Os descobrimentos e a ação colonizadora dos portugueses como fatores do progresso científico e da civilização

Com efeito, no plano das realidades ideais, que não utópicas, cabe aos descobrimentos portugueses larga quota em certas conceções ético-políticas, que, no decurso ido tempo, transformaram a sociedade europeia. É que, mediante o conhecimento das narrativas da gesta dos dois povos peninsulares, como que se operara na mente de numerosos europeus a destilação de alguns tópicos, que se volveram em fecundas, senão explosivas, ideias-forças. Referimo-nos particularmente à ideia da unidade da raça humana e à conceção do “bom selvagem”.

A elevada e resgatadora noção do homem ecuménico, inerente à essência da doutrina e do apostolado cristão, não dissipara totalmente a crença na veracidade de certas notícias relativas à diversidade das raças, como as de Plínio na História Natural (VII, II) acerca dos antropófagos, ciclopes, arismaspes, lestrígonos, ciópodos, ofiógenos, andróginos, trispitamos, pigmeus e cimos, e mais próximo de nós, no século XV, as de Pedro d'Ailly, no Imago Mundi, referentes aos seres estranhos que viviam na índia, como os pigmeus, macróbios, agratos, brâmanes, carismaspos, cenofevros, etc. Os primeiros contatos com as populações recém-descobertas logo mostraram a falsidade de tais notícias; mas como frequentemente ocorre na história, insistente e teimosa, das crendices e superstições, ao lado do fulgor da ideia nova apareceu o fogo-fátuo da ideia velha. A ideia nova, ou mais precisamente remoçada, admiravelmente expressa por João Pico della Mirandola no Examen uanitatis doctrinae gentium et ueritatis christianae disciplinae com base nos nossos descobrimentos, e como que sancionada, se disso carecesse a doutrina cristã, em 1531, por Paulo III, ao proclamar que os índios são ueros homines.

A ressurreição da ideia velha por igual radica na nossa gesta: teve por teatro capital o Brasil e por seres singulares as amazonas, os canibais e os upupiaras (homem marinho). É ainda na literatura, direta ou indiretamente inspirada nas narrativas das nossas conquistas, que se filia particularmente o mito do “bom selvagem”. Sem pretendermos tomar parte no grande debate relativo à crueldade das conquistas castelhanas, nem tão-pouco examinar as diferenças de conduta de portugueses e de espanhóis, é facto que o europeu médio, sobretudo após a Brevísima relación de la destrucción de las Índias (1552) de Fr. Bartolomeu de las Casas, associou intimamente a conquista espanhola aos horrores da crueldade.

Os conquistadores extirparam as organizações sociais que encontraram e os seus cronistas são parcimoniosos no relato da vida política e religiosa dos indígenas. Os capitães portugueses não foram serafins, como é natural, mas, em geral, deixaram subsistir aquelas organizações e não raro deram a sensação da brandura, preferindo a captação à violência. Do contraste entre a crueldade do vencedor e a simplicidade ignara do vencido surgiu o mito do selvagem ingénuo e feliz nas delícias do idílico estado de Natureza, destruído ou corrompido, afinal, pelos civilizadores. Bem antes de Rousseau, o mito do bom selvagem, prefigurado sobretudo em torno do índio brasileiro, aparecia já com os traços da bondade natural e da simplicidade de costumes, como se vê particularmente no que Montaigne escreveu acerca dos canibais.

Na essência desta conceção, que por assim dizer hibernou no século XVII para recobrar vigor explosivo no século seguinte, vibram as teses de que a condição essencial da felicidade reside na docilidade às leis da Natureza, e que a ideia do progresso, uma das grandes ideias--forças da Europa dos séculos XVIII e XIX e de tão profunda influência no nosso País, é uma realidade natural. Se no plano físico os tempos modernos testemunhavam flagrantemente a passagem para o mais eficiente e para o mais cómodo, porque não admitir que tais passagens se verificassem também nos planos moral e político? Se a evangelização partia do dado de que o selvagem podia elevar-se pelo batismo a melhor estado moral e social, que obstava a que o próprio civilizado melhorasse o seu estado? Por isso, como escreveu Melo Franco, “a teoria do bom selvagem deu um sentido teórico mais consciente aos confusos sentimentos do individualismo revolucionário, que presidem e norteiam toda a elaboração do Renascimento”, e esta teoria filia-se, com dissemos, na mitificação do índio brasileiro.

Os descobrimentos não dilataram somente as fronteiras do mundo conhecido nem as conquistas criaram apenas novos interesses, novas honras e novos sentimentos, porque suscitaram ainda, e quiçá mais sensível e ostensivamente, modificações profundas no conhecimento do próprio mundo físico, nas quais radica em grande parte a modernidade. Como disse Bacon na Redargutio philosophiarum, «as descobertas das regiões do Universo e as da ciência reportam-se e ligam-se mutuamente por laços assaz fortes. Com efeito, as navegações e longínquas viagens revelaram muitos factos físicos, e poderão ainda proporcionar novas luzes à sabedoria e à ciência humanas e retificar pela experiência as opiniões e conjeturas dos antigos”.

Salta à vista que os descobrimentos e a ocupação de longínquas paragens criaram desde logo novos objetos de investigação científica, isto é, patentearam factos que destruíam ou modificavam o saber antigo ou implicavam a constituição de um saber novo, de raiz. Estes factos manifestavam-se, como é óbvio, no conjunto das manifestações da Natureza; no entanto, a mente dos séculos XVI e XVII foi particularmente impressionada pelos que afetavam a história natural, a matéria médica, com as correlativas possibilidades de aplicação terapêutica, a mecânica e, em geral, a física. Na origem deste extraordinário alargamento do campo da visão científica estão evidentemente a surpresa pelas revelações insuspeitadas e o gosto da observação da Natureza, pois não há ciência sem amor; mas é intuitivo que os factos não poderiam ser colhidos, interpretados e sistematizados cientificamente sem a clara ideia e o aperfeiçoamento da observação e da experimentação, servidas, naturalmente, por técnicas mais adequadas e rigorosas.

Foi esta também a época dos alquimistas, magos e charlatães, isto é, das imaginações delirantes que procuravam arrancar à Natureza surpreendente os seus segredos, de cujas vigílias aliás resultaram invenções práticas, de alta importância industrial, baseadas na força da água e do calor (alto forno). Começa, assim, uma história nova dos conceitos científicos e das técnicas do cálculo e da medida exata, para a qual contribuímos particularmente com a elaboração de tábuas astronómicas e com a invenção inicial do nonius, mas mais importante do que estes progredimentos foi o surto fulgurante e avassalador dos novos ideais científicos, que atingiram clareza e precisão nas mentes de Bacon, Descartes e Leibniz. A nova ciência, de que somos os herdeiros, cuja expressão mais alta entre nós, no século XVI, foi, sob o ponto de vista de ciência pura, o De crepusculis (1542), de Pedro Nunes, não imagina forças ocultas e não discute, como os aristotélicos, qualidades, mas associa o cálculo à experiência, e em vez de ambiciosas explicações universais estabelece de preferência problemas limitados, que procura resolver precisa e exatamente. Arquimedes foi, na aurora da ciência moderna, um dos grandes mestres da nova problemática e, sobretudo, do novo método, sendo de notar que em Portugal teve em D. Francisco de Melo, de quem Gil Vicente disse que sabia “ciência avondo”, um notável comentador, que, embora se houvesse limitado ao De insidentibus in humido, produziu um trabalho anterior ao de Tartaglia, o que lhe confere particular valor na história deste texto arquimediano.

Estas profundas alterações na índole da atividade científica eram lógica consequência da nova mundividência. É que com o desenrolar surpreendente dos descobrimentos, o europeu teve a sensação de que o Céu e a Terra se tornavam mais vastos; daí, insinuar-se-lhe a ideia da infinidade do Universo, que, sob o impulso genial de Copérnico, atingiu plenitude em Giordano Bruno. Além disto, a conceção organológica do Mundo foi cedendo crescentemente o lugar à conceção mecanicista da Natureza, e o pensamento, de idealista (realista) que havia sido em largo período da Idade Média, torna-se predominantemente nominalista, facto aliás sociologicamente conexo com o individualismo, que ostensivamente se manifesta na produção para o mercado livre, no estabelecimento da concorrência, em vez da taxa do justo preço, nas crescentes implicações da noção de responsabilidade individual em todos os sectores da vida social.

Do que breve e concisamente temos dito se conclui que, ao contrário \ da ciência medieval, essencialmente ars demonstrandi de um saber consolidado, a- assombrosa revelação dos novos factos, que o alargamento do espaço terrestre e celeste tornou patentes e sugestivos, impunha a ars inueniendi, prospetiva, isto é, em vez do doutor, o investigador. Por isso, de modo geral, a atividade científica, desde então, atribui predomínio à categoria da quantidade sobre a da qualidade, à da relação sobre a do ser, e em vez de procurar, como no ideal científico aristotélico-escolástico, a ordem hierárquica dos conceitos e das coisas, investiga as relações suscetíveis de expressão quantitativa, sob a noção de lei natural.

Salvo algumas exceções, à cabeça das quais avultam as notabilíssimas figuras de D. João de Castro e de Garcia de Orta, não foi aos descobridores, capitães e funcionários que se ficaram devendo as observações científicas. Preocupavam-nos e moviam-nos outros intentos menos desinteressados; mas é óbvio que, instaurando uma vida civil policiada e mais fácil e atentando no que poderia converter-se em fonte de riqueza ou de proveito, tomaram possível o progresso material e científico, designadamente na História Natural, em particular a aclimação de numerosas plantas úteis, cujo cultivo se relaciona com a distribuição do europeu pela superfície da Terra. Na medida em que o progresso depende da facilidade de cultivo e aproveitamento de alguns produtos naturais, é fora de dúvida que aos nossos colonizadores cabe uma larga quota, como pioneiros deste movimento de importação e transplantação de cultivos vegetais.

A influência dos descobrimentos e da colonização não se fez sentir apenas, como acabamos de ver rápida e esquematicamente, na mentalidade, nos conhecimentos, nas aspirações e nas condições materiais da vida do europeu; atingiu também as próprias tribos e povos, qe do anonimato em que vegetavam passaram a ocupar um lugar na história humana.

É esta influência difícil de apreender em muitos dos seus pormenores e na individuação concreta dos factos; cremos, no entanto, que, em síntese, a transformação sociológica (ainda em curso, evidentemente) do estado selvagem ou atrasado para um estado mais ou menos civilizado, se operou principalmente pela passagem das comunidades tribais a sociedades territoriais, pela substituição da técnica mágica pela técnica natural, pelo trânsito da mentalidade fantástica para a mentalidade lógica, pelo desterro do feiticismo supersticioso pela vida ético-religiosa. Esta obra imensa de dignificação tem atualmente a colaboração da Humanidade civilizada; não assim nos três primeiros séculos após as descobertas, pois foi criada, mantida e continuada exclusivamente pelos povos que haviam feito a conquista, entre os quais avultam os portugueses no que toca ao Brasil, à índia, à África e à China, onde a penetração revestiu subtis e maleáveis procedimentos, alguns de feição científica.

Não era na selva, na anarquia indomável dos instintos e sob o império terrificante do feiticeiro, que os nativos poderiam ascender a um estado social mais elevado; foi pela ação dos funcionários administrativos, dos missionários, dos homens de negócio e dos colonos, que surgiram em numerosos locais, sobretudo à beira-mar, os aglomerados de população sedentária, as lojas, armazéns e oficinas, as igrejas e as escolas, numa palavra, os instrumentos de civilização que converteram o selvícola num indivíduo trabalhador e consciente da própria dignidade, a tribo errante em cidade policiada, e tomaram possível, na América, o passo decisivo do regime colonial, politicamente minoritário, para,os Estados independentes e livres no exercício da soberania.

A  análise dos vários processos mediante os quais a colonização portuguesa dilatou, e está dilatando, o âmbito da civilização, exigiria longas e meticulosas investigações; na essência, porém, cremos que se resumem na aproximação, com o nativo, mediante a qual se lhe despertam necessidades, se lhe disciplina a energia no sentido da especialização do trabalho mais coordenado e rendoso, se lhe cria o gosto da economia, se lhe abre a inteligência. e a consciência para os altos e dignos valores morais cristãos.

Esquematicamente, a subida lenta para a,civilização é condicionada, psicológica e sociologicamente,,pela substituição da técnica local, rudimentar e de inspiração quase sempre mágica, por técnicas naturais de procedência científica, pela passagem, quase sempre forçada, do regime de associação familiar para,o de autoridade política, pelo trânsito, de imenso alcance,,da mentalidade pré-lógica para o de mentalidade lógica, em que o pensar assenta no, princípio de identidade e na ausência de contradição, e pelo batismo cristão como fecho e remate da formação de uma pessoa, com a densidade ética que a mais nobre palavra do vocabulário de todas as línguas encerra.

Como já notámos, esta obra civilizadora não foi possível, nem o será para as regiões ainda sob tutela, sem o contato do, civilizado com o íncola nativo, e é honra, glória e exemplo da colonização portuguesa ter postergado sempre, e em todas as latitudes, os preconceitos de raça: por isso, podemos dizer,que Portugal, se pelos,descobrimentos dilatou,o,espaço terrestre,e celeste, pela,colonização, quaisquer que tenham sido as inevitáveis violências e rapacidades, também dilatou o mundo,civil e moral, transformando o selvícola num ser prestante, sob o império dos únicos valores morais que dignificam o homem e constituem a civilização.

Bem merece, assim, o reconhecimento da Humanidade, tornando-se compreensível que a Justiça, imanente ou providencial, glorificasse o heroísmo dos nossos descobridores com a mais vibrante inspiração épica dos tempos modernos, o génio de Luís de Camões, e que a gesta da libertação civilizadora levada a cabo pelos nossos colonizadores no gentio indo e negro encontrasse no pincel de Miguel Ângelo, no Juízo Final, da Capela Sistina, a mais bela e eloquente apoteose.


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