Capítulo IV

Em que se responderá à dúvida: se pode a areia mostrar ao navegante exatamente o que se pretende, ainda que não corra sempre com a mesma igualdade por razão da variedade do peso.

“Para que se entenda mais facilmente esta dúvida é necessário que advirtamos o que ela supõe, e juntamente o que pretende provar.

“Supõe primeiramente que a areia corre mais depressa quando a âmbula de cima está mais cheia do que quando está mais vazia. Esta suposição parece quão está bem fundada porque quando há mais areia em cima também há mais peso, e quando há mais peso e não há impedimento, parece que o corpo pesado deve de caminhar para baixo com mais pressa. Pelo que admitimos a proposição não examinando por agora a verdade dela.

“O que agora pede a dúvida é que se a dita areia corre com mais pressa quando o relógio está cheio que quando vai para o cabo, não pode a operação ser exata. Porque mais areia correrá em uma hora que em outra, e pelo conseguinte despejar-se-á mais parte do relógio agora que depois, e assim mostrará o relógio que os graus que o Sol anda em uma hora são maiores que aqueles que anda na outra, o que tudo é grandíssimo inconveniente a esta dúvida que alguns têm para se não ter solução se responde ainda que corresse (o que não concedo pois Arquimedes o nega também) mais areia em uma hora que em outra, por razão do peso da outra areia, que tem sobre si e que se descubra maior parte da âmbula em uma hora que em outra. Contudo não se segue daqui mostrar o relógio com as suas horas de mais areia que os graus que o Sol anda nelas são maiores que os graus que anda nas outras horas de menos areia como do cabo do relógio.

“A razão disto fica clara pelo modo com que no primeiro capítulo dizemos que se havia de examinar o relógio; o qual exame já se fez dando essa mais areia à primeira hora e menos às de mais areia, porém em tal forma e proporção que nem por cair mais areia se gasta aquela hora mais espaço de tempo do que o estava a hora em que caía menos areia.

“Como se tomássemos 2 relógios, ambos de uma hora, mas desiguais na grandeza e areia, o que suponho levar um alqueire de areia, que corra por um buraco de um anel; e outro que leve doze dedais dela, que corra por um buraquinho feito por um alfinete. Não há dúvida que acabarão ambos juntos de correr, pois suponho serem iguais e de uma hora, sem por isso o de mais areia gastar mais tempo que o de menos areia. Logo bem podem as horas medidas com mais areia serem iguais às medidas com menos areia. E pelo conseguinte serem (como na verdade são) iguais aos graus que o Sol anda em umas horas aos que anda nas outras.

“É bom advertir-se neste lugar que para não haver dúvida no erro do repartimento das horas e seus graus, no que toca ao maior espaço ou menor de cada hora, que as tais horas se vão apontando por um relógio que seja duma hora perfeitamente; e se for possível fazer-se um relógio que tenha somente a 15ª parte de uma hora, por este se podem dividir os 15 graus que o Sol anda em cada hora com muita perfeição”.

b) de João Andrade Corvo, in: Linhas Isogónicas no século XVI, pub. em apêndice à sua ed. do Roteiro de Lisboa a Goa, de D. João de Castro (Lisboa, 1882, pp. 392-398):

“O segredo de Cabot  ocupou por muito tempo a imaginação dos navegadores e dos cosmógrafos, até que veio a reconhecer-se que no mesmo lugar geográfico a declinação varia com o tempo, como já antes se tinha reconhecido que no mesmo meridiano terrestre nem sempre se encontrava a mesma declinação.

“Humboldt diz que Alonso de Santa Cruz “traçou em 1530, um século e meio portanto antes de Halley, a primeira carta geral das variações, composta é verdade com materiais bastante incompletos”. Referindo-se a uma época posterior, conta o padre Kircher no seu tratado Magnes, que no seu tempo se atribuía ao padre Cristóvão Burro uma certa invenção para se conhecer a longitude por meio da agulha magnética, e que esta invenção burriana aspirava ao prémio de 500 000 ducados, prometido pelo rei de Espanha. Esta invenção consistia, segundo Kircher, “em traçar sobre uma carta geográfica, feita para este fim, as variações magnéticas observadas nos diversos pontos da Terra, e em traçar linhas pelos pontos de igual declinação, a que se dava o nome de “pontos caliboclíticos”.

“Este Cristóvão Burro, de que fala Kircher, não pode deixar de ser o jesuíta Cristóvão Bruno, que em 1628 escreveu em Lisboa um livro intitulado Arte de Navegar, no qual se ocupa largamente da maneira de determinar o caminho no mar, na direção de leste a oeste. A este mesmo autor alude Humboldt, designando-o pelo nome de Burro em vez de Bruno. O padre Bruno fez, com efeito, o esboço de uma carta de linhas de igual declinação, antecipando-se assim perto de meio século à tentativa análoga do ilustre Halley.

Entre os mss. da Academia Real das Ciências de Lisboa encontram-se certas instruções dadas pelo padre Cristóvão aos pilotos portugueses e espanhóis, onde se veem por ele próprio estabelecidos os princípios, que serviram de base à composição da carta de navegação de leste a oeste, e que ao mesmo tempo mostram a posição em que no seu tempo a agulha se conservava em certos lugares geográficos. As instruções do padre Bruno eram destinadas a retificar as linhas de igual declinação, que ele traçara sobre a carta.

“O padre Bruno pretendia inquirir “se a agulha varia numa certa proporção, conforme o que convém a esta ciência, tanto com relação aos marcos, isto é, às linhas em que a agulha está fixa, na verdadeira direção norte-sul, como fora desta direção que a agulha apresenta afastando-se dos marcos, de tal maneira que mostra com uma certa uniformidade uma variação tanto maior, quanto mais afastada está dos marcos. Tudo isto se acha indicado na nova carta de navegar mandada fazer por minha ordem».

“O padre Bruno queria conhecer os resultados do seu novo instrumento, destinado a observar a declinação e ao qual ele dava o nome de fixúmbrio. O mesmo padre Bruno dá-nos da carta que ele traçou uma notícia nos seguintes termos: “nós traçámos de novo marcos divididos em graus de uma certa grandeza, marcos sobre os quais nós dizemos que a agulha deve estar; achamos que para eles concorrem as direções das observações observadas até ao presente por Vicente Rodrigues e seus discípulos, e mesmo porque num destes marcos, o que passa a oeste das Flores, se encontram todos os pontos nos quais a experiência dos pilotos mostra que a agulha se conserva fixa. Parece pois que a razão nos mostra duas coisas: em primeiro lugar, que a agulha não deve estar fixa numa linha qualquer correspondente ao meridiano da carta, cortando o equador em ângulo reto (como se supunha até hoje, o que tornou impossível o conhecimento da proporção da variação da agulha), mas em outra linha mais aproximada da direção de nor-nordeste a su-sueste. Em segundo lugar, o que também deve ser certo, o raciocínio mostra-nos que a graduação, que nós traçámos sobre os marcos deve ser boa, porque não obstante a diferença dos graus de um marco para outro, e sobre o mesmo marco, do norte ao sul, todos os graus do lado setentrional são iguais entre si, do mesmo modo os do lado austral, o que é suficiente para que a proporção seja igual.

Num livro que conto publicar sobre esta matéria eu darei razão de tudo isto. Nós ajuntamos à nossa carta a indicação da maior diferença de longitude, ou da distância na direção de leste para oeste que se acha nas costas do Cabo da Boa Esperança, e que não está indicada nas cartas ordinárias; e achámos a prova disto nas experiências que eu próprio e os meus companheiros fizemos na ida e na volta da índia. Tendo nós passado, nessa altura, à vista da Terra por bastante tempo, e tendo caminhado ao longo da costa muito lentamente no navio S. Tomé à nossa volta, observámos todos nesta ocasião, que esta parte da Africa é bem mais larga, que o que se vê nas cartas...”.

“O padre Bruno tinha uma tal confiança na variação regular das agulhas, que ele contava com isto para corrigir as cartas marítimas, que a experiência todos os dias mostrava aos navegadores serem inexatas, principalmente com relação às longitudes. O modo prático que ele recomendava aos pilotos para obterem esta correção era o seguinte: “Para se saber no mar o ponto em que se acha o nosso navio, basta-nos tomar com o compasso o marco correspondente às paragens, em que se navega, tantos graus quantos os da variação nordeste ou noroeste da agulha; tomamos a medida partindo do equador para o norte e para o sul, conservando o compasso assim aberto, fixaremos uma das suas pontas sobre o marco, na altura do paralelo em que o navio se acha; e com a outra ponta na direção de leste ou de oeste encontramos sobre o paralelo o ponto em que nos achamos”.

“Há quatro marcos ou linhas sem declinação, conforme as instruções do padre Bruno: 1.° o que passa perto dos Açores e que corta as terras do Peru e do Brasil; 2.° o que passa pelo cabo das Agulhas; 3.° o que atravessa a Pedra Branca; 4.° o que passa por Acapulco. Estas instruções falam também de outras variações que serviram de pontos de referência ao padre Bruno.

“Partindo de Lisboa para a índia oriental a declinação maximum para nordeste era no Atlântico de 22° 1/2. Passando o Cabo da Boa Esperança e navegando para Goa, por dentro da ilha de S. Lourenço (Madagáscar), achou-se que o maior grau de declinação coincidia com a latitude de Goa, duzentas léguas a leste da ponta da ilha de Socotorá.

Navegando por fora de Madagáscar a maior declinação da agulha para noroeste era de 22°1/2.

“Trezentas léguas a leste da ilha de Tristão da Cunha a declinação era de 4° leste, e daí até ao Cabo da Boa Esperança contavam-se umas 50 a 60 léguas. À vista da ilha de Diogo Rodrigues a agulha apresentava uma declinação de 20° oeste.

“O padre Bruno julgava, do mesmo modo que julgava Cabot e muitos outros, ter descoberto um grande segredo; e é esta a razão que o determinou a recomendar no fim das suas instruções aos pilotos: “por boas razões todos os pilotos são intimados sob o juramento de conservar tudo isto em segredo, de o não comunicar a quem quer que seja, nem de mandar tirar cópia alguma. E se um perigo qualquer fizer recear que estes papéis possam cair nas mãos do inimigo, devem ser lançados ao mar, a carta, as instruções e o instrumento respetivo”.

d) Notícias relativas às tentativas de Borri no sentido de alcançar o reconhecimento oficial do seu método de determinação da longitude pelo mapa das linhas magnéticas (Tractatus Chalyboclytici).

a) Em Espanha :

Segundo Sommervogel, ob. cit., Filipe III de Espanha ordenou que Borri fosse expor a Madrid as suas invenções baseadas na bússola, mas Ribeiro dos Santos escreve nas Memórias históricas sobre alguns matemáticos portugueses e estrangeiros domiciliários em Portugal ou nas Conquistas (in-Memórias de Literatura Portuguesa, publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa, t. VIII, p. 1 (Lisboa, 1812) p. 188), que apresentou o seu invento e respetiva traça “na Corte de Madrid, aonde foi pretender o prémio de cinquenta mil cruzados, prometido a quem primeiro desenvolvesse este nó gordiano, e posto que lhe fosse rejeitado naquela Corte o seu invento por pouco seguro e sólido”.

b) Nos Países Baixos:

No vol. IV (historicus et epistolicus) Operum (Amesterdão, 1699), de Gerardo João Vossio (1577-1649) encontra-se a seguinte epístola (pág. 34), que cremos ter passado despercebida até agora, pelo menos entre nós, e em cujas enigmáticas linhas lemos a tentativa de Borri junto do sábio holandês para fazer chegar o seu método baseado no mapa das declinações magnéticas ao conhecimento do Governo dos Estados:

…Borrio J. C.

Epistola familiaris

Hes terna die, Cognate optime, literas misi Amplissimo Dubletio inscriptas, ecce nana alteras, quibus Senatori Reigersbergio commendo negotium tuum. Ubi diem adscripseris, aliquid sigillo, quod impressimus, cerae subdes. Valde exopto, ut voti tui campos fias. Quod si pluribus scribendo existimabis me aliquid posse, tuum est isthoc mihi significare, qui paratior sum ad gratificandum tibi in quocun que negotio, quam tu sis futurus in poscenda opera nostra. Redditae mihi heri literae etiam ab socero tuo Amplissimo, cui, ut arbitror, nihil attinet hoc tempore respondere. Nam eadem reponerem, quae tibi scribo. Plurimam autem meo nomine salutem dicito; uti & socrui & con fugi & utrique ad fini, nisi alterum illorum Galliae adhuc tenent. Meus Isaacus post lustratam Britanniam, Galliam, Italiam, nunc de domuitione videtur cogitare. Postremae quas ab eo accepi literae Venetiis scriptae erant; sed addebat intra triduum se Mediolanum cagitare Genevam. Si Deus siverit, redibit ad nos ingenti Manuscriptorum Codicum necdum editorum supellectile instructus. Assidue pro ejus reditu vota ad Deum fundo: negotium etiam omne divino numini commito, quod solum novit quid expediat utrique nostri. Eo autem sollicitior sum, quod toties iam in liberorum flore novercam experior fortunam, si sic fas loqui Christiano. Vale charissime cognate.

Amstelodami clc                                                                               

Io c xlIII. Postr.

Id. Mart.             

Tuus omni officio,

G. J. Vossius

A data desta epístola inculca que este negotium de Borri foi posterior ao falecimento de Galileu, ocorrido em 8 de Janeiro de 1642, pelo que fomos levados a dizer, embora ignoremos a data em que Borri escreveu o Regimento..., que o sábio pisano apenas conhecera o método da ampulheta e não o dos “pontos caliboclíticos”.

Demais, além desta razão, as circunstâncias dolorosas em que consumiu os últimos anos de vida desterraram da alma de Galileu velhas ambições, que por largos anos o moveram. Como é sabido, depois de malogradas, em 1631, as negociações com o Governo de Espanha para que adotasse e premiasse o seu método de determinação de longitudes no mar, Galileu renovou-as junto do Governo da Holanda (vid. docs. respetivos na Ed. naz., XIX, pp. 538 e segs.), o qual se mostrou anos depois tão favorável que, em Abril de 1637, resolveu enviar a Florença uma deputação com o encargo de presentear o glorioso sábio com um colar de ouro. Com a prudência de quem sofria em forçado desterro as consequências da ousadia científica, Galileu recusou espontaneamente o valioso presente e as negociações que ele naturalmente pressupunha, indo, assim, ao encontro do inquisidor de Florença que de Roma recebera ordem (17 de Julho de 1638) para que os enviados holandeses não levassem avante a sua missão. Como diz Gino Lona no seu Galileo Galilei (Milão, 1938, p. 111), o insucesso destas tentativas induziram o sábio a novos estudos relativos à aplicação do pêndulo à medida do tempo, afastando-o, como pensamos, da curiosidade de saber o que faziam e pensavam os seus possíveis competidores.     

e) Informes e juízos do P.Valentim Estancel acerca da variação da agulha e da arte de leste-oeste:      

E sabido que nos sécs. XVI e XVII se admitiu a existência de uma relação constante entre as variações da agulha magnética em dois lugares e a respetiva distância de um mesmo meridiano. Com base neste pressuposto surgiram alguns métodos de determinação da longitude, designadamente o de João Baptista Porta (1540-1615) na Magia naturalis sive de miraculis rerum naturalium libri XX (Nápoles, 1589) e o de Guilherme Nautonier na Mécométrie (Paris, 1611), bem COMO numerosas observações. Na história deste tema tem seu lugar o P. Valentim Estancel, ou Stansel, que nasceu em 1621 em Olmutz, na Boémia, entrou para a Sociedade de Jesus em 1637, ensinou Astronomia em Évora, foi reitor do Colégio da Baía, no Brasil, e nesta cidade observou os cometas de 1664 e de 1665. Faleceu em 1705 e dos seus vários escritos, cuja relação se pode ver em Sommervogel, interessam ao nosso ponto de vista os caps. segs. do Tiphys Lusitano, manuscrito inédito da Biblioteca Nacional de Lisboa, F. G. 2264. 


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