Os descobrimentos e a ação colonizadora dos portugueses como fatores do progresso científico e da civilização

Os grandes movimentos de ampla expansão política, quando trouxeram consigo o domínio de regiões e de povos remotos, deixaram sempre sulcos, mais ou menos profundos, na conceção do Mundo e no acervo do saber, quer negativamente, pelo que destruíram na ciência constituída, quer positivamente, pelos novos conhecimentos ou pelas novas orientações da atividade investigadora ou explicativa.

Assim, por exemplo, na Antiguidade, as conquistas de Alexandre da Macedónia deram impulso considerável à Geografia, revelando “os espetáculos de uma Natureza até ali desconhecida: montanhas ao pé das quais o Olimpo desaparecia, e desertos infinitos de areia e as suas miragens, animais nunca vistos como o elefante das Índias, o tigre real, o rinoceronte, o hipopótamo, o camelo, o crocodilo do Ganges, mares enormes e florestas de palmeiras e de ciprestes, horizontes pela primeira vez abertos à 'observação dos gregos e que alargaram o seu conhecimento exato”1.

Como é sabido, a extraordinária aparição de tão insuspeitados conhecimentos gerou novo ciclo da cultura helénica, no qual foram possíveis, a um tempo, a ruína de antigas explicações, como a teoria pitagórica da anti-terra, a constituição de uma ciência natural mais exata — recordem-se, apenas, os nomes de Arquimedes, Eratóstenes, Teofrasto               e, na esfera das conceções da vida, o sincretismo e a compenetração dos cultos gregos e orientais.

Na Idade Média, a sistematização científica levada a cabo pela Cristandade no século XIII mergulha algumas das suas mais fortes raízes nas consequências intelectuais da invasão árabe; porém, nenhum acontecimento desta natureza, depois da constituição da mentalidade lógica e da ciência helénica, sua incomparável e modelar manifestação, trouxe para a Humanidade tão fecundos resultados como os descobrimentos dos portugueses e dos espanhóis.

Como disse Humboldt, eles “duplicaram para os habitantes da Europa a obra da criação”  e suscitaram o movimento colonizador transoceânico dos povos europeus, cujas características, formas e consequências os definem como fenómeno histórico que, na frase de Cournot, “não teve nem jamais pode ter similar”.

Com efeito, quaisquer que sejam as nossas ideias sobre a unicidade, a irreversibilidade e a necessidade do acontecer histórico, é incontestável que foi um momento único, impossível de se repetir e do qual dependeu o curso ulterior de numerosos acontecimentos, aquele em que existiam ignorados dois terços do nosso planeta, e houve quem os tornasse conhecidos e lhes abrisse económica e socialmente o caminho da História e da Civilização.

Os prodigiosos acontecimentos da exploração da costa ocidental da Africa, a descoberta da América e as viagens de Vasco da Gama e de Fernão de Magalhães para só apontar as que mais feriram as imaginações, são, grosso modo, contemporâneas do movimento humanista de ressurreição literária da Antiguidade Clássica, da nova floração da arte, dos alvores da liberdade intelectual e religiosa e dos assombrosos progressos científicos no conhecimento do Céu e da Terra. Como disse Hegel, “estes três factos, a chamada restauração das ciências, o florescimento das belas-artes e o descobrimento da América e do caminho das Índias Orientais, são comparáveis à aurora que após largas tormentas anuncia de novo pela primeira vez um belo dia.

Este dia é o dia da universalidade, que irrompe por fim, depois da longa e pavorosa noite da Idade Média, aliás fecunda em consequências; é um dia que se caracteriza pela ciência, a arte e o afã de descobrimentos, isto é, pelo que de mais nobre e de mais elevado o espírito humano, libertado pelo Cristianismo e emancipado pela Igreja, apresenta como o seu verdadeiro e eterno conteúdo”.

É, quiçá, impossível isolar acontecimentos que tanto se enlaçam e implicam; a tentativa, porém, embora condenada previamente ao insucesso, não deixa de ser justificada, pois o simples bom senso adverte que assim como as feitorias e entrepostos acumulavam provisões, géneros, especiarias, etc., cuja nova circulação e distribuição transformou a economia europeia, inaugurando, como disse Marx, “a biografia moderna do capital”, assim também os novos espetáculos da Natureza e os diversos tipos humanos recém-descobertos geraram na esfera do pensar, do sentir e do desejar, novas ideias e métodos, novos valores e aspirações.

A contribuição suprema de Portugal para a civilização moderna, cujas origens são diversíssimas, verificou-se no terreno dos factos, ao colocar os espíritos perante novas e insuspeitadas realidades, que, a um tempo, arruinavam prejuízos e ideias estabelecidas, e estimulavam as inteligências para a ars inueniendi, cujos resultados científicos se tornaram particularmente notáveis sob os pontos de vista matemático e físico.

Eliminar erros e prejuízos equivale, pelo menos, a desbravar o acesso à verdade, e este foi, com efeito, o primeiro e mais retumbante resultado dos descobrimentos. As ideias geográficas acerca da África começaram a ruir, subitamente, com a passagem do Equador, e com este rasgo audaz os nossos pilotos articularam, ao mesmo tempo, os primeiros desmentidos à ciência oficial e aos prejuízos comummente admitidos. A inabitabilidade da zona tórrida, certas ideias sobre as dimensões da Terra, “o sítio do orbe”, as imaginadas proporções das massas líquida e sólida do nosso planeta, os horríveis monstros antropológicos e zoológicos, as lendas de ilhas fantásticas e de terrores inibitórios, tudo isto que obscurecia o entendimento, adulterava o juízo e entorpecia a ação, foi destruído pelos nossos pilotos com o soberano vigor dos factos indisputáveis.

Escreveu Pinheiro Chagas que o “serviço imorredoiro que Portugal prestou à civilização e à ciência foi o ter demolido a noção consagrada da zona tórrida inabitável, e que a prova de sobre-humana audácia que os Portugueses deram foi a de transpor sem hesitação os limites dessa zona tórrida”. Afirmações exatas, mas, se bem interpretamos os factos, limitadas, porque não foi apenas uma teoria mas uma vasta série de pretensas ideias científicas que morreu com os nossos descobrimentos quinhentistas. Os rasgos dos primeiros tempos henriquinos inculcam que o saber geográfico tradicional se tornara, pelo menos, dubitativo, despertando, talvez pelo alvorecer da Renascença humanista, os desejos de um saber novo; o espírito, porém, se é factor de determinação não o é de realização, e por isso impunha-se o acontecimento, ou conjunto solidário de acontecimentos, que suscitasse o novo curso da cultura científica e da civilização. É nos descobrimentos que radica, - em grande parte, este impulso vital de uma nova cultura, dado que os novos factos e as novas observações compeliam o homem de ciência a converter-se de erudito em sábio, de conservador do saber em investigador e criador de explicações mais coerentes com a realidade e mais eficientes na aplicação técnica.

Em todas as disciplinas começou, por então, o abandono do trivial e da rotina. Como escreveu Bacon, no Novum Organon (I, § XCIII), “cumpre ter presente a profecia de Daniel relativa aos derradeiros tempos do Mundo — Multi pertransibunt, et multiplex erit scientia—, cujo sentido manifesto é que (...) a descoberta de regiões desconhecidas, levada a cabo por tantas navegações de longo curso, ou ainda atualmente em prossecução, e os grandes progressos nas ciências terão lugar na mesma época”.

Com efeito, os horizontes do mundo terrestre e celeste, depois das viagens de Bartolomeu Dias, Colombo, Gama e Magalhães, alargaram-se surpreendentemente, e como disse Pedro Nunes em 1537, “tiraram-nos muitas ignorâncias e mostraram-nos ser a terra maior do que o mar, e haver antípodas, do que até os santos duvidavam, e que não há região que nem por quente nem por fria se deixe de habitar. E que, em um mesmo clima e a igual distância do Equador, há homens brancos e pretos e de mui diferentes qualidades. E fizeram o mar tão chão que não há quem hoje ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos ou sequer algum penedo que por nossas navegações não seja já descoberto”.

O conhecimento destes factos é possível que tivesse para o homem médio de então significado diverso do que nós hoje lhe atribuímos; em todo o caso, o aparecimento do exotismo, a satisfação e a gula dos apreciadores da boa mesa, transformada e complicada a arte culinária pela abundância das especiarias, do açúcar, e pela difusão de novos frutos, sementes e tubérculos, o encarecimento da vida, pela crise de abundância dos metais finos, a circunstância de as atenções se virarem para a Península no desejo de saberem o que portugueses e espanhóis haviam visto e COMO — tildo isto testemunha que o homem médio europeu sentiu claramente a transformação das condições da sua existência como efeito das navegações, cuja descrição o seduzia. Daí a existência das coleções de viagens (Ramúsio, Montalboddo, Cadamosto, Gryneo, João Temporal, Hakluyt, etc.) e de uma copiosa literatura geográfica, saída dos prelos de Paris, Lião, Antuérpia, Nuremberga, Basileia, etc., a qual, se não chegou a ser um género literário, foi pelo menos um domínio característico da produção 'livresca. Mediante esta literatura, propagava-se a nomeada de potentados, por exemplo, o Négus, o rei de Narsinga, etc., que a Idade Média desconhecera, e a existência de povos com aspeto e hábitos estranhos, muitos dos quais andavam nus, o que afetava as crenças no sentimento inato da vergonha; donde resultava que o homem médio, à medida que se ia inteirando dos acontecimentos geográficos, etnográficos e sociais, desprendia-se ida conceção tradicional da Humanidade, restrita, a bem dizer, à Europa e ao Mediterrâneo, para visionar uma conceção geográfica e politicamente mais larga, abrangendo outros povos e regiões.

Em regra, as mundividências que se popularizam universalmente não carecem de muitos propagandistas: um facto retumbante e decisivo, que abale as ideias estabelecidas e fira as imaginações, pode derramar rapidamente uma ideia normativa, mormente quando esse facto altera ao mesmo tempo o viver habitual. Na realidade, o conhecimento do que Montaigne chamava as “nouvelletés” do seu século ia de par com as modificações das condições do viver. A deslocação das grandes estradas marítimas e dos respetivos entrepostos e centros distribuidores, o acréscimo considerável do ouro e da prata, a especialização das ocupações, o alargamento do comércio, o aumento da produção, devido simultaneamente aos progressos da técnica e à abertura de novos mercados, a substituição da economia medieval e a respetiva conceção do “justo preço” pelo princípio da concorrência e ilimitado afã de lucro, tudo se conjugara para proporcionar a uma nova classe os ócios que a riqueza garante, e com eles certas perversidades morais, mas também, e talvez mais, os gostos delicados e elegantes, o cultivo desinteressado das belas-artes, o encorajamento e o mecenato das letras e ciências. Não é pois sem fundamento que o grande Humboldt escreveu no Cosmos (II, 361) ter sido “a partir desta época crítica que o espírito e o coração viveram uma vida nova e mais ativa, que ousadas aspirações e “teimosas” esperanças penetram pouco a pouco em todas as classes da sociedade civil”.

Vejamos, com concisão esquemática, nos planos da vida civil e da vida teorética, algumas das novas aspirações espirituais, a nosso ver direta e proximamente ligadas aos descobrimentos.

A era dos descobrimentos é sinónimo de audácia, de esforço, de violência. Como em raras épocas, o espírito do tempo favorecia o desenvolvimento dos caracteres individuais, ora impulsionando-os às empresas temerárias, desregradas e imorais, ora à realização de grandes e nobres pensamentos.

Pico della Mirandola, no De hominis dignitate, exprimiu admiravelmente esta nova conceção das virtualidades humanas, ao escrever que “os brutos são eternamente brutos, os anjos eternamente essências angélicas. Só tu, Homem, podes 'degenerar até seres um bruto, e regenerar-te e elevares-te até pareceres um Deus. Só a ti pertence o desenvolvimento incessante, só tu trazes em ti os germes de toda a sorte de vida”. Foi na Itália que nasceu esta nova estimativa antropocêntrica contemporânea dos nossos primeiros descobrimentos, ¡designadamente' em escritos de Gianozzo Maneti (1396-1459), L. B. Alberti (1404-1472), Marsilio Ficino (1433-1499), além do expressivo João Pico della Mirandola (1463-1494), e como todas as ideias fecundas e vigorosas propagou-se rapidamente, diversificando-se em novas e exuberantes manifestações, desde a teologia à política. Assim, é nesta conceção do homem como factor do próprio destino pela sua vontade e esforço, que, dentre outras implicações, radica a crítica do nascimento e da fortuna como geradoras da verdadeira dignidade humana, a reivindicação da história como progresso e a viragem da mundividência teocêntrica para a polarização antropocêntrica da vida. Na conceção tradicional, a idade de oiro existira nos primórdios da Humanidade, por forma que o fluir histórico se tornara 'sinónimo da marcha crescente para a decadência, isto é, o afastamento da perfeição originária. Com a nova estimativa, a conceção inverte-se: a perfeição da Humanidade projeta-se para o futuro, porque o desenvolvimento histórico traz consigo o acréscimo contínuo de valores e de realizações. Daqui a ideia de que a realidade não é dada, mas construída ao longo da marcha do espírito, e consequentemente uma nova problemática filosófica, a que o racionalismo e o empirismo procuraram responder, relativa à possibilidade da exis-tência de uma realidade objetiva, que transcenda a intimidade da consciência, na qual parecem situar-se e resolver-se todos os valores. Confiante no amanhã, porque não transportar para o plano das aspirações e realizações morais e políticas o espírito vigoroso e audaz que dera “ao mundo novos mundos?”

Nesta ordem de ideias, não surpreende que a pena de Tomás Morus, no libelo político e moral que é a Utopia (1516), tivesse incarnado num imaginário português, Rafael Hytlódeu (narrador de patranhas), a mis-são de revelar e descrever as instituições da cidade ideal, e que Rabelais, no Pantagruel (Liv. IV, c. XI), coloque Pietre Alvarez (Pedro Alvares Cabral) entre os famosos auditores (Heródoto, Plínio, Marco Polo, etc.) que escutam a descrição do mapa-múndi.


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