O livro «contra os juízos dos astrólogos» de frei António de Beja e as suas fontes italianas

Após as famosas Ephemerides de Regiomontano, relativas aos anos de 1492 a 1506, e como que em sua continuação, João Stõffler e Iacob Pflaum publicaram em Ulm, em 1499, urnas tábuas para os anos de 1499-1532, com o título:

Almanach nova plurimis annis venturis inseruientia per Ioannem Stoefflerinum Iustingensem et Iacobum Pflaumen Vlmensem accuratissime supputata: et toti fere Europe dextro sydere impartita. No fim: Opera arteque impressiõis Ioannis Reger anno... 1499 idibus februariis he Ephemerides nove explete atque absolute sunt Ulme... In 4.° gót.

Com estes dois livrinhos iniciava-se um género de escritos da mais ampla e tenaz fortuna, designadamente entre nós, e a que, não sem razão, se tem chamado a enciclopédia dos humildes, pelos conhecimentos que ministrava —, ao devoto, a folhinha e o cômputo eclesiástico, ao marinheiro, a nota das marés e alguns informes astronómicos, ao viajante, a indicação das fases da Lua, ao agricultor, a meteorologia rústica, e a todos, as informações úteis do calendário. A crítica e o progresso científico depuraram e alargaram no decurso de alguns decénios o âmbito desses livros, como testemunha a Chronographia. Reportório dos Tempos, de Manuel de Figueiredo (Lisboa, 1603), mas os primeiros, quase sempre de astrólogos, por singular paradoxo, ao mesmo tempo que dissipavam o terror dos eclipses, apresentando-os como inofensivos fenómenos naturais, geravam por vezes novos terrores com vaticínios e prognósticos aziagos.

Foi o que ocorreu com o Almanach... de Stõeffler, sucessivamente reeditado por Pedro Lichtenstein, em Veneza, em 1506, 1507, 1513, 1518 e 1521. É que na tábua de Fevereiro de 1524 anunciava para 4-5 deste mês a conjugação de Saturno, Júpiter e Marte no signo de Pisces — acontecimento que na interpretação astrológica dos autores do Almanaque e dos seus sequazes prognosticava um dilúvio universal, porque em seu entender a conjunção provocaria o extraordinário arrefecimento da atmosfera e, por consequência, chuvas torrenciais.

João Stõffler (1452-1531), ou Stoflerino, como alatinadamente é por vezes designado, foi professor de Matemáticas em Tubinga e logrou nomeada no seu tempo, não só pelo Almanach como, sobretudo, nos meios científicos, pela Elucidatio fabricae usus que Astrolabii..., impressa pela primeira vez em 1513, e citada por Francisco Faleiro no Tratado dei Esphera y dei arte dei marear... (1535) e por Pedro Nunes no De crepusculis (1542). A autoridade que Stõffler disfrutava, robustecendo a credulidade astrológica então assaz espalhada e vigorosa, conferiu ao seu prognóstico foros de acontecimento sensacional, justificando-o uns como inelutável consequência de factos naturais, condenando-o outros como delírio de absurda crendice, e provocando, afinal, nas camadas populares de vários países o terror pânico.

Os pregadores, invocando a Escritura, esforçavam-se por demonstrar a impossibilidade de um novo dilúvio, os príncipes promoviam e custeavam refutações e críticas, mas não obstante a insistência das prédicas e a abundância das censuras não faltaram indivíduos que nos princípios de 1524, cautamente, transidos de medo, fugiram para os montes, refugiaram as famílias em barcos, acumularam provisões ou desperdiçaram a fazenda perdulariamente, pela inutilidade das economias e das privações.

Como é óbvio, o pavoroso vaticínio propôs de forma agudíssima e instante o problema do valor dos juízos astrológicos, e é sob este ponto de vista que ele importa à história da ciência e das ideias morais, dado que no progresso de espírito humano a eliminação de erros tem pelo menos a vantagem de preparar condições favoráveis ao estabelecimento da verdade. Não houve, a bem dizer, país da Europa Central e Ocidental que se lhe furtasse e não tivesse sido, de certo modo, teatro da luta entre a credulidade e o bom senso, mas foi na Itália, então luzeiro da civilização e intelectualmente preparada pelas Disputationes aduersus astrologiam diuinatricem... (1496) de João Pico de Mirandola, que surgiu o primeiro brado contra a legitimidade de tal prognóstico, soltando-o o filósofo Agostinho Nifo, logo seguido no seu país e noutros de vários imitadores e de contraditores.

Como testemunho da copiosa literatura relacionada diretamente com o prognóstico, coligimos o seguinte catálogo, que não tem carácter exaustivo, embora seja mais extenso que o organizado por Houzeau e Lancaster no t. I da Bibliographie générale de l'Astronomie (Bruxelas, 1887):

a) Itália:

- Avgvstini Niphi Philosophi suessani falsa diluuij prognosticatione, quae ex conuentu omnium Planetarurn, qui in Piscibus continget armo. MD. XXIIII. divulgata est. Libri tres ad Carolum primum diuino afflante spiritu Caesarem, semper Augustum.

No fim: Anno domini. M. D. XX. mense Februarii. impressum ac vitimo reuisum.

Temos presente a fotocópia desta ed., sem indicação de lugar; os bibliógrafos, porém, apontam as seguinte ed.: Florença, 1517; Nápoles, 1519; Florença, 1520; Bolonha, 1520; Augusta Vindelicorum, 1520; Roma, 1521; Bolonha, 1522.

— A. Nifo — De liberatione a metu futuri diluvii.

Venesa, 1523.

— F. M. Pietrasanta — Libellus in defensione astrologorum judicantium ex conjunctionibus planetarum in piscibus anni MDXXIV.

Roma, 1521.

— E. Celebrino — Dichiarazione perchè non è venuto il diluvio Dei 1524.

Venesa, s. d.

b) Alemanha:

— J. Virdung — Prognosticon super novis stupendis et prius non visis planetarum conjunctionibus magnis A. D. MDXXIV futuris.

Openheim, 1521. Craeóvia, 1522 e 1524.

- Expurgatio adversus divinationem a Ioanne Stoefflero, Tubinga, 1523. É resposta à crítica do Libellus consolatorius, de Tannstetter, adiante referido; foi a única resposta de Stõffler aos seus contraditores.

- Paulus de Middelburgo — Prognosticum ostendens anno MDXXIIII nullum negue universale negue provinciale diluvium futurum.

Forosempronni, 1523. Augustae Vin.delle,orum, 1524.

Trad:

Prognosticum beweisend dasse im Jahre 1524 kein Fluth entstehen wird.

Augsburg, 1524.

Fossembrone, 1524.

Prognostico. (Em italiano).

— J. Carion Prognosticatio und Erklerung der grossen Wesserung, auch anderer erschrockenlichen Würkungen, so sich gegeben nach Christi Geburt 1524.

Leipzig, 1522.

— [Anónimo] — Das Kain Sündfluss werd, auss der Hailigen Geschrifft probiert, wider die Astrologos die mit dann Gewãsser und Sindfluss fürgeben.

S. I., 1524.

c) Áustria:

— G. C Tannstetter - Libellus consolatoribus, in quo opinionem jamdudum animis hominum ex quarundam astrologorum divinatione insidentem de futuro diluvio et multis aliis hor-rendis periculis 1524 anni a fundamentis extirpare conatur.

Viena de Áustria, 1523.

d) Bélgica:

— T. Mons Quodlibet de significationibus coniunctionum superiorum planetarum quae erunt armo 1524.

Antuérpia, 1522.

— C. Scepper — Assertiones fidei adversus astrologos, sive de significationibus conjunctionum superiorum planetarum anni 1524.

Antuérpia, 1523.

e) França:

— Traicté composé par ung grant astrologue d'Allemaigne, pour adviser le monde du déluge épouvantable qui est à doubter de venir Pan 1524, selon la nature et constellation des planethes.

Troyes, 1522 (?).

Houzeau, I, 5547, diz que este opúsculo de 8 fls. em gótico, é ilustrado com “une gravure sur bois au verso du titre, et une autre à la dernière page représentant trois fous, avec la devise “tout vient a bien qui peut attendre”.

f) Polónia:

— Alberto de Crayna ou Alberto de Poznania — Judicium super conjunctiones planetarum tam superiorum quam inferiorum in signo piscium, anni 1524 in mense Februario venturas, in universitate cracoviensi laboratum.     

Cracóvia, [1522].             

— J. Plonisko — Indicium maius magnarum conjunctionum anno 1524 evenientium ad annos futuros quadraginta duraturum.

Cracóvia, 1524.

— [Anónimo] — Girus congressusque erraticorum syderum mensis Februarii futurus refellens penitusque sciolorum astrologastrorum iudicia ac prognostica funditus destruens, nuper ex astrologorum literatissimorum penetralibus cum sedulitate et diligentia erutus in lucemque datus.          

Cracóvia, 1524.

g) Espanha:       

Tomás Rocha — THOME ROCHA GOTTOLANI [de Gerona] digna redargutio in Libros tres Augustini nimphi Suesani, quos ad Karolum Cesarem scripserat, Burgos, 1523.       

Segundo Picatoste, Apuntes para una biblioteca científica española dei siglo XVI, (Madrid, 1891), n.° 686, “el autor se propone en este libro refutar ias opiniones asentadas por Agustin de Sesa (Nifo) respecto de ia conjunción máxima de 1524; y para esto analiza párrafo por párrafo su obra, contestando á todas sus afirmaciones”. 

Tomás Rocha, que era natural de Gerona, escreveu ainda, neste ano de 1523, contra a epístola de Fernando Encinas (v. infra) a seguinte:            

Epistola ad supremium S. C. R. M. cancellarium Ferdinandi Anzirdas tatua in astrologiam scripta merito reprehendens.               

Impressa juntamente com a Redargutio... e outros escritos em Burgos, em 1523.         

— Fernando Encinas — Ad illustrissimum excellentissimunque dominum Ferdinandum de Aragonia, Calabriae ducem Ferdinandi de Enzinas Epistola: quae comprobatur; vana esse quae vulgus astrologorum toti orbi comminatur; ex eo qui futurus es omnium planetarum conventus in signo Piscium, anno Domino 1524. De universali fere Dilluvio et tam horrendisque nobis tam infauste ominant: ex Alberto Pighio Campensi Astrologiae sincerioris restauratore.

S.1. n. d.

— [PEDRO SANCHEZ CIRUELO] Magistri Petri Cirueli in annum 1524 attentione dignum pronosticum.

Alcalá, 1523.

— [A. NIFO] Reprobacion neuvamente ordenada contra la falsa prognosticacion del diluvio que dicen que será el afio de 1524, por el ayuntamiento y conjuncion de todos los planetas en el signo de Piscis. Compuesta por el excelente filósofo Augustino Nifa, suesano. Vuelta de latin en vulgar castellano por Cristóbal de Arcos, Capellan dei reverendísimo y muy magnifico Sr. D. Diego Deza, Arcebispo de Sevilha.

Sevilha, s. d. Picatoste, 38

— Álvaro Gutierrez de Torres — El sumario de las marauillosas: y espantables cosas que en el mundo han acontescído.

Toledo, 1524.

Dentre outros assuntos, ocupa-se este livro de “la provechosa? muy cierta declaraciõ que se ha de tener acerca d'Ias opiniones que en el año de mil ? quinhentos ? veynte y tres fueron escritas”. Apud Picatoste, ob. cit., n. 366.

A vaga de pavor atingiu também a gente portuguesa, já sobressaltada pelo andaço da peste 5, produzindo os mesmos desatinos que no estrangeiro, e é de crer, dado o nosso génio, que no refluxo arrastasse alguns indivíduos para o ridículo das conversações e da praça pública, como parecem testemunhar Fr. Francisco de Monçon, no Libro primero del espejo dei príncipe cristiano, e Garcia de Resende, na estância 240 da Miscelânea:

Vijmos ha astrologia

 mentir toda en todo mudo,

que toda juncta dizia,

q em vinte & quatro auia

de auer deluuio segundo;

 & secco vimos ho anno,

& bem claro ho engano,

em q astrólogos estauam,

 pois dãtes tanto affirmauã

por chuuas auer gram daño.

Intelectualmente, porém, sem quaisquer notícias acerca dos pregadores e da maneira como procuraram sossegar os ânimos, parece que um único escritor português participou na vasta literatura acima referida, mostrando o contrassenso dos juízos astrológicos e, em especial, do prognóstico de 1524: foi o monge jerónimo Fr. António de Beja, com o “breve tratado” Contra os juyzos dos astrologos, impresso em Lisboa, em 1523, por mandado da rainha D. Leonor.    

Da sua vida pouco se sabe; os bibliógrafos, repetindo-se, informam que nasceu em 1493, em Beja, como o apelido indica e era então usual na ordem de S. Jerónimo, onde professou em 13 de Abril de 1517, no mosteiro de Penhalonga.

Como ele próprio declara no frontispício de um dos seus livros que iremos referir, teve o grau de licenciado, certamente em Teologia, pois foi grande a sua erudição na literatura patrística.

Escreveu os seguintes livros:

Traducção da Epistola de S. João Chrysostomo “Nemo laeditur nisi a se ipso”, Lisboa, por Germão Galharde, 1522, mas escreve Inocêncio: “(segundo Barbosa, ou 1523 conforme Ribeiro dos Santos, o Catálogo da Acad. e a Bibl. Lusit. escolhida de Salgado). 8.° — Desconfio que os três últimos apontados citaram também este livro, ou opúsculo, sob a fé e autoridade de Barbosa, e que nenhum deles o viu. Tal considero a sua raridade! Cumpre porém advertir que Ribeiro dos Santos na Mem. para a Hist. da Typ. Port. no século XVI a pág. 99 cita primeiramente a Tradução de uma Epístola de S. João Crisóstomo impressa em Lisboa, 1522. 4.°, de que indica um exemplar existente na livraria do Convento de Xabregas, com a nota de Único de que havia notícia em Portugal; e logo mais abaixo duas linhas copia a Tradução da Epístola por Fr. António de Beja conforme a descrevo acima por modo que parece a julgava diversa da que primeiro citou.

“N'este labyrintho de incertezas não ha fio que nos guie com segurança...” (Dic. cit., I, s.v.).

— Contra os juyzos dos astrologos.

Breue tratado contra a opiniam de algu?s ousados astrologos; q per regras de astrologia nõ bem entédidas ousam em publico juyzo dizer: que ha quatro ou clinico dias de Feuereiro do anno de. 1524. por ajuntamento de algu?s planetas em ho signo de piscis: sera grã diluuio na terra. Ho qual tratado pera consolaçam dos fiees: fez ? copilou de muytos doctores catholicos ? sanctos. ho licenciado frey Antonio de beja da ordem do bem auenturado padre ? doctor esclarecido da ygreja sam Hieronimo. ? foy per elle dedicado ? oferecido aa christianissima senhora ha senhora raynha dona Lianor de portugal. Aqui veram tambem q cousa he astrologia: ? os males erros ? causa sua incerteza ? pouca verdade: ? como se nõ deue dar fe em nenh?a cousa aos astrologos. Ho q tãbem manifesta per ditos ide muy antigos ? santos doutores. A qual obra se imprimio por mãdado de sua alteza.

No fim: Foy imprimida esta obra a louuor de deus e cõsolaçam dos fieys: nouamente em a çidade nobre de Lixbõa. per Germã Galharde ëprimidor, por mãdado da Serenissima e muito alta senhora ha senhora raynha dona Lianor, a sete dias de Março de mil e quinhête e vinte e tres annos.

(In-4.0 de 46 fls. em caracteres góticos).

O frontispício está enquadrado por tarjas, tendo na tarja inferior o nome de German Galharde; no verso, uma vinheta representando S. Jerónimo, com o leão; no verso da página final (46), cercada de tarjas, as armas de Portugal, também enquadradas por tarjas.

— Breve doutrina e ensinãça de principes: feyta p ho padre liceciado frey Antonio de beja da orde de sã hieronimo. Pero ho muyto poderoso sñor Rey dõ lohã de Portugal terceyro d'ste nome. A ql se emp'mio por mãdado de sua alteza. Cõ priuilegio.

Inocêncio, no vol. I do Dicionário Bibliográfico Português, acrescenta a esta descrição que transcrevemos, o seguinte, que tem importância por haver desaparecido o exemplar que ele teve presente: “Este título é impresso dentro de uma portada gravada em madeira, tendo na parte superior a esfera armilar. — No fim tem: Acabouse esta obra de emprimir em Lixboa per Germã Galharde aos quinze dias de Julho de 1525.— A que se refere uma Tauoa pera facilmente se acharem os capitulas e sentenças deste liuro. — Compõe-se ao todo de XXX folhas de letra gótica no formato de 4.° (e não de 8.° como tem erradamente o Catálogo da Academia, e a Bibl. de Salgado). No verso da última folha tem outra gravura em madeira que ocupa toda a página, com as armas portuguesas.

“A descrição que dou deste livro, também de extrema raridade, foi feita com todo o cuidado à vista do único exemplar que dele conheço, o qual tendo sido noutro tempo dado de presente a Monsenhor Ferreira Gordo, passou por morte deste para a mão de D. Francisco de Melo Manuel da Câmara, e agora existe muito bem conservado na Bibl. Nac. com os mais da livraria daquele célebre bibliófilo”.

— Memorial de pecados. / [Brazão do bispo de Coimbra.] Noua arte de confissarn (pera saber / cadah? dos mortaes dizer suas fraquezas: / confessar suas culpas) feyta per ho padre Li/cenciado frey António de Beja da bordem / do esclarido doutor da ygreja sam Hie/ronymo: per elle ofrecida ao reueren/dissimo senhor ho señor dom Jorge / dalmeyda bispo de Coymbra. [t. em car. gót.]

8.° — [fl. 44], assin. a f4. — 24. /. — car. gót. — s. t. corr. n. recl.

[fl. I v.° — 5] epist.— ded. do A. a D. Jorge de Almeida, dat. de 14. F. 1524; segue-se outra epistola do A. ao mesmo, até [fl. 6 v.°]. — [fl. 7] Cousas necessarias / ao confessor [...] — [fl. 44 v.°] [...] Impresso em Lisbõa per Germã ga/lharde aos xxvij. dias de Novembro. / Anno M.CCCCC. z. XXIX.

Inoc. VIII A, 2261; P. de Matos, p. 68; Viterbo. séc. XVI. B. Évora (ex. único?).

Ap[ud] A. J. Anselmo, Bibliografia das obras impressas em Portugal no séc. XVI (Lisboa, 1926), n.° 582.

Todos estes livros são de extrema raridade; do que nos ocupa apenas se conhece ao presente o exemplar que pertenceu ao escritor e bibliófilo Fernando Palha e hoje, por compra, enriquece a secção portuguesa da Harvard College Library, do qual obtivemos fotocópia, e o de Gama Barros, doado recentemente à Faculdade de Letras de Coimbra.

A raridade aconselhava a reprodução, que fizemos nas páginas do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra (vol. XVI) e em separado (Coimbra, 1943), não fosse dar-se o caso de total desaparecimento, como parece ter-se dado com outros escritos do autor; mas para além desta razão impôs-se-nos o valor subsidiário deste livro para a história do desterro da astrologia, da sensibilidade religiosa e do exame cabal de um dos argumentos de Teófilo Braga acerca do ano do nascimento de Luís de Camões.

Cientificamente, é de escasso alcance, porque as suas páginas não brotaram da conceção naturalista do movimento dos astros e nem sequer inculcam que Fr. António de Beja soubesse manejar a esfera armilar ou o astrolábio plano e, consequentemente, fosse capaz de examinar os juízos astrológicos na medida em que podem implicar ou converter-se em problemas matemáticos.

O seu mérito capital reside na circunstância de fornecer elementos para a reconstituição do ambiente intelectual e religioso do paço de D. Leonor, a Rainha velha, cujos validos, mantenedores da tradição italianizante dos tempos de D. João II, parece terem dado ouvidos atentos às ideias e aos apelos de João Pico della Mirandola e de Savonarola. Sob este ponto de vista, ilustra ainda uma fase da atividade de Gil Vicente, cujas conceções teocêntricas, de apologeta e predicador medieval, e atitudes antiastrológicas se compaginam com as da obrinha de Fr. António de Beja no combate à superstição e no anelo da reforma pela instauração dos mandamentos de Cristo.

O Contra os Juízos dos Astrólogos é, pois, um escrito essencialmente teológico. Fiel à tradição de alguns Padres da Igreja e dos doutores escolásticos, fortemente influenciado por alguns livros dos alvores da Renascença, especialmente as Disputationes aduersus astrologiam diuinatricem, de João Pico della Mirandola, saídas à luz pela primeira vez em Julho de 1496, o erudito frade jerónimo repele os prognósticos astrológicos por contrários à conceção cristã da Providência Divina.

Se o universo é criação de Deus e Deus é livre, a influição astral é evidentemente incompatível com a liberdade da vontade divina e a astrologia judiciária um contrassenso, dado que os respetivos juízos só são conciliáveis com a conceção aristotélica do primeiro motor impessoal e imóvel ou com a teoria da ação fatal dos movimentos celestes. O Contra os Juízos dos Astrólogos é, pois, obra de uma mente de formação medieval, para quem a autoridade valia como argumento decisivo e se compraz, consequentemente, na exibição erudita. Não surpreende, por isso, a abundância de citações de autores e de livros, designadamente o Antigo e o Novo Testamento, Heródoto, Xenofonte, Diodoro Sículo, Aristóteles (Meteoros, De coelo et mundi, Política, De generatione, Livro da Boa Fortuna [De secretis secretorum?]), Alexandre, intérprete de Aristóteles, Ptolomeu (Centilóquio, Almajesto, Apotelesmatum, Quadripartito), Plotino, Porfírio, S. Jerónimo (Dos Varões Ilustres), S. Gregório Magno, S. João Crisóstomo (Super Mathaeum), Lactâncio Firmiano (De origine erroris), Metódio, S. Ambrósio S. Agostinho (De civitate Dei, Super Genesis, Sermo de iudicio), S. Isidoro de Sevilha (Eitmologias), Alberto Magno (Da Propriedade dos Elementos), S. Tomás de Aquino (Summa Theologica, De sortibus), Duns Escoto (Sobre o 2.° das Sentenças), Pedro Comestor (História Escolástica), Flávio Josefo, Avicena, Albumassar, Alcabicio, Avez Narram (Ibn Ezra), Averrondam, Roger Bacon, Petrus Alliacus (D'Ailly), Guilherme, bispo de Paris (Compendiam Theologicum), Rodericus (Speculum), Bonato, Altisidiorense (In II Sententiarum), Henrique de Assia, Gregorio de Modica, João Pico della Mirandola (Disputationes in astrologiam), Agostinho Nipho (De falsa diluuii prognosticatione).

Da antiguidade grega aos fins do século XV, sem esquecer o contributo de alguns árabes e judeus, é apreciável o elenco das citações, mas erraria grandemente quem visse em cada uma delas a expressão direta da leitura ou da consulta pessoal. que Fr. António de Beja, dando aliás reiteradamente o seu a seu dono, transcreveu para as suas páginas numerosos períodos alheios, de sorte que muitas das suas citações, e precisamente algumas das que mais acreditariam a sua erudição, são meras transcrições de outrem. Leu e meditou, sem dúvida, os Padres da Igreja, em especial Santo Agostinho e Santo Isidoro de Sevilha, estudou São Tomás de Aquino e Duns Escoto, mas a literatura judeu-arábiga e os escritos dos escolásticos do séc. XV só os conheceu de segunda mão. A lista real das suas leituras dista, pois, das aparências? Até onde?

A resposta cabal exigiria a investigação minuciosa de todas as fontes literárias, mas a menoridade científica e filosófica da obra não merece tais fadigas e aplicações; baste-nos, por isso, a indicação das duas que consideramos capitais e que pela origem merecem ser acentuadas.

Fr. António de Beja fala na “parisiana ciência” como expressão suprema do saber; é, possivelmente, uma frase feita, ou pelo menos, vulgar na gente culta do Portugal seu contemporâneo, em contraste com a realidade que o seu livro testemunha, pois os escritos em que fartamente colheu ideias, citações livrescas e factos não são de autores franceses, mas da pena de dois italianos: Agostinho Nifo (1473-1546) e João Pico della Mirandola (1463-1494).

Cabe a João Pico a influência capital, saliente em toda a obra; no entanto, pode dizer-se que na primeira parte do seu livro, Fr. António de Beja teve especialmente presente o escrito de Agostinho Nifo já citado, De falsa diluuii prognosticatione, e na segunda, as Disputationes in astrologiam do famoso conde de Mirandola.

Compreende-se que assim haja sido, dado o objetivo peculiar das duas partes, pois se na primeira procurou invalidar o prognóstico do dilúvio para Fevereiro de 1524, na segunda mostrou as razões por que “se não deve dar fé” à astrologia, de um modo geral.

Na primeira parte colocou-se, por assim dizer, no terreno dos factos, quer se interpretasse o prognóstico como vaticínio de um dilúvio universal, quer limitado a Portugal, e consequentemente a sua argumentação carecia sobretudo do socorro de um livro que concreta e precisamente contraditasse o prognóstico. O livro que preferiu, se é que chegou a conhecer outros, foi o de Nifo, a quem chama “grã filósofo e matemático de nossos dias”. Cita-o expressamente três vezes, mas além destas citações expressas colheu nele várias ideias e sugestões, designadamente a distinção entre “dilúvio cósmico” e “dilúvio provincial” que Fr. António de Beja concretizou na hipótese de um dilúvio restrito ao nosso País.

Dos diversos capítulos que constituem o livrinho de Nifo, e que reproduzimos pela raridade da obra e para confronto com a tábua de Contra os Juízos dos Astrólogos, Fr. António de Beja atentou particularmente nalguns dos livros I e II.

Entre os autores citados por Fr. António de Beja e que mais acreditariam o seu saber filosófico e das línguas clássicas conta-se “Alexandre, intérprete de Aristóteles”, isto é, Alexandre de Afrodísio; a citação, porém, não corresponde a consulta pessoal, pois é tradução sem referência à obra de Nifo, como testemunha o seguinte paralelo:            

“Segunda razã: sentença com? he em astrologia por que se diz. nunca vir, nem ser feyto diluuio sem alg? ajfitamento: ou disposiçam çelestial que aja poder de ho fazer: a qual sentéça fauorece Aristoteles em ho fim do seu. j. liuro dos methauros. onde afirma ser feito diluuio ? que poode vir: quando a virtude celestial assi se ordena. Como jaa veo ? esteue: quãdo foy algú anno muyto ynuemosso na terra: a qual cousa entã sera: como expõe?  declara Alexãdre ho enterpretador de aristoteles: quãdo vier têpo ordenado cõ tal disposiçam ? fado que aja poder de fazer grãde inuerno. ? lançar muytas chuivas”.

Secundum astronomos quidem, nam diuulgatum est in omni Astronomia, nunquam diluuium factum esse quin aliqua coelestis coniunctio vel dispositio illud effecerit, cui Aristoteles clarissime astipulatur in fine primi libri Meteororum, dum asserit fieri diluuium, quoties redierit virtus illa coelestis quae magnam illam hyemem fecit. Vbi Alexander optimus Aristotelis interpres asserit fieri magnam illam hyemem, cum venerit tempus eo facto dispositum, quod vim habet hyemem efficiendi.

(Pp. 4-5).

(Cit. ed. de 1943, p. 27)

Na “grande obra do Conde mirandolano”, como apelida as Disputationes in astrologiarn de João Pico, Fr. António de Beja encontrou, porém, mais amplo e copioso arsenal de ideias e de factos que no livro de Nifo, pois dela traduziu numerosos períodos, resumiu páginas, colheu opiniões de autores, citações de livros e, o que mais importa, esquemas lógicos e ideias gerais.

As citações deste escrito famoso, cuja significação histórico-filosófica é assunto de controvérsia, são relativamente frequentes, mas cumpre não esquecer que além das citações expressas, as quais se reportam aos livros I, II, III, V, VI, VII e XII, há ainda numerosas traduções de períodos sem referência à obra e ao nome de João Pico. Assim, como exemplo e testemunho do processo de composição literária do nosso autor, atente-se no cap.: Põe ho dicto de auicena ? outros ? j?tamete profecias da escritura sagrada.

 (Cit. ed. de 1943, p. 96).

Os primeiros períodos, da linha 1 até pág. 97, liv. 3, são resumo de um passo do Liv. 1 das Disputationes (I); as linhas seguintes até pág. 98, 1. II, parecem originais, mas logo os períodos que começam na linha 24 e vão até à linha 35 da mesma página são tradução não declarada, como mostra o seguinte paralelo:

este nome astrologo nõ se acha expresso na sagrada escriptura. mas segundo a diuersidade dos têpos tomou esta supersticiosa… arte ? seus seguidores diversos nomes / antigamète se chamauã chaldeus ? gethnealiticos: ? no tempo de santo augustinho. se diziam mathematicos. ? planetarios: agora em toda a parte os nomeã por este nome astrologos: ? em lugar daquella palaura que meu padre hieronimo: pos adiuinadores. staa em hebraico chesem. de quem diz avenazrra astrologo: que he palaura comutit a todos adiuinhadores. mas propriamête falando he nome de astrólogos…

(Cit. ed. de 1943, p. 98)

... Negue enim nomen astrologorum usquam in sacris literis. Nam et ipsa habet uarias locutiones, et uarias uariis temporibus superstitio ista appellationes sortita est. Olim enim Chaldaei et Genethliaci, Augustini temporibus ma-thematici et planetarii, nunc astrologi passim uocitantur. Quod eutem Hieronymus et eo loco, et alibi plerunque transtulit diuinos, in Hebraeo est chesem quod Auenazra ipse, quanquam astrologus, ait, hoc est quidem commune omnibus diuinantibus, sed pro-prium magis nomen astrologorum Hieremiae illud quis ignorat?

                (P. 425, da ed. cit.) 

Podiam repetir-se até à saciedade exemplos semelhantes, com o denominador comum da intercalação de frases alheias no corpo da redação original; no entanto, a dependência literária e intelectual de Fr. António de Beja em relação às Disputationes in astrologiam não significa identidade de atitude e comunidade de pontos de vista com o que pode chamar-se, apesar da impropriedade, a filosofia de João Pico.

A uníssono dos contemporâneos, que admiraram maravilhados o saber e o talento do conde mirandolano, mas desconhecendo porventura que Inocêncio VIII o havia condenado por herético em 1487, o que aliás Alexandre VI levantara em 1493, Fr. António exaltou-o também como “varon alem de sua nobreza dino de louvor por sua sciencia e muy honestos custumes (que poucas vezes em pessoas de tanto sangue se acham juntas)”. Isto explica o crédito que atribui às Disputationes e a confiança intelectual e religiosa com que leu as suas páginas e se apropriou de numerosos conceitos e informes; não obstante, o nosso frade jerónimo não foi intelectualmente um discípulo de João Pico.

Fr. António de Beja foi exclusivamente um sacerdote que acima de tudo procurou mostrar a impossibilidade teológica da sujeição do homem e do mundo ao fatum. Em rigor, não negou o determinismo astral, pelo menos como expressão da ordenação do cosmos, e se verbera e repele o juízo astrológico é porque a astrologia destrói e parece suprir o sentimento de que todos os seres dependem de Deus, desterrando das almas a confiança na vontade divina. Assim, pela singeleza de raciocínios, está longe da conceção de João Pico, na medida em que esta é expressão da confiança no poder do homem e assenta na impossibilidade de conciliar a liberdade espiritual com o fatum e de explicar o superior, isto é, o espírito, pelo inferior, isto é, o corpóreo.


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