a tradição constante, e que fora o pontífice João XXI. Não serão estes manuscritos o equivalente das menções da Tabula e do Catálogo?

Assente para Simonin o valor da Tabula cumpria-lhe identificar Petrus Alphonsi Hispanus. Com erudita diligência apurou que “as Atas dos capítulos provinciais de Espanha, recolhidas e publicadas por Douais, mencionam três Padres dominicanos usando o nome de Petrus Alphonsi: de um, o capítulo de Toledo anuncia a morte no convento de Compostela em 1250, e os dois outros são indicados pelo capítulo de Barcelona, em 1299, como mestres de Lógica.

Simonin exclui o primeiro por ter falecido anteriormente à data provável da redação das Summulae, e fazendo incidir a investigação no sentido de apurar qual dos dois últimos teria sido o autor do famoso compêndio conjuga os testemunhos de J. Lopez (História Geral da Ordem de S. Domingos) e Luís de Valhadolid (catálogo citado por Echard) para admitir que se trata de um Petrus Alphonsi, castelhano, que professara no convento de Estela, na Navarra, em cujo claustro, segundo uma tradição local, havia uma inscrição que memorava o célebre Petrus Hispanus como filho do convento.

“Parece, pois, — escreve — que os raros documentos que possuímos sobre Petrus Hispanus, longe de se excluírem uns aos outros, como por vezes acontece, pelo contrário prestam-se mútuo apoio. Ora esta convergência de dados diferentes constitui o único critério de certeza ao qual é legítimo pretender em história. Além disto, podem ainda invocar-se outros argumentos a favor da existência de um Petrus Hispanus distinto do Papa João XXI; mas então os argumentos já não valem nem a favor de um dominicano, nem a favor de Petrus Alphonsi, embora se não oponham a nenhuma das nossas conclusões. O conhecimento da literatura medieval está longe de ser completo, mas não obstante conhecem-se outras obras ainda manuscritas, atribuídas a um certo Petrus Hispanus, que com muitos visos parece não ter sido o papa Julião. Citaremos duas: um comentário manuscrito sobre o livro I das Físicas de Aristóteles, do qual Nicolau António assinala a existência na Ambrosiana de Milão. Este trabalho é obra do médico Julião? pouco provável. Ultimamente Mgr. Grabmann atraiu a atenção sobre um Comentário manuscrito do De divinis nominibus de Dionísio segundo a tradução de João Sarrasin.

“Este comentário é atribuído sem mais a Petrus Hispanus. Mgr. Grabmann hesita, cremos que com razão, em ver neste Petrus Hispanus o papa João XXI. Daqui, podemos concluir com verosimilhança que o Papa não foi o único indivíduo deste nome entre os autores da escolástica latina. Se nos reportarmos igualmente à lista das obras de Petrus Hispanus Junior, de Nicolau António, que ele distingue do autor das Summulae, lá encontraremos também uma linda bagagem literária, característica do início do século XIV e que não pode facilmente ser atribuída a Julião.

“Tudo isto nos conduz à nossa conclusão. A opinião que atribui as Summulae Logicales, de Petrus Hispanus a Pedro Julião pela semelhança de nomes é evidentemente uma opinião preguiçosa, que um estudo mais atento das fontes deve fazer desaparecer.

“Parece certo, pelo crédito da Tábua de Stams, que este Petrus Hispanus é o dominicano Pedro Alfonso, e que a sua obra foi composta antes de 1311, data em que termina o catálogo da Tabula. Demais, é verosímil que este religioso, que pertence à Província de Espanha, fosse castelhano de origem e filho do convento de Estela. Finalmente, o conhecimento atual das fontes manuscritas é altamente favorável à existência e à atividade literária de um Petrus Hispanus distinto de Pedro Julião”.

Os períodos finais desta longa transcrição condensam, sob o ponto de vista da crítica externa, a opinião de Simonin acerca da autoria das Summulae. A sua argumentação visa diretamente a crítica de Echard; e por isso, cometendo o anacronismo de retomar o problema nos termos em que o havia deixado no século XVIII, o sábio bibliógrafo da Ordem dos pregadores, esforça-se por fundamentar a verosimilhança de o autor das Summulae ser o dominicano Petrus Alphortsi, professo do convento de Estela, na Navarra. Nenhum dos factos que alega é decisivo. A menção da Tabula, em face dos erros que se lhe tem apontado, no é de forma alguma um alicerce seguro, tanto mais que, como notou Carreras Artau, ela inclui apenas os mestres dominicanos que professaram na Faculdade de Teologia de Paris. É certo que desconhecemos o ano em que foi redigida; porém, tudo indica ser posterior de três ou quatro dezenas de anos, à morte de João XXI (1277), e este facto, se o confrontarmos com o testemunho dos cronistas contemporâneos do Pontífice, invalida-o como fundamento e mesmo como hipótese de trabalho.

Fr. Petrus Alfonso hyspanus scripsit summulas logicales, diz a Tabula, e por scripsit tanto se pode compreender escreveu, isto é, copiou com mais ou menos fidelidade, como redigiu, e é óbvio que o valor da indicação variará com o sentido.

Tendo deixado por esclarecer este ponto, Simonin abriu a porta à dúvida.

Apoiados em base tão incerta, os restantes argumentos, já em si mesmo, já na sua relação, não alcançam valor probatório.

No fundo, Simonin opõe uma tradição monástica e meramente local a uma tradição constante e geral, hoje solidamente documentada pelas investigações de Stapper e Grabmann, não conseguindo, como prova a própria redação, ultrapassar a feição conjetural. Decisivo, é ainda o argumento de Echard, quando observa que se Pedro Hispano tivesse sido dominicano, os mais antigos manuscritos não o designariam por magis ter mas por frater, como era uso geral da Ordem.

“A meu ver, escreve Carreras Artau, é também uma prova decisiva contra esta hipótese a proibição, que pesou sobre as primeiras gerações dos dominicanos, do estudo das ciências profanas, entre as quais se incluíam as ensinadas nas escolas de Artes; é inconcebível como Pedro Hispano poderia dedicar-se tão afincadamente ao cultivo da lógica no seio de uma Ordem que prescrevia oficialmente o ensino e aprendizagem da mesma a todos os seus membros. Não se diga que Pedro Hispano viveu em tempos em que esta proibição havia sido já levantada. A isso objetarei que não pode situar-se a existência deste autor tão tarde como Simonin pretende, desde o momento em que o seu compêndio de lógica estava divulgado muito antes”, como o provam os dois manuscritos a que já atrás, citando Carreras Artau, fizemos referência.

b) Aos argumentos da crítica externa, que acabamos de expor e criticar, acrescentou Simonin, considerações de crítica interna.              

De momento, basta-nos acentuar que o erudito dominicano, após as investigações de Michalski, considera, e com razão, a Summa lógica de Lambert de Auxerre anterior às Surnmulae Logicales.              

Partindo, porém, do pressuposto da Summa de Lambert constituir “um primeiro ensaio de manual lógico”, em relação à qual as Summulae de Pedro Hispano seriam “a obra definitiva, respondendo às mesmas necessidades”, e cuja difusão escolar teria apagado a memória da obra de Lambert ser obra de um dominicano, Simonin considera como sendo “igualmente verosímil que o trabalho de Petrus Hispanus, que é uma réplica da obra precedente, fosse também obra de um dominicano.

“Nasceu no mesmo meio, e para responder às mesmas necessidades escolares, às quais a Ordem Dominicana tinha de fazer face. Assim, parece que todos os argumentos a favor da dependência de Petrus Hispanus em relação a Lambert estabelecem igualmente uma verosimilhança a acrescentar à nossa conclusão sobre a origem dominicana das Summulae».

Além deste raciocínio, Simonin argumenta ainda com o parentesco das Summulae com a Summa totius logicae, falsamente atribuída a S. Tomás de Aquino. Pelo confronto destas obras, que Simonin foi o primeiro a fazer, pareceu-lhe que, apesar das diferenças, — a Summa é sobretudo um tratado de filosofia primeira e as Summulae um manual elementar, exclusivamente lógico —, há entre elas “um parentesco literário”, o qual “supõe um ensino comum, já muito elaborado e que os dois autores utilizam em vista do fim particular que cada um deles prossegue. Esta constatação de uma fonte técnica idêntica, na base das duas obras, da qual uma não aparece senão muito tempo depois da morte de S. Tomás para se insinuar nas suas obras, torna completamente improvável a atribuição da outra obra a Pedro Juliano, cuja atividade escolar se coloca em 1250 e termina necessariamente alguns anos depois. Para quem conhece a rapidez com que evoluiu o ensino filosófico entre 1250 e 1300, é impossível considerar tal distância entre duas obras que possuem estes sinais de parentesco.

“Supondo mesmo que Pedro Julião tivesse escrito um manual lógico, o que em todo o caso não é impossível, este manual não é certamente o que chegou até nós sob o nome de Petrus Hispanus. O estudo interno da obra e o seu confronto com outros tratados opõem-se a isso absolutamente. Pelo contrário, este estudo e estes confrontos fazem pensar numa obra composta num meio dominicano nos derradeiros anos do século XIII ou nos primeiros do século seguinte. Este dado concorda com a indicação que colhemos na Tabula de Stams, a qual atribui as Summulae Logicales ao mestre dominicano Pedro Alfonso. Estou, pois, agora em condições de formular a minha conclusão em face das de Nicolau António e de Echard. Com os dois bibliógrafos considero a atribuição das Summulae a Pedro Julião como desprovida inteiramente de fundamento. Pelo contrário, não imito a reserva de um e de outro acerca das origens dominicanas da obra, pois nos podemos apoiar sobre dois argumentos dos mais sérios a favor da tradição da ordem, a saber, a menção explícita do catálogo de Stams e o exame interno das Summulae. Pode, portanto, atribuir-se com toda a segurança as Summulae ao dominicano Pedro Alfonso, e deve rejeitar-se como absolutamente fantasista a identificação correntemente afirmada entre o seu autor e Pedro Julião, o papa João XXI”.

Se a marcha do raciocínio de Simonin, na crítica externa da questão, o conduzira simplesmente a verosimilhanças e conjeturas, na segunda parte da sua argumentação dá um verdadeiro salto mortal do provável para o certo. A dependência das Summulae em relação ao compêndio de Lambert não prova a comunidade monástica, nem a continuidade de ensino dos respetivos autores; prova apenas que os problemas lógicos, ou mais precisamente dialéticos, assumiram uma grande importância didática, à qual, nos meados do século XIII, Guilherme de Shyreswood, Lambert de Auxerre e Pedro Hispano procuraram satisfazer de uma forma intimamente aparentada.

Este parentesco, que nos nossos dias Michalski estabeleceu com erudita diligência e penetração crítica, inculca naturalmente o problema: porque é que dos três compêndios só o de Pedro Hispano conquistou o público escolar? A resposta foi dada pelo mesmo sábio, ao afirmar na sua comunicação à Academia Polaca de Ciências e Letras, que “o manual de Pedro Hispano não valia provavelmente mais nem menos que os dois outros, mas foi o único que se difundiu pelas escolas, sem dúvida devido à autoridade de que gozava o seu autor”. Não é só, pois, no conteúdo e ordenação das matérias que deve procurar-se o segredo do triunfo das Summulae; é acima de tudo numa razão extrínseca, isto é, na autoridade e prestígio pessoal do seu autor, e posta a questão nestes termos é óbvio que a identificação tradicional de Pedro Hispano com o pontífice João XXI, explica cabalmente o facto. Um ato do pontificado do papa português teve a nosso ver uma influência decisiva: a condenação do averroísmo e do aristotelismo em 1277.

A primeira condenação oficial do averroísmo em 10 de Dezembro de 1270, assim como os escritos polémicos de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, não conseguiram extirpar da Universidade de Paris a tendência averroizante, de tão ousadas consequências filosóficas e teológicas. Siger de Brabante (1235? — 1281-84) tornou-se o centro de um grupo dissidente, porventura pequeno em extensão, mas vibrantemente expansivo e tenazmente fiel à interpretação aristotélica de Averroes.

Aristóteles era o verdadeiro e único filósofo, e a revelação cristã e a teologia católica, toda a verdade. Siger não sacrificou a filosofia à teologia, nem a teologia à filosofia; limitou-se a constatar a oposição entre uma e outra, e a afirmar, por prudência ou sinceridade, o primado da revelação sobre a razão.

O seu ensino na Faculdade das Artes de Paris, cuja função propedêutica lhe impunha a subordinação às diretrizes teóricas e à ortodoxia, zelosamente vigiada, da sacratíssima Faculdade de Teologia, lar dos estudos teológicos de toda a cristandade, abria naturalmente o caminho da heterodoxia. É que, a despeito de se inclinar perante o primado da revelação, Siger persistia em ensinar e escrever, apoiado em Averroes, que o mundo é ab eterno, e o curso dos eventos na região sublunar, sendo determinado pelos orbes celestiais, cujas revoluções são indefinidamente regulares e periódicas, oferece o espetáculo de um cíclico retorno eterno de todas as coisas; que Deus não é causa eficiente das coisas, mas apenas causa final, e não possui a presciência dos futuros contingentes, porque conhecer os futuros contingentes, dissera Aristóteles, é uma contradição nos termos, visto que equivale a convertê-los em necessários; e finalmente, a conceção de um único intelecto ativo para toda a espécie humana, a qual evidentemente importava a negação da imortalidade individual e da responsabilidade moral. Estas proposições, embora fundamentais, não condensam todo o pensamento de Siger, e basta indicá-las para logo advertirmos que o seu ensino originava o dissídio nas escolas, e mais do que dissídio, a blasfémia e a heresia, como já indicámos anteriormente, citando um trecho do monumental trabalho de Mandonnet.

Perante tais opiniões e atitudes, que frequentemente se traduziam em atos escandalosos do serviço divino e da tranquilidade pública, os quais, corno vimos, ecoaram em Portugal, a autoridade eclesiástica, guardiã da pureza ortodoxa do ensino, não se quedou indiferente. Em Dezembro de 1276 o cardeal legado em Paris, Simão de Brion excomungou os fautores de certos delitos, e o Papa João XXI pouco depois, em 18 de Janeiro de 1277, ordenava ao bispo de Paris, Etienne Tempier, que inquirisse e lhe relatasse as pessoas e lugares onde se propagavam certos erros atentatórios da fé, os quais, segundo fora informado, se dizia pulularem nas escolas de Paris, cuja missão consistia precisamente em derramar a fé católica por todo o orbe.

Como notou Mandonnet, de quem nos socorremos como fonte e guia, o pontífice ordenava apenas um inquérito, sem dúvida, para fundamentar a ulterior ação contra as pessoas e doutrinas suspeitas.

O bispo de Paris, porém, não o entendeu assim; e, transformando de motu proprio o inquérito em decisão, lavrou em 7 de Março de 1277 a condenação de 219 proposições, as quais visavam o ensino de alguns mestres de Artes, a doutrina de diversos livros de nigromância e outras superstições.

No aspeto propriamente teológico-filosófico, a condenação abrangeu todo o aristotelismo, quer na feição averroísta de Siger, quer na forma ortodoxa de Alberto Magno e Tomás de Aquino, cuja direção de espírito era hostil ao platonismo tradicional de uma parte dos mestres teólogos.

 “Entre as 210 proposições que constituem a condenação estabelecida por Etienne Tempier, vinte atingem mais ou menos diretamente o ensino de Tomás de Aquino. São particularmente relativas a cinco teorias: unidade do Mundo; a individuação nas espécies espirituais e as espécies materiais; a localização das substâncias separadas e sua relação com o mundo físico; a excelência da alma e da sua operação intelectual em dependência das condições do corpo; e finalmente o determinismo sob o qual a vontade realiza a sua operação.

“Surpreende à primeira impressão não encontrar entre as proposições proibidas as relativas à unidade das formas substanciais nos seres corpóreos. Esta teoria firmemente sustentada por Tomás de Aquino havia sido uma das mais vivamente combatidas durante a sua última estadia em Paris. Semelhante omissão fora sem dúvida intencional. A teoria da unidade das formas substanciais era já tão universalmente aceite em Paris que ninguém ousava combatê-la, ou temia-se, depois do fragor das disputas sobre este assunto de alguns anos antes, tornar muito evidente a preocupação que tinham os autores da condenação de 1277 de ferir de descrédito o ensino de Tomás de Aquino? Nem uma nem outra dessas hipóteses poderíamos asseverar; em todo o caso, Etienne Tempier havia tomado as medidas para fazer executar em Oxford o que não podia cometer em Paris. Alguns dias depois da condenação de Paris, em 18 de Março, o arcebispo de Cantorbery, Robert Kilwardby, condenava por seu turno, um grupo de trinta proposições relativas à Gramática, à Lógica e à Filosofia Natural. A maior parte destas últimas atingem o ensino de Tomás de Aquino sobre a unidade das formas substanciais, ou melhor, sobre a composição dos corpos em geral. A conduta do arcebispo de Cantorbery pode parecer estranha se pensarmos que pertencia à Ordem dos Pregadores. Robert Kilwardby, porém, ligava-se pela sua formação e atividade científica ao antigo augustinismo. Mestre eminente, com numerosas e notáveis produções literárias, teria sentido de uma forma particular que a revolução doutrinal operada por Alberto Magno e consagrada por Tomás de Aquino ia arruinar a influência pessoal que adquirira e as ideias que eram o fundo das suas convicções filosóficas. Daí a sua atitude na condenação promulgada em Oxford.

“A condenação do arcebispo de Cantorbery cobria a do bispo de Paris. Etienne Tempier, antigo membro secular da Faculdade de Teologia de Paris, não podia ser suspeito, quando Robert Kilwardby, membro ilustre da ordem dominicana, marchava a seu lado e adotava a sua linha de conduta. Como político hábil, o bispo de Paris pensou fazer proibir no limite da sua jurisdição as proposições de Oxford. Em 7 de Março não ousara ferir de excomunhão as doutrinas assaz justificadas de Tomás de Aquino; agora que a condenação era reiterada e subscrita por um dominicano, por demais primado de Inglaterra, podia com maior impunidade, pensava, endossá-la. Quando começava, porém, a fazer agir os conselheiros que haviam elaborado a lista de 7 de Março, isto é, alguns mestres da Faculdade de Teologia, os cardeais que governavam a igreja sede vacante (20 de Maio-25 de Novembro de 1277) expediram-lhe ordem de sobrestar absolutamente neste assunto até que a Cúria Romana o encarregasse de se ocupar dele. Em suma, reprovava-se o zelo intempestivo de Etienne Tempier e invalidava-se indiretamente o valor da sua condenação e da de Robert Kilwardby.

É de todo o ponto verosímil que os dominicanos não foram estranhos ao ato da Cúria Romana”.

Esta exposição de Mandonnet, tão objetiva e fundamentada, conduz-nos a uma hipótese explicativa da adoção das Summulae e à certeza de que João XXI não foi dominicano. É que as condenações de Paris e Oxford não podiam deixar de atrair para o pontífice, que de certo modo as promovera, as atenções do público escolar. A atenção sobre a pessoa volver-se-ia a breve trecho em atenção sobre a sua obra, e assim se torna facilmente compreensível a rapidez com que as Summulae Logicales, escritas porventura na Itália, conquistaram as escolas de Paris e por estas as da Europa Central e Ocidental.

É uma hipótese verosímil, mas temos por inabalável certeza que João XXI não foi dominicano. Se o tivesse sido, tornar-se-iam inexplicáveis a condenação do tomismo incipiente ocorrida no seu pontificado, o ter sido reprovado o zelo do bispo de Paris logo após a morte do pontífice, o qual evidentemente brotou de uma reação contra simpatias anteriores, e finalmente a recriminação de um cronista dominicano contemporâneo, impossível se se tratasse de um irmão de hábito: “Hic [João XXI] hereticus et nigromanticus oppressos este in palatio a  dyabolo, benedictus Deus! guia impugnavit dieta Thome et Alberti”.        

De tão longa exposição podemos concluir agora que o autor das Summulae Logicales não foi o dominicano Petrus Alphonsi Hispanus, mas o português Petrus Juliani ou Petrus Hispanus, o pontífice João XXI.      

Na problemática que estabelecemos, a qual está longe de ser exaustiva, resta-nos ainda inquirir se devem atribuir-se ao mesmo indivíduo as Summulae Logicales e o Thesaurus pauperum, pois, como vimos, não falta quem separe o lógico do médico.              

Todas as objeções contra a identidade tiveram sempre um carácter hipotético, e no fundo baseavam-se no silêncio de Tolomeu de Luca. Hoje, porém, após as recentes descobertas de Martin Grabmann, essas objeções perderam todo o valor. O inventário e cronologia das traduções medievais de Aristóteles constituem a introdução indispensável à compreensão das correntes filosóficas dos séculos XII e XIII, e foi ao retomar aqueles já antigos problemas, que A. Jourdain pela primeira vez abordara com espírito crítico, que o sábio professor de Munique, à hora atual um dos mais notáveis investigadores e historiadores da filosofia medieval, teve a fortuna de descobrir algumas obras desconhecidas de Pedro Hispano. Vindo a Espanha, em 1927, com este objetivo, foi tão abundante a colheita de elementos novos que condensou numa comunicação à Academia das Ciências da Baviera o feliz resultado das suas investigações: Mittelakerliche lateinische Aristóteksübersetzungen und Aristoteleskommentare in Handschriften spanischer Bibliotheken (Munique, 1928, 120 p.).               

Na erudita comunicação interessa particularmente à história da filosofia e da ciência em Portugal o cap. XI Medizinische Traktate und der Kommentar des Petrus Hispanus zur aristotelischen Tiergeschichte im Cod. 1877 der Biblioteca Nacional zu Madrid—, no qual o sábio investigador dá notícia dos seguintes trabalhos de Pedro Hispano contidos neste códice 1877:

a) Notulae magistri Petri Hispani super Iohannicium. (fls. 24 r-48 r). Comentário da Isagoge ad artem parvam Galeni, de Hunaim ibn Ishaq.

b) Glosae super tegni magistri P. Hisp. (fls. 48 r-109 r). Comentário ao Microtechne, de Galeno.

c) Notulae P. Hisp. Super regimen acutorum. (fls. 110 r-123 v). Comentário ao De regimen atorum, de Hipócrates.

d) Glosae magistri P. Hisp. super prognosticon. (fls. 124 r-141 v). Comentário ao Prognosticon, de Hipócrates.

e) Quaestiones super viatico secundum magist rum P. Hisp. (fls. 142 r-205 r). Comentário ao De viatico, atribuído falsamente a Constantinus Africanus e da autoria de Abu Diafar Ahmad, discípulo de Isaac ben Salomon Israeli (Isaac Israeli, ou Isaac Judaeus).

f) Tractatus a magistro P. Hisp. editus supra dietas particulares. (fls. 206 r-238 r). Comentário ao De diaetis particulari bus, de Isaac Israeli.

g) Quaestiones super libro de dietis universalibus. (fls. 238 r-244 r). Comentário ao De diaetis universalibus, de Isaac Israeli.

h) Quaestiones super libro de urina. (fls. 244 r-247 r). Comentário incompleto ao De urinis, de Isaac Israeli; porém, Grabmann não hesita em o atribuir a P. Hispano.

i) Quaestiones super libro de crisi et super libro de diebus decretoriis. (fls. 248 r-250 v). Comentário ao De crisibus e De diebus decretoriis, de Galeno. Sem explicit, nem nome de autor, e também incompleto; porém, Grabmann atribui-o a P. Hispano.

j) Glosae magistii P. Hisp. super Phylaretum. (fls. 251-255 r). Incompleto. Comentário ao De pulsibus, de Philaretus.

k) Quaestiones super libro de animalibus Aristotelis (fls. 256 r-299 r). Comentário à Historia animalium, de Aristóteles.

Os simples títulos desta imponente lista, salvo o último, inculcam com evidência a feição médica, e embora contenham “muito material filosófico” a sua importância histórico-filosófica não oferece confronto com o último escrito mencionado; o Comentário à História dos Animais, de Aristóteles. Segundo Grabmann, Pedro Hispano utilizou o texto traduzido do árabe para latim, em Toledo, antes de 12'20, por Miguel Escoto, por forma que cronologicamente é o mais antigo comentário à Zoologia, de Aristóteles, anterior portanto à obra de Alberto Magno, De animalibus.

Com esta obra conquistou Pedro Hispano um lugar no movimento de difusão do aristotelismo, o qual condicionou a renovação filosófica do seu século, tanto mais que, como assevera Grabmann, inseriu no comentário algumas opiniões pessoais sobre a teoria do conhecimento. As notáveis descobertas de Grabmann fizeram cessar definitivamente a pretensa incompatibilidade entre o lógico e o médico, visto estes escritos patentearem uma íntima compenetração do médico e do filósofo, a qual se acentua e precisa na descoberta, também feita por Grabmann, de um tratado de psicologia de Pedro Hispano, existente no códice 3314 da Biblioteca Nacional de Madrid.

Em nenhum inventário medieval se indicava Pedro Hispano como autor de um tratado de psicologia, cuja autoria aliás não pode contestar-se, porque o códice madrileno que contém o De anima, por letra de quem copiou o texto, nos fins do século XIII ou princípios do século XIV, tanto na incipit como no explicit, o atribui a Petrus Hispanus Portugalensis. Notável como expressão da intensa e variada atividade do filósofo português, muito mais o é ainda pelo objeto e pela forma. Segundo o juízo de Grabmann, o «De anima, constituído por treze tratados, está concebido não sob a forma de questões escolásticas, mas pelo contrário, de maneira expositiva, a qual flui livremente, em estreita ordenação sistemática da matéria total da psicologia empírica e metafísica daquela época.

A conceção médica do autor aparece, frequentemente, de manifesto, na delicadíssima elaboração das bases fisiológicas da vida anímica. Coisa sumamente notável neste curioso tratado de psicologia é a ausência de qualquer citação, incluindo o próprio Aristóteles, com cujo pensamento o autor estava tão familiarizado.

“Pedro Hispano proporciona-nos uma grande imagem da doutrina da alma humana, tal como chegara a concebê-la graças ao seu trabalho mental independente.

“Cabalmente, é nesta independência com que, como científico, familiarizado com a ciência natural e a medicina dos antigos, dos árabes e da sua época, penetra e estabelece os problemas da alma humana, que radica o alto interesse desta obra. O estudo do livro, dentro da história das ideias, mostrar-nos-á as suas relações com a filosofia árabe, o que me não é possível desenvolver agora, assim como a análise dos seus problemas históricos. Farei ressaltar apenas que considero o tratado De anima de Petrus Hispanus como a psicologia mais amplamente rica, acabada e sistematizada da florida escolástica”.

Com serem tão diversos os escritos de Pedro Hispano, descobre-se através da diversidade a unidade de inspiração e de convergência porque, quer a sua atividade incida sobre a dialética, sobre a psicologia ou sobre a medicina, é sempre o aristotelismo, latino ou árabe, que encontramos na origem e no termo do seu pensamento.

Como Alberto Magno, Avicena e Averroes, embora em grau incomparavelmente menor, Pedro Hispano sacrificou ao ideal de sábio universal, que Aristóteles realizara e agora no século XIII ressurgia como ideal supremo. Por isso, os seus escritos não inculcam a diversidade de autorias, mas apenas a ardente curiosidade de saber e a vastidão dos conhecimentos.

Até às investigações de Grabmann, a fama de Pedro Hispano edificava-se sobre dois livros, de extraordinária fortuna; o Thesaurus pauperum seguido em regra de outros escritos médicos, e as Summulae Logicales.

O Thesaurus, editado no século XV, talvez em 1462, e sem dúvida em 1497, em Antuérpia, e posteriormente reeditado muitas vezes, foi escrito, na opinião do Dr. Luís de Pina, com o “intuito, aliás desculpável, de prestar um bom serviço aos pobres, ensinando-lhes receitas caseiras e económicas; fê-lo mais por piedade, que por espírito de propaganda científica”.

Maximiano Lemos, o erudito autor da História de Medicina em Portugal (1899), não hesitou em o julgar um “livro de terapêutica verdadeiramente infantil”, que não acusa a influência de Hipócrates, mas dos médicos árabes, o que aliás é manifesto na quase totalidade dos seus escritos médicos, designadamente nos Comentários sobre os Livros das Dietas Universais, no Comentário sobre o Livro das Dietas Particulares e no comento ao Liber urinarum, todos de Isaac.

Do conjunto de escritos médicos parece que o De oculis, do qual o Prof. Egas Moniz fez recentemente um excelente resumo, conserva um certo interesse histórico-científico, por ter sido um dos primeiros livros que se escreveram acerca da oftalmologia.

Mais importante, incomparavelmente, na história didática e na história das ideias foi a sorte das Summulae Logicales, designadas por vezes por Scriptum Summularum, Textus omnium summularum, Textus septem tractatuum, etc., e seguidas, em geral, de um apêndice, também de Pedro Hispano, conhecido por Tractatus parvorum logicalium, Parva logicalia, ou De proprietatibus terminorum, inteiramente relacionado com o livro das Súmulas.

Como o próprio título sugere, não estamos em face de uma obra original. Versório, o mais conhecido comentador das Summulae, dizia já que a palavra “Súmula” tanto podia significar uma reunião de tratados, como o resumo de obras diversas; e com efeito, a obra de Pedro Hispano, participa destas duas significações, embora avulte a de compêndio ou manual.

Se acrescentarmos às Summulae os Parva logicalia,— e não devem separar-se, pela feição dialética de toda a obra —, a matéria distribui-se segundo esta ordem: I) — Proposições ou teoria do juízo (Propositiones); 11)— Predicáveis ou dos cinco universais (Praedicabilia); 111) — Predicamentos ou categorias (Praedicamenta); IV) — De syllogismo; V) —Tópicos ou lugares comuns (Tópica); VI) —Falácias (De sophisticis elenchis); VII) — Propriedades dos termos (Proprietates terminorum, ou Parva logicalia), a saber: a) suposição (suppositio), 1) em si; 2) em relação (relativorum); b) ampliação (ampliado); c) apelação (appellatio); d) restrição (restrictio); e) distribuição (distributio), e f) sincategoremas (exponibilia, ou syncategoremata).

O primeiro tratado, sobre a teoria do juízo, trata do nome, do verbo, dos sincategoremas, das partes da proposição (sujeito, predicado e cópula), das espécies de proposições (contrárias, contraditórias, subalternas e subcontrárias), da matéria dos juízos (natural, contingente e remota), da conversão das proposições (simples, per accidens, e por contraposição), cuja teoria condensa nos seguintes versos mnemónicos, de tão grande fortuna,

Feci simpliciter convertitur, Eva per accia.

Asto per contra, sic fit conversio tota

Asserit A, negat E, sunt universaliter ambae;

 Asserit I, negat O, sunt particulariter ambae.

e termina com a teoria da modalidade do juízo (necessario, contingenter, possibiliter, impossibiliter, vero, falso).

No segundo tratado expõe a árvore de Porfírio, isto é, os cinco universais — género, espécie, próprio, diferença e acidente.

No terceiro tratado, sobre as categorias, ocupa-se dos antepredicamentos, isto é, dos conceitos de unívoco, equívoco e determinativo, e dos oito modos essendi ou messe; dos predicamentos, salientando dentre as dez categorias de Aristóteles, a substância, quantidade, relação, qualidade, ação e paixão; e finalmente dos pós-predicamentos, a saber, das quatro espécies de oposição, das significações das palavras prius, posterior, simul e habere, e das seis espécies de movimento.

No tratado sobre o silogismo define proposição e termo, tratando em seguida do dictum de omni e dictum de nullo, da teoria do silogismo, suas figuras, das quais apenas considera três, excluindo o Galenica figura, e respetivos modos, e da inventio terminorum.

Nos tópicos, ocupa-se da invertido propositionum, das diversas significações da palavra ratio, e do que seja argumento argumentatio, indução, entimema, exemplo, e locus dialecticus.

No tratado sobre os sofismas, trata das quatro espécies de disputado (doutrinal, dialética, tentativa e sofística); dos cinco objetivos da sofística, (redargutio, falsum, inopinabile, sotoecismo, nugatio) e da divisão das fallacia—fallaciae in dictione, (aequivocatio), anfibologia, fallacia com positionis, divisionis, accentus, ignorado elenchi, petição de princípio, etc.

O tratado De proprietatibus terminonum ou De pavis logacilibus, o mais extenso e o mais original, de influência decisiva na evolução da corrente lógica designada por terminismo, e sobre o qual, em grande parte, radicou o renome de Pedro Hispano, é em rigor impossível de resumir. As distinções e subdistinções sucedem-se e encadeiam-se ininterruptamente, dando prova de uma arguta e penetrante capacidade de análise gramatical e lógica. Sirva de exemplo um excerto da doutrina da suposição.

Por suposição entende o emprego de um termo substantivo por outro, distinguindo-a da significação, porque esta se refere à essência da palavra, enquanto que a suposição ao seu uso. A suposição pode ser: comum, se emprega um nome comum (por exemplo homem), ou discreta, se emprega um nome próprio (por exemplo Sócrates), ou nome comum tornado próprio com um pronome (por exemplo este homem); as suposições comuns podem ser naturais OU acidentais; as acidentais, simples e pessoais; as pessoais, determinadas e confusas: as confusas, móveis e imóveis; etc., etc.

Estas distinções, cuja subtileza e desenvolvimento põem à prova a resistência do mais incansável estudioso, tiveram sua importância na elaboração da filosofia da linguagem e de algumas doutrinas lógicas, designadamente na teoria da quantificação do predicado, a qual, antevista por Leibniz no período de 1679-1710, foi formulada quase simultaneamente pelos lógicos ingleses Hamilton, Thompson e De Mor-gari no século passado. Como judiciosamente observou o falecido prof. A. Gómez Izquierdo, “as palavras ou termos, que até então só haviam sido considerados como nomes das coisas pensadas, ou como forma sensível do pensar falado (forma retórica e forma dialética), aparecem em Pedro Hispano com a sua propriedade mais essencial, a significação. Deste ponto de vista, todo o termo categoremático pode desempenhar as seguintes funções: Supportere, vel copulare, appellare, ampliare, restringere et alienare, que são outras tantas modalidades da sua virtude significativa. As três primeiras referem-se à diversidade de objetos que pode representar um termo, e as outras três às mudanças de uma dada significação.

Ao lado dos termos categoremáticos, assim chamados porque por si só têm um sentido completo, ou como hoje diríamos, significam um sujeito, um estado ou uma qualidade, há que ter em conta outros termos cuja função é modificar o expressado noutro termo, e, portanto, isolados não têm significado. A estes chamam-se-lhes sincategoremáticos, e são os relativos, os adjetivos determinativos, como todo, algum, etc. O emprego destes últimos complica extraordinariamente a função significativa, encontrando-nos nós com um sem-número de casos que seria impossível reproduzir em compêndio. O mais típico destes é o das proposições “exponíveis”, isto é, “as proposições, que por terem algum dos termos sincategoremáticos, oferecem um sentido complexo, que pode decompor-se em várias proposições simples”.

Sem grande ousadia se pode dizer que para Pedro Hispano o problema fundamental da lógica era o da significação das palavras; e com efeito foi por ter colocado o acento sobre tal problema que as Summulae se tornaram inseparáveis da história do nominalismo e terminismo lógicos. E compreende-se. As Summulae devieram o mais famoso e divulgado compêndio da lógica nova, expressão que no século XIII serviu para designar o súbito enriquecimento da lógica pela difusão de todo o Organon de Aristóteles. A lógica vetus, ou lógica de Boécio, compreendia apenas os dois tratados do Organon —as Categorias e o Da Interpretação —, a Isagoge de Porfírio e os escritos de Boécio —De divisione e De differentiis topicis; enquanto que a lógica nova se edificava, além destes tratados, nos Analíticos, nos Tópicos e nos Elencos Sofísticos, isto é, sobre todo o Organon. Herdeira da obra aristotélica, a obra de Pedro Hispano resume quase todo o pensamento lógico do Estagirita, em ordem, porém, à dialética e preparação das disputas escolares, que não à teoria e demonstração científicas.

Como notou Michalski, é esta a característica dos compêndios ou Summulae de Guilherme de Shyreswood e de Lambert de Auxerre, os quais, como o de Pedro Hispano, visavam acima de tudo a preparação para os torneios dialéticos das disputas universitárias. Entre os três compêndios há, pois, uma linha de parentesco, e mesmo mais do que parentesco, porque as Summulae de Pedro Hispano em rigor não são originais: “nasceram da justaposição de proposições tiradas quase sempre textualmente da Summa de Lambert de Auxerre, o que ressalta com evidência da comparação da obra de Petrus Hispanus com os manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris, fundo latino, 7392 e 13966, que contém a obra de Lambert”.

Para o individualismo da nossa época, Pedro Hispano cometeu o feio pecado de plágio; não assim na estimação dos seus contemporâneos, para os quais a objetividade da verdade primava absolutamente sobre o indivíduo que primeiro a formulasse.

Precisamente por ter sabido dispor com arte didática as matérias, e ter condensado o que então se considerava por verdadeiro e útil à formação dialética, é que a obra de Pedro Hispano eclipsou a de Lambert de Auxerre, embora devesse ter concorrido para este triunfo a circunstância do dialético português ter ascendido ao sólio pontifício.

Desde então a sua fortuna escolar foi imensa, a tal ponto que a corrente terminista e probabilista dos séculos XIV e XV, se por uma via procede de Duns Escoto, por outra promana do compêndio de Pedro Hispano, já pelo número e subtileza das distinções do conceito capital de “terminus”, já pela feição dialética, já pela forma como concorreu para atribuir à probabilidade o primeiro lugar nas discussões.

É que nos Parva logicalia, como observou Michalski, “se aprendia a discutir “probabiliter”, e a “probabilidade” conquistava crescentemente o primeiro plano, de sorte que sob a pressão de contra-argumentos dialéticos sempre novos, certas teses da metafísica e da teodiceia, às quais se havia atribuído até então um carácter necessário, começaram a passar do domínio da ciência para o da opinião”.

É mais do que provável, senão certo, que Pedro Hispano não escreveu em Portugal as Súmulas Lógicas; mas não obstante integram-se fundamente na cultura nacional, pela utilização nas nossas escolas até meados do século XVI, isto é, ao aparecimento do compêndio de Dialética de Pedro da Fonseca, o Aristóteles conimbricense, e a tal ponto que na Universidade existiu oficialmente uma cátedra de Súmulas.

A especulação metafísica não seduziu os mais cultos espíritos do Portugal medievo.

É nos problemas práticos, como a dialética, a ética e a política, que a sua atenção se concentra; mas a despeito da ausência de escritos, ecoaram em Portugal algumas divergências doutrinais da escolástica. Quando atrás nos ocupamos das heresias, aludimos à influência averroísta, e mais precisamente, à irradiação na Universidade de Lisboa do espírito herético derivado do ensino de Siger de Brabante em Paris. Hoje, graças às recentes e notáveis descobertas de F. Stegmuller, podemos dizer que no século XV, embora sem a feição de blasfémia que Álvaro Pais nos transmitiu, se manteve o interesse pelas teses averroístas de Siger, o opositor contemporâneo de S. Tomás de Aquino. Trabalhando na Biblioteca Nacional de Lisboa, o sr. Stegmuller teve a fortuna de descobrir no ms. 2299 do Fundo Geral uma miscelânea de 40 opúsculos filosóficos, de Maimónides, S. Tomás de Aquino, Alfarabi, Dominicius Gundissalino, Witelo, Al-Kindi, Alexandre de Afrodísias, Isaac ben Salomon, e de Siger de Brabante, além de outros anónimos ou de identificação problemática. O conteúdo deste códice, de 309 fls., copiado, segundo observa Stegmuller antes de 1323 e que pertenceu a um presbítero francês Postelli, que o adquirira em Paris em 7 de Dezembro de 1427, vindo, ao que supomos no século XV para Beja, de onde transitou para a Biblioteca Nacional, é da mais alta importância, constituindo uma das joias do nosso património bibliográfico medieval. Graças ao seu erudito exame, pôde Stegmuller enriquecer a bibliografia de Siger com 5 Quaestiones morales, e 6 Quaestiones naturales, até então absolutamente desconhecidas, e de que se não conhece outra redação, além de ter encontrado ainda, no mesmo códice, as cópias das impossibilia (o 3.° ms. conhecido) e do Tractatus de necessitate et contingentia causarum (2.° ms. conhecido). De capital importância para o estudo da obra de Siger, e porventura para a de outros filósofos medievais, pois as respetivas redações não foram ainda confrontadas com os textos impressos, este códice tem para a nossa cultura filosófica o mérito de testemunhar o interesse especulativo por problemas teológicos e filosóficos que agitaram a Cristandade medieval. O que dizemos do averroísmo latino, podê-lo-íamos dizer, mediante induções, da influência dos místicos de S. Vítor, especialmente Hugo de S. Vítor, embora, ide passo, deva acentuar-se que a atitude fideísta, se acaso sugeriu confidências ou diálogos na discrição dos claustros, não deixou de si claro testemunho.

Os dois grandes filósofos do século XIII, Tomás de Aquino e Duns Escota, tiveram sem dúvida a direção filosófica das respetivas ordens, dominicana e franciscana, como anteriormente a tivera o augustinismo, mas só o tomismo impregnou a cultura nacional. A obra do Aquinatense é largamente representada nas bibliotecas medievais portuguesas, conservando ainda hoje só o núcleo alcobacense da Biblioteca Nacional de Lisboa sete códices da Summa Theologica e é na síntese tomista que mais ou menos fielmente se filiam as ideias gerais, quer nas questões propriamente teológicas, quer filosóficas ou práticas. Ainda nos fins do século XV, o rei D. João II recomendava a Cataldo Sículo que ensinasse ao infante D. Jorge a Ética de Aristóteles, com os comentários de São Tomás.

Um momento houve, no segundo quartel do século XV, em que Raimundo Lulo teve certa aura entre nós. Na Biblioteca Nacional conservam-se códices; D. Duarte, no Leal Conselheiro, cita ao que parece a Ars Magna e fala nos “Reymonistas”, isto é, sequazes de Lulo; e na capital, em 1431, havia um mestre Adrião, que ensinava, talvez numa escola privada, a arte do famigerado malhorquino.

D. Duarte censura em Lulo o excesso de demonstração em matérias de fé, pensando que basta a crença para as prescrições da doutrina católica, e que a “continuada experiência” é o critério da verdade racional; mas não se encontrará no lulismo uma das causas incitadoras da cruzada contra o mouro, a qual animou o Portugal do século XV?

A atividade filosófica dos portugueses medievais deve procurar-se mais no estrangeiro que em Portugal, e se alguns regressaram à Pátria, muitos morreram fora dela, na Inglaterra, na França, na Itália e na Espanha.

Na Inglaterra, João Sobrinho escreve o Tractatus perutilinians de iusticia aommutativa et arte oampsoria seu cambiis ac alearum ludo, do qual existe na Biblioteca Nacional de Lisboa um exemplar da edição de Paris, de 1496, e onde o autor disserta com espírito tomista sobre a usura.

Em Pádua, aparece-nos, por volta de 1495, o franciscano Gomes de Lisboa como crítico de Nicoleto Vernia, examinando na Come tu ordinis minorum Artium doctoris et Sacrae Theologiae magistri Questio perutilis de cuiuscum que scientie subi ecto principaliter tum naturalis philosophie foeliciter incipit, (s. 1. n. d.) mas dos fins do século XV, as ideias do filósofo paduano, expostas no livro: Nicoletus vernia theatinus Philosoph. Mag. in studio Patav. Perutilis et subtilis questio de Philosophie naturalis subiecto (s. 1. n. d.).

No seu raríssimo opúsculo, do qual encontramos um exemplar na Biblioteca Columbina de Sevilha, ocupa-se Gomes de Lisboa do conceito e objeto da Filosofia Natural.

Vernia, cujo magistério averroísta foi excomungado latae sententiae pelo bispo de Pádua em 4 de Maio de 1489, tanto nesta obra, como na Quaestio an ens mobile sit totius philosophiae naturalis sub jectum, de 1480, (impressa nas Quaestiones per Magist rum Joannem Herbort de Silgenstat), ocupava-se do objeto da Filosofia Natural, isto é, se era o ens mobile, como dissera S. Tomás, se o corpus mobile, como afirmara Alberto Magno. Aparentemente, parecia uma questão de palavras; no fundo, porém, não o era, pelas consequências teológicas que tomistas, escotistas e averroístas extraíam.

Se, com os tomistas, se sustentasse que o sujeito da Filosofia Natural era o ser móvel, os anjos não poderiam ser objeto de consideração física, porque como inteligências puras estavam fora da natureza, e imóveis; os escotistas, pelo contrário, como por exemplo Trombeta, opinavam que os anjos recaíam sob a consideração física, porque a sua natureza e quididade os tornava sujeitos de movimento. Por isso que era capaz de movimento, o anjo pertencia às substâncias naturais. Neste debate, tipicamente escolástico, Nicoletto Vemia tomara o partido de combater simultaneamente os tomistas, porque tornavam a física dependente da metafísica, e os escotistas, porque a física não devia ocupar-se de substâncias imateriais, embora coincidisse com estes em aceitar a substância natural como sujeito da física, enquanto sensível e princípio de movimento e repouso. Para Vernia, pois, de acordo com os escotistas, o corpo móvel é o sujeito da física, porque satisfazia às oito condições necessárias ao sujeito de qualquer ciência: ser real, uno, universal, adequado, conhecido na sua razão formal e ter partes, afeções e princípios.

Teologicamente, a solução de Vernia conduzia à posição da dupla verdade: uma proposição pode ser filosoficamente verdadeira, e teologicamente falsa, e vice-versa, porque o anjo, não tendo corpo, furta-se à física, mas sendo móvel, recai sob a consideração física, que é a ciência dos corpos em movimento.

Demais, comprazia-se em salientar a contradição entre a ubiquidade e o movimento infinitamente veloz dos anjos, e por isso dizia que falava nestas matérias segundo a razão natural, maneira capciosa de dissimular o ceticismo teológico. Dir-se-ão estéreis e obsoletas estas discussões, há muito desterradas, mas a história da ciência não as pode ignorar, porque marcam um estádio da conceção da física como ciência natural e independente: Pomponácio, dos primeiros a separar a ciência da fé, foi o sucessor de Vernia na cátedra de Pádua, e foi em Pádua que o génio de Galileu criou a física e a mecânica modernas. Gomes de Lisboa participou no debate suscitado por Vernia a pedido de Anselmo Meie, mantuano, de uma forma histórico-crítica.

O seu objetivo foi a determinação do que Aristóteles e Duns Escoto pensaram acerca do sujeito da Filosofia Natural, com o fim de provar que Nicoletto Vernia errara. A sua Quaestiuncula, de estilo e arquitetura secamente escolástica, apoiada em Aristóteles e Escoto, quase não comporta resumo, pelo encadeado da argumentação. Nela examina, uma a uma, as oito condições que Vernia considerara necessárias ao objeto de uma ciência, concluindo por afirmar que o filósofo paduano incluíra algumas supérfluas, e excluíra outras indispensavelmente requeridas.

Em Salamanca, nos princípios do século XVI, Pedro Margalho, em cuja Universidade professava, escreve e publica em 1520, a Margalla logices utriusque scolia divi Thome subtilisque Duns doctrina ac nominalium, e o Phisices Compendium. O tratado de Lógica pode dizer-se que é um livro desconhecido dos bibliógrafos portugueses. Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, não o cita, e Leitão Ferreira, o mais erudito biógrafo de Margalho, duvidou até (Memórias Cronológicas da Universidade de Coimbra, I, § 1032) da sua existência.

Tivemos a fortuna, porém, de encontrar um exemplar, ao que supomos o único conhecido, na Biblioteca Columbina de Sevilha, assim como o Phisices Cornpendium, do qual existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Lisboa. No tratado de Lógica, que tem por base as Súmulas de Pedro Hispano, expõe as teorias lógicas segundo as orientações tomista e nominalista, mostrando claramente o conhecimento e a influência do nominalismo parisiense do século XV.

O Compêndio de Física é um ensaio de síntese more metaphisicorum de Filosofia Natural, isto é, da física, da cosmografia e das ciências afins, patenteando-nos como nenhum outro livro o estado da ciência peninsular no primeiro quartel do século XVI. Sob este ponto de vista, é um livro capital, tanto mais que acerca da repartição das terras e continentes alude já a alguns descobrimentos contemporâneos, com verdadeiro orgulho patriótico.

Em todas estas atitudes surpreende-se, clara ou veladamente, a repercussão ideológica de algumas correntes filosóficas da Escolástica, que assumiu sempre uma feição universal, e cuja irradiação o emprego do latim tornava fácil e acessível.

Nelas não encontramos, pois, o vinco da nacionalidade, o qual apenas transparece nas questões práticas, especialmente políticas. É que as condições próprias da vida portuguesa, tanto internamente, como na sua projeção exterior, suscitaram problemas morais e políticos que, embora impregnados do espírito ecuménico da Respublica Christiana, se prendem por algumas raízes aos ideais nacionais.      

Nos primeiros séculos da nacionalidade, a conquista e defesa do reino impôs quase exclusivamente a ação. Entre o rei e os súbditos não havia divórcio de ideais; ética coletiva e religião católica eram uma só, e tacitamente todos consideravam o reino como património do monarca. O rei era, a um tempo, o chefe supremo do exército na guerra, na qual intervinha pessoalmente, e o supremo magistrado na paz.

Com tão latos poderes, não raro exercidos pessoalmente, a realeza não foi na essência despótica. E que os fins ético-religiosos, concretizados na justiça, limitavam moralmente o exercício do poder, vinculando o monarca a manter no seu povo o direito e a justiça, a qual, segundo as Ordenações Afonsinas (L. V, t. I), é celestial e enviada por Deus aos príncipes. A conceção do rei como vigário de Deus surgiu em Portugal na primeira metade do século XIV; porém, foram necessários alguns séculos para que esta ideia da divinização da realeza, no fundo inspirada pelos legistas, se impusesse à consciência intelectual e moral da nação. No século XV, Gomes Eanes de Azurara, na Crónica de D. Duarte, “fala da instituição régia e da hereditariedade do trono como de uma invenção utilitária do engenho humano, porque “aos homens pareceu necessário ordenarem entre si reis” para castigo do mal e recompensa da virtude e, pelos inconvenientes que resultariam da eleição, “ordenaram que tais dignidades viessem por direita sucessão de pai a filho”. Há no juízo do retórico cronista o cunho do pensamento secular. E compreende-se. O clero já não detinha, como séculos atrás, o primado no governo temporal. A influência progressiva dos juristas, formados na escola do Direito Romano, à medida que o Estado firmava as suas fronteiras territoriais e a Coroa se impunha com poder crescente, foi erguendo no campo dos factos e da doutrina o problema da delimitação das soberanias temporal e espiritual. As lutas entre os dois poderes, o eclesiástico e o leigo, acentuam um dos rasgos mais dramáticos da nossa história medieval, e se passarmos dos factos para a teoria, isto é, para as ideias que os factos traduzem, notaremos que os defensores do primado espiritual não assistiram indiferentes à secularização do poder, e vindicaram com vigor o que reputavam um imperativo moral da cristandade. Álvaro Pais foi no século XIV a voz peninsular mais enérgica e retumbante do ideal católico. Em rigor, não há na sua atitude sombra de espírito nacional; pelo contrário, a sua doutrina, pela índole, como pelo fim, é católica, isto é, universalista. Os seus escritos políticos fundamentais, são a parte primeira do De Planctu Ecclesiae, e o Speculum Regum.

Na primeira parte do De Planctu, escrito entre 1330 e 1332, versa o então candente problema das relações da Cúria com o Império, escrevendo um verdadeiro libelo contra o antipapa Pedro Corbaria e contra o seu mantenedor Luís o Bávaro. Para A. Pais, então alto funcionário da Penitenciária, a plenitude do poder espiritual e temporal, pertence ao pontífice, devendo o poder temporal delegar-se ao príncipe, que o exerce por delegação.

Em seu juízo, esta doutrina é a consequência da unidade de Deus, a qual refletindo-se na unidade da criação, e portanto da Humanidade, logicamente determina a unidade e universalidade da autoridade. Sob tão rígido imperialismo teocrático flui, como hoje dizemos, o espírito da paz, e se remontássemos às suas fontes encontraríamos na nascente a influência da filosofia de Santo Agostinho. Quase todos, senão todos, os escolásticos distinguiram com Hugo de S. Vítor os dois poderes, e se esforçaram por fundamentar a conceção de que à Igreja pertence a instituição e o patronato do poder civil. Destes postulados, unanimemente aceites, extraiu Álvaro Pais a conceção do poder espiritual como um superestado, ou, para empregar uma frase sua do Collirium lidei, de sabor tipicamente escolástico, a Igreja é o género do qual as nações são as espécies.

O Speculum Regam, concluído em Tavira em 1344, sendo Bispo de Silves, foi escrito com a ambição de servir de programa de governo de um príncipe cristão. Dirige-o a Afonso XI de Castela, oferecendo-lho como um espelho no qual deve ver a sua conduta. Não creio que este facto prove a nacionalidade espanhola de Álvaro Pais, porquanto o Speculum começa por glorificar a batalha do Salado, de 30 de Outubro de 1340, ganha por Afonso XI contra os mauros. A batalha teve imensa repercussão na península, nela participando o rei de Portugal, e compreende-se que em face da retumbante vitória, o fervoroso católico se inclinasse perante o herói. Por isso, o exorta a prosseguir na luta contra o Islão já porque as guerras por motivo de religião são justas, já porque, como descendente de reis godos, conquistadores da África, herdara direitos sobre a Mauritânia. Demais, por contraste, alude por vezes ao procedimento dos reis de Portugal para os condenar, mostrando assim que sob o elogio ao castelhano escondia a crítica ao lusitano. Em seu juízo, a monarquia é a forma de governo mais racional, mas não raro os reis cometem graves pecados. Assim, os reis da Península dão aos judeus uma excessiva preferência no governo; intrometem-se injustamente no foro eclesiástico; compelem os sacerdotes, contra direito, à guerra; a sua justiça é parcial, morosa e venal; não combatem a heresia e os feiticeiros; não pagam, como lhes cumpre, os dízimos, e ouvindo os conselheiros não ouvem a nação, porque quod ornnes tangit ah omnibus debet aprobari. Censura-lhes ainda a imoralidade e a libertinagem, a tolerância do jogo, do qual auferem réditos, a ausência de escrúpulos religiosos, a abundância de despesas voluptuosas, delicatas, superfluas, com as esposas e filhos legítimos e ilegítimos, e diversões com histriões, jograis e cómicos, quando apenas são justificáveis os citaristas e tangedores de outros instrumentos musicais. De tantos e tão diversos pecados nem sempre os reis se confessavam, e se o faziam, confessavam-nos a sacerdotes aduladores e complacentes. Depois do quadro negro, isto é, dos vícios, defeitos e pecados de que o rei se devia afugentar, a indicação das virtudes, como a prudência, a temperança, a continência, a clemência, a modéstia, a sobriedade, a castidade, a constituição do matrimónio, quando et quod opus carnale sit licitum, a fortaleza, a paciência, a perseverança, a magnanimidade, a justiça, a obediência, etc., etc.

Pela índole e objeto, o Speculum é um diretório de príncipes — género literário relativamente frequente na Idade Média. Em Portugal, foi, sem dúvida alguma, o primeiro no tempo, mas não pensamos que à autoridade cronológica corresponda o primado na influência. Cremos mesmo que ele ficou quase ignorado do público lusitano, pois é nos três livros do De regimen principum de Egídio Romano, que encontramos o debuxo da personalidade ideal do rei com decisiva influência em Portugal.

Assim, como apurou Costa Lobo (ob. cit., v. II, 91), “o Regimento dos Príncipes era leitura usual, perante os fidalgos, na câmara de D. João I (Azurara, Crónica do Conde D. Pedro, c. 8). El-Rei D. Duarte possuía na sua livraria dois exemplares, um deles com iluminuras douradas (Sousa, Provas, I, 544) e no Leal Conselheiro se depara com frequentes referências a essa obra; foi traduzido em português pelo infante D. Pedro (Pina, Crónica de Afonso V, c. 125). No inventário da livraria de El-Rei D. Manuel vem mencionado um exemplar do mesmo livro (Arq. Hist. Port., II, 413). Nos nossos escritores do século XV a cada passo se encontram citações de doutrinas desse tratado. O prólogo de Fernão Lopes à Crónica do Rei D. Pedro é, em grande parte, quase textualmente traduzido de um trecho daquela obra (no cap. 12, liv. I).

Compreende-se, com efeito, a influência deste tratado no século XV, assim como a floração das doutrinas políticas nesta centúria.

E que no início do século Portugal gerou a mais profunda revolução da sua vida histórica. Destruíram-se interesses fortemente enraizados, renovou-se a vida pública da nação, a começar pela própria dinastia, e ascenderam aos postos dirigentes pessoas até então obscuras. Tão profunda e vasta transformação impôs à consciência esclarecida os mais delicados problemas morais e políticos. Na turbação momentânea não faltaram os condutores, dos mais nobres que Portugal tem conhecido, porém, os intérpretes mais intelectuais, transportando para o plano da reflexão o que a ação ditava, foram o Infante D. Pedro e o rei D. Duarte.

A sociedade medieval era uma sociedade hierarquizada em classes. Socialmente, os homens eram desiguais, e portanto a ascensão de um indivíduo de classe inferior à nova classe ou junto de um privilegiado, constituía sempre uma benesse.

A forma orgânica da aproximação foi o benefício. Se o inferior servia, o privilegiado beneficiava, e esta relação envolvia necessariamente vínculos morais. Distribuir ignaramente os benefícios seria corromper a própria estrutura social, e portanto tornava-se necessário fixar-lhes a natureza, condições e fins. Tal foi o tema que, por formação ideológica e imperativa das circunstâncias nacionais, ocupou o espírito do Infante D. Pedro, filho de D. João I, ao escrever o tratado da Virtuosa Benfeitoria, na qual desenvolveu, uma atitude universalista, e portanto filosófica, o problema do benefício.

Vimos de atribuir ao Infante tão famoso tratado, mas esta atribuição reclama um atento exame crítico.

Em Santarém, em 1418, quando se reuniram cortes na expectativa de nova guerra com Castela, seu irmão D. Duarte, a quem a obra é dedicada como primogénito herdeiro do reino, perguntou-lhe em que ponto ia o seu livro Dos Benefícios, que havia começado naquele ano. D. Pedro respondeu-lhe que o tinha já terminado; parecia-lhe, porém, que a redação era deficiente e carecia de emendas, tanto mais que era nova tenção sua transformá-lo num livro próprio para príncipes e grandes senhores, isto é, num regimento ou diretório de príncipes. D. Duarte animara-o a prosseguir; porém, D. João I advertira-o em contrário, por não pertencerem “aos cuidados da guerra misturas de pensamentos que fossem alheios”, e, portanto, não trabalhasse “de compor livro, nem de cuidado outro semelhante”.

Solicitado por “mandados” opostos, o Infante a ambos satisfez, servindo o pai na “defensão” das gentes e terras, e o irmão, cometendo ao licenciado Frei João Verba, seu confessor, o acabamento do livro; e assim o licenciado “tomou aquele livro que eu tinha feito, e também outro que fez Séneca, em que me eu fundara: e apanhou o que achou em eles que fosse bem dito, ou ordenado. E corregendo e acrescentando o que entendeu ser compridouro, acabou o dito livro adiante escrito”.

Vemos, pois, que ao Infante D. Pedro pertence a ideia e a redação primitiva da obra, intitulada então, à maneira de Séneca, Dos Benefícios, e o título da segunda redação, —Da Virtuosa Benfeitoria—, a qual dilatou o texto, que foi convertido num espelho, diretório ou regimento de príncipes.

Cronologicamente, a primeira redação foi escrita pelo Infante aos 26 anos, em 1418, ano das Cortes de Santarém, como apuramos por um documento do Arquivo da Câmara de Coimbra; e a segunda redação entre este ano e 14 de Agosto de 1433, data da aclamação de D. Duarte como rei, visto dedicar-lhe a obra corno príncipe herdeiro.

Literariamente, é impossível hoje discriminar na segunda redação o que pertence a D. Pedro do que foi introduzido pelo seu confessor, o licenciado Fr. João Verba, de quem sabemos apenas o nome. Em tão delicado assunto apenas pode conjeturar-se, pela análise interna da obra e pelas vagas sugestões da dedicatória, que são atribuíveis a Fr. João Verba o método expositivo, à maneira escolástica de quaestiones, e o desenvolvimento de erudição escriturária, teológica e filosófica. “Há capítulos pequenos e recheados de citações, notou Martins de Carvalho, não saindo fora da regra estreita do que pretende tratar; outros enormes (por exemplo o cap. 24 do liv. I), com pedaços tirados a Séneca, sem uma citação erudita, a não ser a leve referência à “degratal do livro terceiro” e onde D. Pedro fala em nome próprio; alguns interessantes, bem escritos e com boa literatura, outros rigorosamente escolásticos, expondo e rebatendo argumentos, sem de mais nada se importar. Os livros V e VI estão conformes o plano geral, mas tem um aspeto mais compacto, escasseando as citações, em confronto com os antecedentes, sendo menos vulgares os plágios e influências de Séneca. E pode ser que tudo isto não passe de reparos originados na homogeneidade que estamos habituados a ver nas obras modernas; de resto, dado o método de composição do livro, é um facto que perfeitamente se explica, bem como muitos outros que poderíamos apontar. Por mais concordes que fossem as vistas de D. Pedro e do licenciado, foram contudo dois autores contribuindo para fins idênticos e não um só autor e um revisor depois; nestas condições, certas diferenças não são de admirar” (oh. cit., 20).

Na redação primitiva a fonte ideológica do Infante fora o livro Dos Benefícios, de Séneca, e é ainda a mesma influência que domina na segunda redação. No título, na problemática, na índole moralista, nas abundantes citações e deflorationes, a Virtuosa Benfeitoria é o livro de um senequista medievalizado. Sob esta base, facilmente aceite pelo catolicismo medieval em virtude da deformação de Séneca no sentido cristão, a Virtuosa Benfeitoria incorpora a abundante colheita de numerosas leituras. O propósito de estadear erudição, de a utilizar como argumento de autoridade, é manifesto, de tal ordem que se organizarmos o rol das citações teremos corno que o inventário da livraria do Infante e do seu confessor.

Assim, da Antiguidade grega, cita Tales de Mileto, Sócrates, Diógenes, Platão, Arato, Hermes, etc., e Aristóteles. Estas citações porém, salvo Aristóteles, de quem conhecia o Organon e a Ética, são de segunda ou terceira mão, colhidas as respetivas sentenças no geral, segundo cremos, num Livro da Vida e Costumes Filosofais, ou Livro da Vida dos Filósofos, compilação medieval muito manuseada pelos autores. Da Antiguidade latina, assim como da patrística, dos filósofos escolásticos e da literatura medieval o conhecimento foi direto. Dos escritores romanos cita as poesias de Éneo e Ovídio, o historiador Salústio, os “feitos membradoiros” de Valério Máximo, o Comento ao Sonho de Scipião de Macróbio, Plínio, o filósofo, mas os autores prediletos foram Cícero — a Retórica, Dos Deveres, Dos Benefícios—, e sobretudo Séneca o filósofo, de quem cita Dos Benefícios, as Cartas a Lucílio, Da Clemência, Da Tranquilidade da Alma, a quarta Tragédia, atribuindo-lhe ainda o Livro das Declamações e o Livro dos Costumes.

O Antigo e o Novo Testamento são abundantemente referidos. Dos padres da Igreja cita de S. Jerónimo, as epístolas a Oceano e a Vigilância; de S. João Crisóstomo, “sobre o Evangelho de S. Mateus”; de João Damasceno, as Sentenças; de S. Gregório, a Moral e o Diálogo; de S. Ambrósio, o Hexaemeron; de S. Bernardo, as Flores, porém, as preferências foram para Santo Agostinho, de quem cita as Confissões, a Cidade de Deus, Da Trindade, Epístolas, Da Ensinança dos Cristãos, Livro dos Costumes Eclesiásticos, e Livro das Obras dos Monges.

Como era lógico, avulta a bibliografia medieval, quer teológica, quer filosófica e literária. Assim, cita de Boécio, o Da Consolação da Filosofia, e o Livro da Ensinança dos Escolares; de Dionísio Areopagita, o Dos Nomes de Deus; de Pedro Lombardo, as Sentenças, não referidas expressamente; de Santo Anselmo, o Da Conceção Virginal e o Livro da Predestinação e da Graça; de Alberto Magno, o Da Celestial Hierarquia; de Hugo de S. Vítor, o Didascalicon; de João de Salisbury, o Polycraticus; de João de Gales, o Livro do Comum Falamento das Causas; de Egídio Romano, o Regimento dos Príncipes; Maimónides, Algazel, e o “douctor lincolinençe” que é Robert Grossetêst (Greathead), citados sem indicação de obras; o Livro de Troia ou Crónica Troiana (Guido Coluna); o Livro da Vida Filosofal; as Decretais; a História Eclesiástica; a Crónica de Espanha; o poema do Mio Cid (“lemos do virtuoso cavaleiro Cid Ruy Dias”), mas de todos os autores medievais, o mais lido foi São Tomás de Aquino, do qual cita a Suma Teológica, a Suma Moral, Sobre as Sentenças, o Livro da enssynança dos princepes e o De pontiçia Dei (sic).

Tão variada erudição não deve ser considerada à maneira dos atuais métodos de trabalho. Em rigor, ao invocarem tantos escritores e livros os autores não investigavam os factos ou corroboravam juízos pessoais pela contraprova ou assentimento dos juízos de outrem. Curavam acima de tudo de colher exemplos, isto é, ditos, parábolas, descrições, etc., para apoiarem a exposição de uma doutrina, moral ou religiosa; e com efeito, a Virtuosa Benfeitoria constitui um verdadeiro Thesaurus exemplorum, em cada um dos quais encontramos os três elementos que Welter considera característico do exemplum medieval: o relato ou descrição, a doutrinação moral ou religiosa, e sua aplicação ao homem.

Pelas citações, pela técnica literária e pela arquitetura escolástica de algumas questões, a Virtuosa Benfeitoria é uma obra tipicamente medieva; e se passarmos do aspeto externo para a análise interna, isto é, para a região das ideias, encontramos com tanta ou mais nitidez o mesmo vinco da meia idade.

A Virtuosa Benfeitoria é um tratado de moral.

Indica-o o título, pois por virtuosa benfeitoria entende “todo bem que é feito por algum com boa ordenança” e prova-o a índole e a matéria.

D. Pedro parte do pressuposto, característico da alma medieval, de que o mundo é um sistema de coisas dispostas gradual e hierarquicamente por Deus. Daí, não haver nenhuma perfeita e todas padecerem de míngua. Por isso, Deus estabeleceu a afeição natural entre os homens para que mutuamente se ajudassem, ligando à nobreza dos príncipes a obediência dos súbditos. Foi o conhecimento “da virtuosa prisão desta cadeia”, necessária ao governo do mundo, que o induziu a escrever o tratado, o qual se reparte em seis livros, versando o I a noção e divisões do benefício, o II, como deve ser prestado o benefício, isto é, do dar e bem fazer, o III do pedir, o IV, do receber, o V, do agradecimento, e o VI, da perda do benefício. Em todos os livros a ordem e encadeamento dos problemas são escolásticos, ocupando-se nos últimos cinco livros das pessoas, tempo, lugares e modos das respetivas matérias.

Segundo o Infante, o benefício nem é natural, nem deve ser casual. Tem “a sua nascença no querer da vontade” e consequentemente procede de alguém e é feito a outrem com a intenção de ser prestado. Daí, o poder definir-se o benefício em relação à vontade como “a feyçom virtuosa de proveitar a outrem mostrada per obra”, e em relação ao dom que se outorga como o “bem feito a outrem com entençom de lho prestar”.

É a última definição que D. Pedro adota, porque, além de outras razões, ela compreende as quatro causas de Aristóteles, a saber: a causa material, porque se diz que o benefício é bem; eficiente, porque é feito a outrem; formal, por ser feito com intenção, e final, pelo proveito que resulta do benefício, mas apesar da concorrência das quatro causas, a essência do benefício reside na “boa vontade”.

O benefício é um conceito ou uma “natureza geral” e como tal é suscetível de ser dividido em naturezas especiais, segundo critérios diversos, isto é, formal e materialmente.

Formalmente, se o fim do benefício é prestar, como a “prestança” é necessária, proveitosa, honrosa ou prazível, os benefícios dividem-se em necessários, proveitosos, honrosos e prazíveis; materialmente, isto é, em relação à matéria do benefício, podem ser vocais, quando feitos por palavras, como o ensino, castigo, conselho, louvor; e reais, quando feitos com obras. Os reais, por seu turno, podem subdividir-se ainda em dois grupos: aqueles que não empregam meio entre quem faz o benefício e quem o recebe, como a ajuda na batalha ou em qualquer ofício, e os que exigem um meio entre quem beneficia e é beneficiado, podendo o meio ser imediato, isto é, tornar-se logo uso e propriedade de quem o recebe, como terras, dinheiro, etc., ou ser mediato, isto é, não sair da propriedade de quem o dá, como a ajuda de gente de armas, etc.

É a primeira divisão que D. Pedro adota, por ser formal e essencial e porque a divisão material comporta um interminável desenvolvimento.

Fundamentado o objeto do tratado, empreende então o caminho da análise das quatro espécies de benefício e respetivas condições e modos de ser feito, para em seguida se ocupar, nos livros imediatos, do pedir, do receber, do agradecer e do perder os benefícios, os quais amolentam a dureza das perdas e fazem amansar os bravos corações.

Pela posição filosófica, a Virtuosa Benfeitoria é uma obra pertinente a todos os estados do homem, de alcance geral, portanto; porém, pela intenção, dirige-se particularmente aos príncipes e grandes senhores, “e por isso se integra, de certo modo, como observou o Prof. Paulo Merêa, naquela abundante literatura política peninsular que à imitação dos tratados de regimine principum, que lá fora eram frequentes, tinha por principal objeto orientar a educação dos reis a “régia instrução” — e “enumerar as suas funções e deveres” (ob. cit.. 185).

Daí, a existência de reflexões políticas à margem do problema moral do benefício, e dentre as quais tem uma particular importância a conceção do poder público, em regra designado por senhorio, que é definido como a “propriedade excelente que poem mayoria em o que tem em respeito de algua soieyçom que outrem suporta”.

Sinónimo de poder público, o senhorio, em rigor, não é pertença exclusiva da realeza, porque a sua natureza é inerente ao exercício de qualquer autoridade senhorial; porém, a atenção dos autores insistiu particularmente sobre as condições que explicam e tornam legítimo o exercício do poder público.

O Dr. Paulo Merêa, no estudo já citado, examinou acuradamente as conceções políticas expressas na Virtuosa Benfeitoria relacionando-as com a problemática da filosofia política medieval, e com ele podemos resumir em cinco pontos as opiniões do Infante D. Pedro:

1) “O poder em abstrato vem de Deus; deve pois ser considerado como um facto natural, como um remédio divino para o nosso estado de imperfeição e de pecado.

2) «O poder em concreto origina-se em Deus, mas não por designação expressa: as formas por que se adquire o poder são várias, mas em todas elas deve existir o consentimento do povo.

3) “O rei desempenha um ofício, cujo objeto é promover o bem do povo, e de cujo cumprimento há de prestar contas a Deus.

4) “O rei deve, designadamente, fazer justiça, governar em conformidade com o direito e não ferir os foros da nação.

5) “O rei deve ter um conselho no qual estejam representados os três estados da nação”.

 “Tais as doutrinas expendidas pelo Infante. Analisando-as, escreve o mesmo sábio professor, cremos não se poder ficar em dúvida de que estamos em face dum característico escritor político medieval. A sua obra, se não tem o mérito de nos fornecer um sistema fortemente pessoal e bem vincado — qualidade, de resto, difícil de encontrar nos escritores do tempo —, nem sequer um sistema acabado — o que nele não seria de esperar, dado o carácter do seu tratado —, tem no entanto o incontestável interesse de nos patentear, através da prosa severa do moralista, os pontos culminantes do pensamento político contemporâneo, com o qual o seu pensamento vibrava em uníssono. Não era evidentemente das tendências mais democráticas, das que formavam a “extrema esquerda” da política medieval, que nós podíamos esperar um eco na obra do Infante, mas dentro da sua situação social, ele pensa como os homens ilustrados do seu tempo. Inspiram-no por um lado as doutrinas eruditas da política medieval, por outro as ideias correntes no ambiente feudal”.

É o mesmo vinco medieval, o mesmo prazer da erudição e cópia de citações e o mesmo objetivo moralizante que encontramos no Leal Conselheiro, do rei D. Duarte; mas a despeito destas feições comuns há entre os dois livros a distância que vai do tratado ao ensaio, e, psicologicamente, do intelectual ao afetivo. A Virtuosa Benfeitoria, no esquema lógico e no desenvolvimento, é um tratado escolástico sob o tema basilar do benefício; o Leal Conselheiro é a obra de um ensaísta que se deleita na diversidade de temas, colhidos uns na sugestão livresca, outros na experiência própria e na reflexão pessoal. Por isso, na Virtuosa Benfeitoria o pensamento tem a marca dialética de uma dissertação com objetivo determinado, enquanto que no Leal Conselheiro se solta com relativo desembaraço, preferindo a variedade e a divagação.

Ignora-se o ano em que foi escrito o Leal Conselheiro, se é que foi continuadamente, porque se nos afigura muito provável que D. Duarte o redigiu paulatinamente, durante anos, como se escrevesse apenas para si próprio e confiasse à escrivaninha o recato das horas íntimas. Como datas limites, porém, indicou fundadamente o visconde de Santarém os anos de 1428 e 1437, “visto que, tendo sido trasladado a rogos da Rainha, só isto poderia ter lugar depois do primeiro ano, que foi o do seu casamento, e o de 38, que foi o da prematura morte d’EI-Rei. Não foi o Leal Conselheiro composto antes de 1422, pois que o A. trata da morte d’El-Rei Henrique V de Inglaterra”. Admitindo-se esta cronologia, a obra de D. Duarte aparece-nos como fruto da maturidade; daí, a feição pessoal das suas reflexões, por vezes com o semblante do solilóquios.

O Leal Conselheiro consta de 102 capítulos, nos quais versa a teoria das paixões, das virtudes e do corregimento dos males e pecados. É, pois, um livro de moral, ou como diz o autor, um A B C, isto é, uma Cartilha de Lealdade, “feito principalmente para senhores e gente de suas casas”, sendo na matéria, e sobretudo na circunstância de ter sido “lealmente todo escrito” que se encontra a razão do título.

Os primeiros nove capítulos formam um pequenino tratado de psicologia, ou mais precisamente do entendimento, “nossa virtude muy principal”. Distingue no entendimento sete partes: aprender, relembrar, julgar, inventar, declarar, executar e perseverar.

D. Duarte sabia bem que a execução e a perseverança são “virtudes do coraçom”, mas não obstante subordinou a vontade ao entendimento, porque este, “com a graça do Senhor”, as acrescenta e mantém. Se a vontade, assim, carece do entendimento, o entendimento requere grande memória e boa vontade, e por isso trata a seguir das duas operações psicológicas. Na memória distingue, pela sua experiência pessoal, a memória sensual, isto é, a evocação que se reporta a factos dos sentidos, da memória racional. Apresenta duas divisões da vontade: uma, colhida nas Colações de S. João Cassiano, outra, fundada em parte em S. Gregório. Na primeira distingue quatro espécies: carnal, espiritual, prazenteira (tíbia) e perfeita (virtuosa). A vontade perfeita, em relação à espiritual, não é uma redundância, porque a sua função consiste em lhe moderar os rigores, assim como os ímpetos e excessos da vontade carnal. É o objeto ou fim da vontade que fundamenta esta divisão; e embora lhe pareça acertada, D. Duarte admite uma segunda divisão, atendendo à natureza da vontade, colhida em parte no que “sentia em si e nos outros”, em parte na Homilia 29, do liv. II das Homilias de S. Gregório Papa: vontade vegetativa, vontade sensitiva, vontade racional, e livre-arbítrio. Vontade vegetativa, semelhante à que têm as árvores, demanda o que é necessário à vida. A sensitiva, idêntica à dos animais, reparte-se em desejadora e irascível, tendo cada uma destas subdivisões seis paixões, três boas, e três más. As paixões do desejar são: amor, desejo, deleitação, ódio, aborrecimento e tristeza; e as do poder irascível, 'paciência, esperança, atrevimento, sanha desordenada, desespero e medo. Finalmente, a vontade racional, pela qual os homens participam com os anjos, dirige-se principalmente à guarda das virtudes, e o livre-arbítrio, “como Senhor entre todas, manda connosco o que se faça em todallas cousas que per nosso escolhimento fazemos”.

Admitindo semelhante divisão das partes do entendimento, D. Duarte nem por isso admitiu que elas existissem igualmente em todos os homens; por isso, fazendo um pequeno ensaio de caracterologia, no cap. 8, distingue quatro espécies de homens, tanto mais que o siso não está somente no entender e falar, mas também na ação boa e virtuosa: os de pequeno entender e saber e má vontade; os de grande entender e saber e má vontade; os de curto entender e saber e vontade justa e direita, e finalmente os de grande saber e entender e vontade justa e direita.

Após a conceção geral da psicologia, D. Duarte expõe a teoria das paixões, dos pecados e das virtudes. Ë a matéria fundamental do Leal Conselheiro, e dos numerosos capítulos em que a reparte, intercalados por vezes por traduções que servem de prova ou justificação de algumas ideias, uma nota se destaca: a penetração crítica na apreensão da natureza das paixões. Jamais em língua portuguesa alguém, como D. Duarte, levou tão longe a análise do conhecimento emocional e surpreendeu com tanta subtileza a essência dos sentimentos, distinguindo-os da massa confusa da vida afetiva. Só quem viveu pelo coração, e soube pela experiência íntima que o coração tem suas razões, que a razão desconhece, na frase famosa de Pascal, pôde sondar com tanta clarividência introspetiva a mais difícil e obscura região da vida psicológica. Quer pelas distinções, quer pelas análises quase fenomenológicas, como hoje diríamos, as suas observações sobre a sanha ou ira, ódio, malquerença, enfadamento, tristeza, nojo, pesar, desprazer, aborrecimento e saudade, conservam o valor quase modelar, de atualidade, porque trocou a autoridade livresca pela observação e vivência pessoal, isto é, fê-las “considerando os seus sentidos e os dos outros”. Sob este aspeto, o Leal Conselheiro é um livro sem par na nossa literatura filosófica. A análise das paixões, seguidas naturalmente dos pecados correlativos, serviu de fundamento ao moralista para inculcar um conjunto de normas, conselhos e reflexões impregnadas da ética cristã.

Mais ainda que a relação a seu irmão, o Infante D. Pedro, a multidão de leituras que D. Duarte fez não lhe secou a frescura de espírito; pelo contrário, como que o fecundou, robustecendo-lhe a ingénita pureza de ânimo e a sagacidade na análise introspetiva.

Com a dinastia de Avis surgiu, como vimos, o problema do fundamento do poder político. Alguns atribuíram-lhe uma tímida origem democrática, isto é, o consenso dos povos, e outros a procedência divina, e à qual, o aio de D. Manuel, Diogo Lopes Rebelo, parece ter dado no Liber de republica magna doctrina et eruditione refertus necessarius cuilibet homini volenti virtute uti, in qua graves sententiae, necnon praeclarissirna dicta a visceri bus moralis Philosophiae deprompta plenissime digesta sunt, com a teoria geral dos deveres do rei, a mais sábia exposição.

Mais ardente e vivo que o problema do fundamento do poder político foi o exame do conceito da guerra justa, ou, na sua tradução popular, a legitimidade da expansão nacional. O território português fora conquistado palmo a palmo aos mouros, e a conquista tinha perante a consciência moral da nação uma justificação absoluta: era uma guerra defensiva. O problema prático não se formulara então, e só Álvaro Pais o examina, já de uma forma abstrata no De Planctu Eclesiae, já, no Speculum Regum, como legítimo direito dos soberanos espanhóis à reconquista da Mauritânia.

Não assim no século XV. Com as expedições marroquinas de Ceuta e Tânger, Portugal já não defendia o seu território, mas ia atacar o muçulmano no próprio lar, sem poder, porventura, invocar o direito de herança dos monarcas espanhóis. Era isto justificável?

Eis o problema que a política do dia colocava perante a consciência moral e religiosa. D. Duarte, no Leal Conselheiro, e Azurara e Rui de Pina abordam-no e relatam as fórmulas e vicissitudes das várias opiniões, que giravam, na maioria, em torno dos dois polos opostos. Esta divergência dilacerava a unidade da ação nacional e, para a solucionar, a alma tão escrupulosamente delicada do rei D. Duarte viu como último recurso a decisão do Pontífice.

Roma falou; mas o problema persistiu latente, a despeito dos triunfos no norte de África, encontrando-se ainda no século XVI um eco do dissídio quatrocentista em Gil Vicente e Camões.

Como outrora era o sentimento de uma missão coletiva da cristandade que exaltava a consciência da nação, no ardor de unir espiritualmente, pelos laços da religião, os homens e os povos. O ideal medievo da Respublica Christiana persistia, e se a violência e a guerra formavam o processo atuante, a finalidade espiritual, da paz em Cristo, como que o absolve, emprestando às aspirações portuguesas do século XV um valor humano e uma significação idealista.

O homem medieval não foi um ser espiritualmente solitário. Quando elevava o entendimento acima das solicitações quotidianas e sensíveis antevia, como nós, verdades eternas e valores absolutos, mas ao descobri-las sentia-se iluminado por Deus. Os seres e objetos naturais, ao contrário da visão atual, eram para ele tão-somente os mensageiros que anunciavam Deus, e por isso não atribuiu às ciências um valor intrínseco e muito menos o sentido moderno, teórico e utilitário, do saber para explicar e prever. Como podiam coisas finitas e perituras satisfazer um pensamento que aspirava à infinidade? No íntimo, a especialização científica e a consideração naturalista e objetiva eram uma forma de pecado, porque, ligando exclusivamente a inteligência às coisas criadas, faziam esquecer o Criador. A Ciência e a arte da Idade Média não possuíram, nem podiam possuir, pois, um valor autónomo, e tanto uma como outra serviram apenas de instrumento para elevar a mente a Deus. Daí, a inexistência da consideração naturalista, porque a Natureza, longe de ser estudada em si mesma, sob a conceção mecânico-racional, foi vista como espelho grosseiro em cujas imagens se devia descobrir a omnipotência de Deus.

Esta conceção explica-nos a característica e o ritmo do pensamento científico em Portugal principalmente durante os séculos XII, XIII e XIV, como aliás, com mais ou menos vicissitudes, em todos os países da Europa. Em rigor, o seu âmbito cronológico', em certas ordens de conhecimento, estende-se entre nós pelos primeiros decénios do século XVI, e como é óbvio foram as necessidades práticas, que não o afã puramente teorético e desinteressado, que atraíram a inteligência para a observação e exame da Natureza. Por isso, é na aplicação prática, sobretudo nos problemas que a expansão marítima necessariamente inculcava, que encontramos o cunho original e inconfundível do nosso pensamento científico. Se neste rápida esboço procurássemos apenas a originalidade no conjunto da ciência medieval, deveríamos deter-nos tão-somente no século XV; mas é de si claro que outras necessidades solicitaram a atenção da inteligência da Idade Média, de uma forma mais ou menos científica.

Dentre essas necessidades, a medicina ocupa o primeiro plano.

Antes do século XIV, ou mais rigorosamente antes da fundação da Universidade em 1290, a aprendizagem clínica fazia-se sobretudo nos mosteiros.

Anexas aos conventos de Santa Cruz de Coimbra, Rocamador, Alcobaça e S. Vicente, de Lisboa, existiam albergarias e enfermarias, dirigidas por monges, e era à porta das igrejas e na portaria dos mosteiros que os doentes e pobres acudiam para receberem curativos ou remédios. Se é certo que os monges e sacerdotes procediam mais por dever religioso e amor do próximo que por saber, a verdade é que foi nos cenóbios, especialmente em Santa Cruz, que primeiramente se exercitou o ensino regular da medicina. Ao lado, porém, desta clínica e assistência, filhas da caridade cristã, havia a clínica leiga, exercida principalmente por judeus, quando o não era por curiosos, aventureiros e charlatães, ou pessoas de virtude. A fundação da Universidade, os poderes atribuídos ao físico-mor, e a escolaridade de estudantes portugueses nas faculdades famosas de Montpellier, Pádua, etc., não desterraram a clínica empírica e charlatanesca, mas como é óbvio concorreram para que a medicina adquirisse uma feição mais científica.

O ensino universitário foi, como já acentuámos num capítulo anterior, essencialmente livresco, e quando o examinamos sob o ponto de vista doutrinal, encontramos, “além das tradições hipócritas, as doutrinas galénicas e arábicas, não se tendo aproveitado destas o que dizia respeito à cirurgia. A influência dos astros na saúde das pessoas e na evolução das suas doenças, a manifestação destas pelas alterações dos excreta e sobretudo das urinas, isto é, a Astrologia e a Uroscopia, eram elementos que principalmente influíam no diagnóstico e no prognóstico, que se completavam pela inspeção dos tegumentos e da língua, pelo pulso, pela avaliação da temperatura feita pela palpação, facilidade com que se secavam os apósitos, etc. A terapêutica reconhecia virtudes sobrenaturais a produtos do reino animal, onde tinham lugar primacial as concreções, cálculos e ossos, que ao lado dos cristais formavam o grupo das pedras, que gozavam de fama universal e atingiam preço elevadíssimo, que só lhes permitiam figurar na farmacopeia dos ricos.

“Os vestígios das antigas crenças, atribuindo às doenças origem demoníaca, justificavam as múltiplas superstições de natureza religiosa, que se tinham como soberanamente eficazes. A patogenia baseava-se na doutrina dos humores, que pelo seu predomínio determinavam os temperamentos, constituindo a predisposição para as doenças, e pelo exagero desse desequilíbrio as próprias doenças em cuja evolução, além da influência dos astros, dominava a luta da Natureza contra a matéria pecante, luta vitoriosa quando, pela cocção primeiro e pela eliminação e pelas crises depois, se fazia a anulação e eliminação da causa mórbida. Importava portanto nos casos urgentes tentar eliminar a parte pecante, fazendo correr sangue, e nos outros casos esperar a conjunção favorável dos astros, e os dias propícios, ajudar a cocção dos humores, facilitar os fenómenos críticos, como vómitos, purgação, diurese e transpiração, o que se conseguia por meio de remédios de origem vegetal e animal, banhos e outros meios. As águas minerais, que tinham por si o mistério da sua formação e a crença de serem remédios de origem divina, tinham grande crédito, sobretudo contra as doenças crónicas, em que os meios habituais do tratamento se mostravam ineficazes. No nosso País havia vestígios de águas exploradas nos tempos proto-históricos (Vizela) e outros mais frequentes de construções romanas (Lafões ou S. Pedro do Sul, Caldas da Rainha, etc.). Algumas destas nascentes foram utilizadas nos primeiros séculos da nossa nacionalidade, merecendo a proteção de reis e senhores desse tempo, que mandavam aparelhar os tanques e construir perto abrigos destinados a agasalhar os doentes que acorriam a fazer uso das águas” (Silva Carvalho, ob. cit.).

A preparação dos remédios e mezinhas teria conduzido algum clínico ou charlatão à descoberta de propriedades químicas ou terapêuticas de corpos? Nada se aponta nesta esfera de observação, assim como no domínio da anatomia, o que aliás se compreende relativamente a esta última pela proibição das dissecações; e por isso é legítimo o convencimento de que o ensino médico em Portugal, durante a Idade Média, se baseou exclusivamente na tradição e no estudo livresco de obras árabes traduzidas em latim ou em escritos inspirados na medicina arábiga.

Se o nosso intuito fosse historiar as ciências durante a Idade Média, cumprir-nos-ia naturalmente inventariar os livros e escritores nos quais se acusa um intento de explicação ou de observação dos factos. Tal não é o nosso objetivo, que em rigor só pode ser feito por especialistas, e por isso limitar-nos-emos a acentuar que nos séculos XII, XIII e XIV em todos os distritos do conhecimento científico se acusa a influência decisiva da síntese aristotélica e das compilações e enciclopédias medievais, das quais a de Santo Isidoro de Sevilha parece ter dominado com decisivo e duradouro crédito. O mosteiro de Alcobaça foi durante estas centúrias o centro sábio do País, mas com o século XV nós assistimos não só à primeira manifestação de secularização do saber como ao que podemos chamar a primeira renascença. Domina-o ainda a ideologia medieval, porém, o horizonte intelectual dilata-se consideravelmente, tanto pela informação bibliográfica com pelo estabelecimento de problemas novos. As bibliotecas deste período não sofrem confronto com as dos séculos anteriores, e através dos códices que as constituem, e que conhecemos por inventários ou podemos em parte reconstituir pelas citações literárias, patenteia-se uma ardente curiosidade filosófica e científica, que ora se dirige para os problemas morais, ora para o conhecimento da Natureza. Sob este último aspeto é verdadeiramente notável o Livro da Montaria, escrito por D. João I entre os anos de 1415 e 1433. Acerca do seu objeto, — a caça do porco-montês — não se limitou o régio autor à exposição das regras, senão que fez um verdadeiro tratado científico, relacionando toda a espécie de conhecimentos zoológicos, meteorológicos, astronómicos e até psicológicos, que podiam esclarecer o assunto. É o Livro da Montaria a primeira obra escrita em português que acusa a mentalidade observadora dos factos, e se é certo que as citações livrescas conservam ainda o sabor medieval e o encadeamento das questões recorda a técnica literária escolástica, aquela mentalidade realista é já indício da revolução profunda que em breve se ia operar no campo dos ideais e dos métodos científicos.

E, com efeito, sob o ponto de vista do ideal, do conhecimento e da consideração objetiva e prática da Natureza, a geração imediata a D. João I, à cabeça da qual como duca e maestro se encontra seu filho, o Infante D. Henrique, oferece-nos, não apenas em Portugal, mas na Europa, o primeiro esforço cientificamente conduzido para resolver os problemas de navegação astronómica.

O que singulariza o esforço destes homens é a associação íntima de todas as disciplinas, como a Astronomia, a Matemática e a Cartografia, que podiam servir de base aos problemas práticos da expansão marítima. Se o saber para prever tem sido e será sempre o objetivo, a um tempo teórico e prático, do conhecimento científico, jamais em Portugal esse tipo de saber atingiu simultaneamente tão elevada altura e tão gloriosa finalidade civilizadora, tanto mais singular quanto é certo que, mediante as demonstrações históricas de Luciano Pereira da Silva e de Joaquim Bensaúde, podemos assegurar hoje que esse saber tem uma linha clara de ascendência nacional, na qual a colaboração estrangeira foi de exíguo valimento.


?>
Vamos corrigir esse problema