A atividade científica da universidade de Coimbra na renascença

Desde o seu advento, no século XIII, as Universidades realizam de uma forma constante, embora com vicissitudes várias e em proporção diversa, a dupla função de transmitirem o saber adquirido e de criarem, pela investigação original, o saber novo. Destas duas funções, é primordial e quiçá de mais imperativa necessidade social a da transmissão do saber e correlativa preparação profissional; mas com ser a mais antiga e a mais necessária nem por isso singulariza uma Universidade no concerto das Universidades. Nada se define apenas pelo género comum; por isso, quando queremos surpreender a fisionomia peculiar duma Universidade temos de a procurar na posição científica que ela assume e pela qual colabora ou aspira a colaborar na obra comum do desenvolvimento da ciência.

Esta observação preliminar e óbvia fixará o objetivo da minha palestra, pois determina que relegue para plano secundário o exame da preparação profissional e que atente especialmente na atividade científica da nossa Universidade durante o século XVI, período fixado pelo promotor destas reuniões, o meu estimado amigo e ilustre colega, Dr. Feliciano Guimarães.

Abstratamente, pode considerar-se a atividade científica duma Universidade sob três aspetos: o meio em que ela se exerce, o inventário da sua produção, a característica do seu labor.

A descrição do meio transporta-nos para o domínio da história externa; diz-nos quem foram os homens que trabalharam cientificamente, as condições em que atuaram, sob que regime, normas, organização e possibilidades viveram e produziram. Sendo útil e até necessário, este estudo, porém, pouco diz acerca da singularidade da atividade científica.

O inventário da produção científica, desde os escritos à criação ou modificação de técnicas, desde a formação de bibliotecas especializadas às edificações acomodadas ao ensino ou à investigação, é de alcance óbvio, e não apenas óbvio senão também urgentemente necessário para o balanço científico da nossa Universidade. Pode dizer-se que conhecemos a bibliografia universitária impressa durante o século XVI, mas é-nos desconhecida a maior parte da produção manuscrita desta centúria, assim como o recheio das livrarias pessoais e públicas e, salvo pelo que respeita ao hospital, os planos e realizações dos edifícios universitários. Quantos esforços beneméritos não jazerão ignorados, quantas injustiças não teremos cometido deixando no esquecimento dos arquivos tantas dedicações à causa do ensino nacional e do progresso científico!

No entanto, a despeito do seu valor intrínseco e dos possíveis ensinamentos, o inventário da produção universitária, no sentido amplo que lhe atribuí, supondo que à hora atual o pudéssemos julgar satisfatoriamente, seria, como a descrição do meio, uma investigação preliminar; por isso, me decidi a tentar algumas observações sobre a índole da atividade científica. E, pois, sobre um aspeto da história da ciência relacionado com a nossa Universidade quinhentista, que me proponho refletir convosco em voz alta — e digo refletir, porque não venho oferecer-vos nenhuma daquelas sínteses que são o suco e compêndio de laboriosas e porfiadas investigações analíticas. O mais elementar escrúpulo impõe-me, assim, que inculque apenas dúvidas e, quando muito, me atreva, aliás sob o jugo de severo cometimento, a ensaiar a problemática e o método com que desejaria abordar tão complexo e sedutor assunto.

A história da ciência é hoje uma disciplina consagrada; nenhum outro ramo de conhecimentos se lhe avantaja em benefícios morais pois logra inundar de sentido a noção de progresso, patenteando a influição das evoluções e revoluções dos conhecimentos exatos nas nossas mundividências e necessidades de adaptação e senhorio da Natureza, isto é, nos juízos do homem sobre si próprio e sobre o Mundo, e na maravilhosa aplicação instrumental da técnica à utilização e domínio das brutas e cegas forças naturais.

Uma vez mais, porém, me encontro perante a necessidade de fixar claramente o objeto desta conversação, pois a história da ciência encerra uma exuberante problemática, a qual pode, consequentemente, ser encarada sob diversos pontos de vista. Com efeito, são abundantes e complexos os seus problemas; no entanto, creio que, sem grande violência, os podemos enfeixar em três tópicos fundamentais, a saber: o exame das tentativas e esforços despendidos em beneficio do progresso científico, a colheita dos resultados obtidos e, finalmente, a observação da morfologia e objetivos da atividade científica.

Pelo exame das tentativas e esforços assistimos ao espetáculo augusto da luta da inteligência com a bruteza dos factos, na ânsia de lhes desvendar o mistério com que se apresentam ou de os ordenar coerente e consistentemente segundo os ditames da razão.

Na história do espírito humano, nada se compara a esta luta pela inteligibilidade e clara ordenação, e como exortação à vida científica nenhum outro tema se poderia propor tão sugestivo e edificante para os estudantes que me ouvem; no entanto, com tristeza o confesso, não posso ir além desta mera indicação. Desconhecemos a biografia mental dos nossos mestres do século XVI, ignoramos de quase todos a problemática que lhes incitou o labor, são-nos inacessíveis, por carência de informes, assim autobiográficos como de alheio testemunho, as dificuldades que defrontaram e tiveram de vencer. O decoro impõe-me, pois, o silêncio, que eu impregno da esperança veemente de que outrem, melhor informado, possa um dia dissipar a ignorância em que me vejo.

Se o exame das tentativas e esforços nos coloca perante a nascente viva da criação científica, o estudo dos resultados obtidos dá-nos a ciência constituída, da qual somos atualmente não sei se dignos, se indignos beneficiários. Falo em resultados obtidos; ao empregar esta expressão não aludo exclusivamente aos conhecimentos positivos, porque, para glória e benefício da Humanidade, é tão necessário o conhecimento da verdade como a determinação do erro ou da falsidade, tão útil verificar-se a hipótese promissora como eliminar-se a hipótese infecunda, e, em certos casos, um erro que se desterra vale mais do que uma verdade que se logra. A marcha científica do espírito humano não tem sido nem será retilínea. Na mesma época e, às vezes, no mesmo indivíduo, mormente quando este ambiciona uma explicação sistemática e totalitária, como por exemplo Descartes, a mente tanto sobe ao cume difícil da verdade, respirando o ar puro da altitude, como desce ao marnel dos desacertos, submergindo-se no redemoinho do erro; por isso, a reflexão sobre a situação relativa das verdades e dos erros, isto é, se se sabe melhor o que as coisas são do que o que não são, constitui sempre problema capital em cada momento da atividade científica. Neste sentido amplo emprego a expressão resultados, e, como é intuitivo, ela sugere um tema, valioso como nenhum outro, de investigações e reflexões acerca da nossa Universidade quinhentista. Uma vez mais, ainda, eu não posso ir além do mero estabelecimento do tema, porque a soma das minhas dúvidas e ignorâncias é incomparavelmente superior à dos poucos conhecimentos exatos.

Graças sobretudo ao Dr. Gomes Teixeira, o melhor historiador da ciência que Portugal gerou e cujo nome sempre recordo com grato respeito, pode apreciar-se a obra de Pedro Nunes, assim nas verdades novas que descobriu como nos erros tenazes que dissipou, designadamente os de Orôncio Fineu sobre a possibilidade de resolver, por meio da régua e do compasso, a duplicação do cubo e a quadratura do círculo; mas podemos dizer o mesmo da maior parte dos seus contemporâneos e colegas na Universidade?

De alguns, são-nos conhecidos certos passos da vida, não tanto, aliás, como a nossa curiosidade desejaria; de quase todos, porém, ignoramos a biografia intelectual, as dúvidas que lhes espertaram o espírito, a estrutura e a extensão da sua atividade intelectual, as suas ações e reações perante a ciência coetânea. O pouco que sei, desmembrado e por assim dizer anedótico, impossibilita-me de encadear objetivamente alguns factos e ideias, mesmo sem a ambição sedutora das sínteses, e consequentemente despeço-me deste tema, até que um dia o possa rastrear guiado pelos ensinamentos das minhas investigações ou conduzido pelo saber ministrado por outrem.

Resta-me, assim, dentre os tópicos que assinalei à história da ciência, a morfologia da atividade científica. É, assunto complexo; permito-me em todo o caso abordá-lo, pois, por agora, embora provisoriamente, julgo ser suficiente atentar na índole dos livros publicados pelos professores da Universidade durante o século XVI.

A nossa produção bibliográfica quinhentista, considerada quantitativamente, é apreciável. Tito de Noronha, em 1874, calculou-a em 900 livros, e Sousa Viterbo, mais tarde, por 1891-1892, julgava poder elevá-la a 1200; hoje, após as novas investigações, das quais se destacam as do rei D. Manuel II, e, sobretudo, se levarmos em conta os livros de autoria portuguesa impressos no estrangeiro, podemos aditar à contagem de Sousa Viterbo algumas dezenas. Esta produção encontra-se diversamente distribuída por diferentes cidades; assim, segundo o inventário de Sousa Viterbo, Lisboa figura à cabeça com 503 livros, seguindo-lhe Coimbra com 283, 'Évora com 42 e depois outras povoações com números escassos. Coimbra ocupa, pois, o segundo lugar na escala quantitativa das oficinas tipográficas do nosso século XVI, e os seus prelos, como é Manifesto, rangeram principalmente para o serviço da Universidade. Encontramo-nos, assim, perante uma massa considerável de livros, ou, mais precisamente, de factos; como abordá-los, e, podendo ser, cingi-los, em ordem a captar-lhes as formas de atividade científica que eles exprimem? Definido o tema, é esta a primeira dificuldade, evidentemente de ordem metodológica, com que topamos.

A solução mais simples seria a de enfeixarmos estes factos sob um critério estritamente universitário, ou burocrático se quiserdes, repartindo-os pelas diversas Faculdades — Teologia, Cânones, Leis, Medicina, Artes — a que pertencem os autores destes livros.

A verdade em si mesma é talvez simples, mas simples ou intrincada ela abomina francamente as fórmulas complicadas e confusas; no entanto, nunca se nos apresenta com simplicidade acessível, e neste caso concreto a aplicação deste critério conduzir-nos-ia a confusões, pois não raro aconteceu, sobretudo nos tempos em que não imperava, como hoje, a especialização, que os professores de uma Faculdade escrevessem sobre assuntos de outra ou de outras.

Ao abandonarmos este critério, inextricável e, por confuso, detestável a quem ama a clareza, acode naturalmente selecionar a produção livresca, isto é, os factos que temos a considerar, segundo as classes de objetos que estes livros cingiram. Os objetos podem ser físicos, como os fenómenos que ocorrem e as coisas que vemos, palpamos, etc., e às vezes se sujeitam à medida, e estes objetos constituem o que chamamos as ciências do que é, ou da natureza; podem ser ideais, como o número e as formas geométricas, e neste caso dão lugar às ciências matemáticas; e finalmente podem ser valores, como o justo, constituindo o Direito, o numinoso e o santo, a Teologia, o bem, a Ética, o belo, a Estética, a coerência do pensamento, a Lógica, etc.

Mediante este critério, incomparavelmente mais rigoroso, poderia penetrar-se com maior confiança e algum êxito neste terreno inexplorado, mas precisamente porque não foi explorado e as minhas pessoais incursões não removeram ainda os primeiros tropeços com que esbarrei, sou forçado a apresentá-lo apenas como possível bordão ide jornada e não como" marco de itinerário já calcorreado. Excluídos estes critérios, um por confuso, outro por deficiência minha na respetiva aplicação, resta-me como recurso derradeiro o exame da procedência dos factos sobre os quais incidiu a atividade científica.

A atividade científica radicou sempre nos factos, urnas vezes na respetiva pureza imediata e virginal, noutras, refletidos já na mente humana e que se reexaminam ou fazem regressar à pureza natural. O primeiro caso é, por exemplo, o do físico, o do astrónomo, o do histologista, quando observam, sem venda nos olhos, as coisas e os fenómenos, debruçados sobre o aparelho de registo, o telescópio ou microscópio; neste caso, os factos, que andam sempre mais ou menos vagabundos e errantes pelo nosso dintorno, à espera que uma mente sem preconceitos os acolha com a hospitalidade do amor e da crítica, ao serem acolhidos adquirem sempre significação e às vezes dão ensejo a que se alargue, retifique ou modifique o nosso conhecimento da realidade. Além de vagabundos, os factos, como as coisas, são estruturalmente brutos, tão brutos que consentem que deles se digam todos os dislates imagináveis; por isso, nem só o homem, por natureza animal vário e inconstante, o que faz a sua glória e também a sua insignificância, tem história, pois as coisas também a têm, visto que o que foram ontem, em alguns casos, como na astronomia, na física, na química, não o são hoje, e é possível que o amanhã no-los apresente com feição diversa. Descobrir esses factos vagabundos, que andam por aí, corno o cão do Poeta, sem pagarem imposto nem usarem coleira, e decorá-los com o fulgor da inteligência e do sentido, é privilégio do génio e da invenção científica; há, porém, outro caso, mais modesto e nem por isso menos útil e necessário, em que os factos estão nos livros, isto é, já foram apreendidos e vistos por outrem, e convidam apenas a que os vejam de novo em ordem a possível retificação, ou melhor compreensão.

Como vedes, encontramo-nos perante duas grandes vias da atividade científica: a que se orienta para a descoberta do novo, e a que se dirige para o exame do já sabido, com o fim de contrastar as opiniões estabelecidas ou de simplificar as explicações ou demonstrações apresentadas.

Destas duas formas de atividade foi a última a que dominou na nossa Universidade quinhentista, como aliás em toda a Europa.

A ciência da natureza, como hoje a compreendemos, é a criação do século XVII, o século do Génio; os homens de Quinhentos, admiráveis por tantos aspetos, orientaram o esforço supremo da inteligência no sentido de expurgarem o saber da crosta de erros e equivocadas interpretações que a Idade Média tolerara, regenerando-o nas fontes puras e sempre vivas da ciência helénica. Por isso, se designa de Renascença o século XVI, e a designação, embora orgulhosa, é apropriada para nos sugerir a sensação que o homem de então teve de renascer para uma vida do espírito, que, de certo modo, se havia interrompido. Se esta foi a índole do século, se o saber condensado nos livros da Antiguidade Clássica se tornou o saber dominante entre nós, cumpre agora, naturalmente, atentar na morfologia que este ideal científico revestiu em Coimbra.

Cronologicamente, acode desde logo a separação de dois períodos, balizados pelo estabelecimento da Universidade em 1537.

No primeiro, anterior portanto à trasladação da Universidade de Lisboa para Coimbra, a atividade intelectual coimbrã tem como centro propulsor o mosteiro de Santa Cruz, cujo senhoria mental acompanhou o crescimento político da nossa Pátria desde o seu alvorecer e cuja influência nunca foi talvez tão profunda e intensa como nos anos imediatamente anteriores a 1537.

São vários os factos que inculcam este juízo, sobrepujando-os a todos a produção da sua oficina tipográfica privativa, cuja atividade máxima corresponde ao ano de 1536. Nesta produção avultam, sem sombra de dúvida, os livros de organização monástica e de exortação à vida contemplativa, mas descobrem-se também os indícios do novo ideal científico, do qual o estudo das línguas sábias foi a um tempo condição essencial e prévia manifestação. O conhecimento do latim, do grego e do hebreu, volvera-se, como não podia deixar de ser, em saber, autónomo, e a mera função instrumental que as Escolas medievais lhe haviam concedido enobrecia-se agora com o prestígio insuspeitado da inteligência crítica restituindo os textos religiosos, literários e científicos à prístina pureza. Deste incipiente ideal científico desentranhava-se imperativamente a constituição de uma ciência das palavras, de cuja desenvolução, por seu turno, iriam brotar as ciências, às quais, por comodidade e em contraste com as ciências da observação, chamarei do papel, isto é, ciências em que a colheita dos factos inexplorados cede o lugar à compreensão ou nova ordenação dos factos já conhecidos e arquivados nos livros. Com efeito, o mosteiro de Santa Cruz, pelos anos a que me referi, revela-nos esta atitude mental precursora do ideal científico que irá presidir ao labor universitário; da sua oficina há quem diga, o que aliás se me afigura duvidoso, que saiu em 1532 um Dicionário Greco-Latino, da autoria de Heliodoro de Paiva, e em 1535 e 1536 saíram respetivamente as Instituições de Gramática Latina, de D. Máximo de Sousa, e uma edição das Epístolas, de S. Jerónimo. Antes da trasladação da Universidade, Coimbra, acusa, pois, a manifestação da nova ciência filológica ou das Humanidades, base do saber coevo e germe do ideal científico que percorrerá o século.

Com a trasladação da Universidade, o que em Santa Cruz fora germe e manifestação incipiente adquire vigoroso impulso, dilatando-se e complicando-se; basta atentar na conceção e nas realizações do Colégio das Artes, expressão suprema entre nós da mentalidade humanista, e na estrutura do ensino e do labor científico. Era sobre textos que descansava o ensino de todas as Faculdades; o mestre era lente, no sentido preciso da palavra, porque a sua lição consistia numa leitura seguida de comentário ou de explicação, e era pela vastidão e prontidão do saber dos livros que se apreciava o mérito dos candidatos e se glorificava a inteligência. Esta estrutura mental e esta metodologia tinham necessariamente de produzir comentadores; e com efeito é o que vemos na Teologia, com Fr. Martinho de Ledesma, com Fr. Francisco de Cristo, com Fr. Heitor Pinto, o patriota intransigente cujos comentários aos Profetas renovaram o estudo da Escritura pela agudeza crítica e pela erudição das línguas sábias; no Direito, se me atrevo a um juízo, com Aires Pinhel, Manuel da Costa, etc.; nos Cânones, com Martinho de Azpilcueta, Gonçalo de Cabedo, etc.; na Filosofia com o Curso dos Conimbricenses, e na própria expressão dos ideários políticos e pedagógicos, como o Espejo dei príncipe christiano, de Francisco de Monçon, e a Institutio Sebastiani, de Diogo de Teive, inspirada na Ciropedia, de Xenofonte.

A medicina não se furta ao signo intelectual dominante; não são porventura comentadores António Luís, Henrique Cuelhar, Tomé Rodrigues da Veiga?

A simples indicação destes factos, nus e crus, pode gerar talvez a ideia desoladora de a Universidade quinhentista ter sido um vasto cemitério de obscuridades e de inúteis canseiras, mas esta ideia, se acaso acudiu ao espírito de quem me ouve, é falsa. Para a desterrar, bastará atentar na estrutura do ideal científico de então, essencialmente um ideal de restituição que não de criação original, e no conjunto de certezas inabaláveis que davam confiança ao espírito e não atormentavam a mente com as inquietações da problematicidade. Todos os mestres, quaisquer que fossem os objetos dos seus estudos, coincidiam na mesma conceção do Mundo, na aceitação dos mesmos valores vitais e morais, na adesão à mesma teoria da ciência, considerada como hierarquia de géneros e de espécies. Para todos e para cada um, Ptolomeu exprimira o sistema do Universo, Aristóteles ensinara a filosofia que tornava inteligível o Mundo, Justiniano compilara as normas supremas da vida jurídica, Galeno e Hipócrates estabeleceram as regras da vida sã e do restabelecimento da saúde, S. Tomás de Aquino sistematizara o que se devia crer e porque se devia crer. Toda a atividade vital se desenrolava dentro de quadros fixos; sabendo donde provinha, onde se movia e para onde marchava afinal, o espírito não sofria a inquietude problemática radical e a mente tinha apenas por norte e guia a compreensão do trânsito da vida.

Em todas as disciplinas se nota esta segurança na estabilidade do Mundo e da vida e na rígida fixidez do ideal da ciência; se excluirmos a Teologia, em nenhuma outra, contudo, é tão patente como na Medicina.

Os médicos do século XVI concebiam a sua ciência diversamente de nós. Para eles, o homem era o microcosmo, isto é, o compêndio em miniatura do Universo, ou macrocosmo; por isso, não podia estudar-se o indivíduo sem previamente se conhecer a estrutura do Universo. Do universal se deduzia o particular; assim, por exemplo, da teoria dos quatro elementos se derivava a dos temperamentos, e da dos temperamentos, por seu turno, se concluía para a dos humores. Neste encadeamento lógico de doutrinas, sucessivamente mais particulares, se formava a disciplina mental do médico, que ao aproximar-se da cabeceira do doente não saberia talvez observar, mas era capaz de explicar, a seu modo bem entendido, a génese e diagnose filosóficas da doença.

Desta atitude geral, desta carência de problematicidade profunda e prospetiva, o ideal científico tinha que ser um ideal de restituição aos cânones normativos do saber e de integração hierárquica da espécie no género, do particular no geral; como esses cânones ou tipos se encontravam retrospetivamente nos escritos clássicos, para a compreensão e explicação dos modelos antigos se volvia a atividade intelectual. Não se julgue, porém, que esta conceção retrospetiva da ciência foi inútil. Não. Sem dúvida ela não podia desentranhar o progresso, mas se o não desentranhou, preparou-o, purgando o saber de numerosos erros e superstições. Pensemos no passo imenso que representou a substituição da astrologia médica, por exemplo, pelas doutrinas de Galeno e de Hipócrates restituídas à limpidez primitiva, e na voga imensa das conceções médico-filosóficas de um Fernel, e veremos despontar o alvor do espírito científico. Eliminar erros representa quase sempre o primeiro caminho na descoberta da verdade, e não era porventura missão instante despojar o saber das superstições arábigas, tão vivazes ainda no primeiro quartel do século, e retemperá-lo na clareza harmoniosa do génio helénico?

Compreendamos, pois, o ideal científico da nossa Universidade quinhentista, sem confundirmos, no entanto, compreensão com adesão. Vivendo sob o império do livro, dir-se-ia que ela desconheceu a natureza, e em vez de ciência, fez erudição. Com estas palavras, aproximo-me de uma estrada difícil, e de um ponto crucial. Uma vez mais, tropeço com inúmeras barreiras; no entanto, inclino-me a pensar que, à exceção de Pedro Nunes, nenhum mestre defrontou a Natureza com ânimo resoluto e mente despreconcebida.

A história da ciência é em grande parte a história da observação da Natureza, porque a Natureza, apesar de constante nas suas manifestações, nem sempre foi vista da mesma maneira e com os mesmos olhos. Para a maioria dos nossos mestres do século XVI, como filhos da Renascença, a Natureza estava nos livros; bastava, portanto, lê-los e meditá-los, compreendê-los e explicá-los.

Não há ciência sem amor, e, tanto quanto posso penetrar na intimidade da emoção científica dos nossos mestres quinhentistas, sou levado a crer que eles não sentiram nem amaram a planta e o animal, a luz e o movimento, e só em dois sítios os seus olhos pousaram com inquieta curiosidade e amor de compreensão: — no mar largo e no céu estrelado. Faltou-lhes a simpatia cálida pelo que na Natureza há de vivo e próximo do homem, além de que o seu ideal da ciência e a sua conceção hierárquica e transcendente da realidade lhes impedia a imensa revolução mental, genitora da ciência moderna, de trocarem o porquê e para quê das coisas e dos afetos pelo respetivo como. Por isso, não tivemos físicos e naturalistas, e só àquela emoção do mar largo e do céu estrelado devemos, graças ao génio de Pedro Nunes, a ciência da navegação, com significação nova e projeção universal, e a teórica do céu, a qual, embora enquadrada no sistema ptolomaico, atingiu o máximo de clareza que o sistema desterrado por Copérnico comportava.

Volvamos a uma das ideias condutoras desta palestra, tão cheia de dúvidas e tão desprovida de resultados: a atividade científica tanto se pode exercitar na investigação e colheita dos factos novos, como na sistematização, clarificação e simplificação do já sabido. Não é, porventura, um esforço admirável e meritório o do mestre que torna acessíveis ao espírito ido aluno as descobertas e invenções penosamente formuladas pelos maiores génios?

É neste esforço que reside, talvez, o valor supremo da atividade científica da nossa Universidade no século XVI. Faltou aos seus mestres de então o que constituiu e constituirá a glória eterna dos grandes génios do século XVII— o repúdio do princípio da autoridade e a coragem de romperem com os quadros estreitos em que se movia o pensamento científico; mas na atividade divulgadora, na dedicação à nossa Escola, para a qual ambicionaram renome universal, no afã de colocarem a ciência ao serviço dos interesses vitais e permanentes de Portugal, deixaram-nos exemplos que são incentivos e modelos.


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