Teófilo Braga

Teófilo Braga nasceu em Ponta Delgada (24-11-1843) numa família católica e monárquica — o pai batera-se por D. Miguel —, fez-se homem em Coimbra, terra de contrastes onde às vezes eles se fazem com as contrariedades que virilizam ou são feitos com os assopros e jeitinhos que ajudam a subir, doutorou-se em Direito (1868), o que lhe foi amargo e o deixou rabioso, e passou a vida em Lisboa, desde 1872, a prelecionar monotonamente no Curso Superior de Letras e a escrever sem parar num estilo desleixado até ao desalinho e às vezes pouco claro — “escuro como um prólogo de Teófilo Braga”, chegou a dizer-se.

Tombou fulminado, de pé, sem ais nem carinhos, sem padre nem médico, com a morte digna do seu orgulho e de um trabalhador da sua magnitude, aos oitenta anos (28-1-1924), contados quase dia por dia, e jaz nos Jerónimos, em túmulo cívico, na companhia das memórias imorredoiras da Pátria, que ele amou entranhadamente.

Fez-se por si, não viajou, pouco conviveu fora do lar, foi dedicado à mulher e pai extremoso. Foi um Homem, cuja única fraqueza parece ter sido a de se deixar morrer, e tanto se admirou a si próprio que pouco faltou para se adornar com a auréola da inspiração profética. Chegou a presidente da República, mas felizmente para Portugal, a cuja história literária devotou a vida, e para a República, de cuja religião era de há muito o pontífice máximo, presidenciou em escassas horas e governou em breves minutos, talvez os precisos para mandar à Academia das Ciências a conta de velhos ressentimentos, admirando-lhe os ministros e governados o conselho e o talento político com a veneração distante, e nalguns prudente, com que se admira o brilho de Vénus, a milhares de quilómetros.

Elevou-se a pulso, às claras, e como raros da nossa gente de letras, frequentemente versáteis como o catavento do símbolo, é exemplo de tenacidade, de concentração, de sentido de unidade —, e também de amor-próprio, quase felino, e de orgulho tão desmesurado que o pôs à beira de apresentar os lances e dramas da sua vida íntima e social — malquerença de madrasta, bolsa sem larguezas, insucessos de concursos para o magistério superior no Porto e em Coimbra, dissídios de opinião, perdas dos filhos, etc., etc. — corno acontecimentos sem par, de enormidade cósmica.

Soube o que quis e, sobretudo, quis o que soube ou lhe pareceu, a torto e a direito, e se esta harmonia do pensamento e da vontade, exuberantemente patenteada numa montanha de escritos e num punhado significativo de ações e de nolições, não mostra a flexibilidade do espírito, testemunha indiscutivelmente a pujança do talento e a energia da vontade.

Precoce, foi ávido de saber, e leitor insaciável, quase rato de biblioteca, nutriu-se principalmente de saber livresco, colhendo mais alento e estímulo nas opiniões alheias que na observação direta ou reiterada meditação —, o que o levou — honra lhe seja! — a passar a segunda metade da vida a tapar buracos e a corrigir disparates que pusera a correr na primeira metade.

Ao contrário de Gama Barros, que se isolou e retraiu para realizar no silêncio, quase secretamente, uma obra de escrúpulo e de exatidão impassível, que os contemporâneos só tarde notaram, Teófilo foi um escritor da praça pública, apaixonado até ao desaforo e às vezes vibrátil até à comoção, cujas páginas, sem o sorriso da ironia, obstinadas, brotassem da erudição, do raciocínio, da emoção, ou da idealização, sempre ambicionaram conduzir o português ao pórtico de nova era, mediante o conhecimento do passado da grei e a aplicação de uns tópicos de filosofia fácil, de início penteados à Michelet, desalinhadamente, com pente áspero, e mais tarde embrulhados no fraseado soporífero de Comte, em cuja filosofia se abasteceu como se fora conserva enlatada, isto é, sem cozinhado nem tempero de sua mão.

A pessoa, inteiriça, austera, com igual capacidade para o amor e para o ódio, reconhecido até à dedicação a quem o favorecesse e sobretudo lisonjeasse, desumano até à vileza no desforço ou no ataque, e a obra de poeta e de erudito, de historiador expositivo e de reorganizador social “sem Deus nem reis”, atearam uma e outra o incêndio das paixões, dado que buliam com a matéria supremamente inflamável e explosiva da Religião e da Política, as duas coisas que mais têm apaixonado o homem desde que habita a urbe e sem as quais não há verdadeira comoção pública.

Foi grande, quase único e incomparável, na exaltação nacionalista, como jacobino fiel ao dogma da soberania nacional, desde que em Coimbra talhou a ideologia política, mas o nacionalismo nascera-lhe na cabeça, que não na real gana. Não partilhou, por isso, dos prazeres e distrações do portuguesinho valente, sensível à alacridade vital da soalheira da praça de toiros e à provocação de certos tipos de vinho, fora o resto, mas visto de dentro, ninguém lhe leva a palma no amor ardido e chapado a Portugal.

Dos rapazes que em 1865 romperam com os poderes constituídos na Literatura e anos depois, já alguém e socialmente responsáveis, levaram o combate a outras zonas na ambição de orientarem o País e, porventura, de exercerem um poder espiritual de nova índole e culto, Teófilo foi o mais perseverante e o que mais próximo viu o triunfo, se de triunfo se pode falar em combates do espírito, que se conhecem tréguas ignoram o que seja a paz. Excediam-no alguns na penetração do talento e na pujança dos recursos literários, mas esses mudaram de ser e de parecer, a ponto de se poder falar sem equívoco nas três vidas de Antero, — a do homem novo, a do desesperado e a do sages —, na abjuração de Oliveira Martins, na reviravolta de Ramalho. Só Teófilo permaneceu fiel a si próprio e às ideias que assimilou e lhe serviram de bússola, de travesseiro e de arsenal.

Sensível à sugestão de outrem na fase de formação da personalidade, foi-o mais tarde à auto-sugestão, quando o atingiu também a febre programática de Comte, o maníaco genial da religião da Humanidade, e de Oliveira Martins, o pedante de talento, que acordava de tempos a tempos com projetos definitivos de salvação nacional, certinhos, sem pôr nem tirar, desde o da revolução socialista, em 1873, que ficou inofensivo, ao do borrão e “vida nova”, com César disfarçado de Rei, que foi fatal à Monarquia e o País pagou caro, como sempre se paga, e em toda a parte, e sem exceção, a abjuração do dever público e a Ordem do sabre, como outrora se dizia, maviosamente.

Nisto foi coincidente e assaz do seu tempo, mas que diferença dos demais no alento emotivo, sem o qual uma obra esmorece e falha! Patriota em toda a parte e jacobino no escritório, com a caneta na mão, não deu entrada na sua alma à emoção socialista, tanto mais que se habituou desde rapaz ao jeito natural de acautelar o dinheirinho na algibeira da direita, donde nunca o transferiu para a da esquerda. Ideias à esquerda, carteira à direita, foi o seu moto, que é o moto de sempre e de todos os que se fazem por si e sentem, como que visceralmente, que o socialismo, qualquer que seja o atributo que o especifique, há de trazer sempre, por intrínseca necessidade, o estrangulamento da iniciativa e o naufrágio da independência individual.

Enquanto quase todos os próceres coetâneos, como salvadores in berbis, especulavam diversamente sobre a decadência do País e alguns, com o lazer que os rendimentos e as sinecuras proporcionam, lançavam à terra a ideia de se obter a felicidade pública com o racionamento da miséria e com a asfixia da iniciativa individual pelo dirigismo omnipotente e metediço de umas teorias, Teófilo, que foi Pai extremoso, carecia de ganhar o pão e de garantir com a renúncia a pequenas despesas quotidianas a independência da velhice, contando apenas consigo próprio, pois nem sequer consta que haja sido sócio de uma associação de socorros mútuos, afirmou inquebrantavelmente os direitos da liberdade individual embora diste imenso, teórica e praticamente, do liberdadeiro Herculano, mestre venerando de liberais com a cabeça no seu lugar — e sacrificou tudo o que a civilização proporciona de passatempo agradável ao afã absorvente e obstinado de justificar a autonomia da consciência nacional e de construir o que julgava ser a expressão do génio da grei —, a História da Literatura Portuguesa, “uma das forças morais que sustentam a nacionalidade e autonomia de Portugal”, escreveu no volume de recapitulação dedicado à Idade Média.

O seu nome foi respeitado, as ideias discutidas, não tanto como conviria para benefício do autor e utilidade pública, a obra variamente apreciada.

Para o estudioso, de espírito científico, Teófilo foi o criador da História da Literatura Portuguesa, obstinado no teorizar e pouco escrupuloso no apuramento dos factos concretos, e o historiador panfletário da História da Universidade de Coimbra; para o homem médio, que trata da vida, lê jornais e é inclinado a acreditar no artigo de fundo, principalmente quando lhe é propinado no periódico do seu partido, foi um ser raro que se não cansava de escrever e de afirmar a consciência Irredutível de Portugal e as malfeitorias dos altos Poderes da Monarquia e da Religião Oficial; e para o homem da rua, o Júpiter venerando do hagiológio republicano, cujos escritos e falas lhe soavam como manifestos e profecias. Vieram depois destas opiniões, mais ou menos assentes e cristalizadas, os juízos interpretativos dos discípulos, ou mais exatamente de apologistas e fiéis in ecclesia theophiliana, entre os quais avultam Teixeira Bastos e Prado Coelho, e dos críticos, desde as páginas penetrantes de Antero e de Silva Cordeiro, passando pelas diatribes de Sílvio Romero e de Ricardo Jorge, até ao recente diagnóstico psíquico que Júlio Dantas proferiu na Academia das Ciências, aquando do centenário do nascimento, — pulcro, original, inteligente, e talvez com a possível parcela de exatidão em que a intuição do talento pode acertar nas horas felizes.

Após tantos e tão variados depoimentos e juízos, de fácil consulta os de índole laudatória pela diligência de Teófilo e dos seus admiradores, é tempo da razão serena ensaiar uma interpretação que se situe com perspetiva histórica, a todos compreendendo e aproveitando como matéria de facto. As páginas que se seguem, breves e concisas, de antigo leitor que fomos e de consulente que agora somos às vezes, não aspiram a tanto, porque visam apenas a tomar contato com a atitude metodológica e com algumas ideias gerais orientadoras do gigante da História da Literatura Portuguesa. Escrevo-as com ânimo isento, mas não indiferente, por haver feito a minha educação histórico-literária no cercado dos seus livros, superado o contraste que na juventude venerou em Teófilo o Mestre eleito, que me alentou o ingénito republicanismo e decidiu, na quadra em que se ergue o estandarte das convicções e das ambições, a fitar a história da cultura pátria como objetivo dominante do estudo, e no advento da maturidade, à medida que a experiência ensinava só haver uma maneira de fazer as coisas, que é fazê-las bem feitas, me levou a detestá-lo como encarnação diabólica do sectarismo e do desvario teorizador, relendo-lhe então as páginas que as incidências do estudo aconselhavam, quer para me instruir da fecundidade admirável de certas conceções, quer para me precaver contra os precipícios da imaginação delirante e da opinião preconcebida.

Nenhum livro de Teófilo tem a marca austera da exatidão ou a sigla alada da nitidez. Todos perdem em serem relidos e meditados e raros se furtam à impressão de haverem sido, por assim dizer, construídos às avessas —, os poéticos, por partirem do tema para a inspiração, a horas certas, das tantas às tantas, os históricos e sociológicos, porque em vez de partirem dos factos para as ideias, partiram de ideias gerais, de esquemas, de quadros, para os factos, pouco importando para o caso que as houvesse adquirido por intuição pessoal ou por assimilação de leituras.

Ele próprio o confessou amiúde, designadamente neste passo do proémio de um dos seus melhores livros, na riqueza do material, na contextura e na lucidez sugestiva de muitas interpretações e conexões -- O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições (1885): “Obedecemos sempre a um ponto de vista superior, fugindo intencionalmente da compilação material sem subordinação a um plano... O espírito humano precisa sempre de uma síntese, e é o que Bacon afirma na máxima: A verdade pode sair do erro, mas nunca da confusão”, — ponto de vista que procurou fundamentar no cap. da Autobiografia intitulado O poder do sistema, onde declara: “só muito tarde tive conhecimento desta noção fundamental, mas sem dar-lhe uma fórmula precisa obedeci-lhe por instinto”.

De instinto, com efeito, porque muito antes da assimilação do Curso de Filosofia Positiva de Comte, que para Teófilo foi decisiva e definitiva, já os seus trabalhos patenteavam exuberantemente a confusão da necessidade imprescindível de ideias gerais e de hipóteses corno fio condutor e obstáculo à dispersão com o espírito de sistema, que Voltaire vulnerou com certeira ironia nas Lettres philosophiques e algumas filosofias pluralistas procuram minar pela base. Claro que o espírito de sistema rasga perspetivas e alenta a fecundidade das explicações pela fácil integração do pormenor no conjunto, mas também não é menos claro que arrasta a razão lógica para a fatalidade do salto mortal da parecença para a identidade e para o inevitável fogo de artifício de problemas que não são problemas e de soluções que não são soluções.

Para quem nasceu com alma de discípulo, assimilar um sistema equivale intelectualmente a usar espartilho, ou por outras palavras, a sempre delinear com o mesmo tira-linhas e com a mesma falta de ar. Esquecido o sistema, vem o bafio e o envelhecimento da obra, mas sem o sistema poderia acaso Teófilo ter escrito tantos milhares de páginas e ter sido o polígrafo que foi?

Uma nobre e ardente ambição científica ou histórica, como a que o incitou, principalmente a partir do momento em que se decidiu a historiar a nossa literatura, se quiser legar obra sólida, cumpre que seja de construção meticulosa, aproximando-se tanto mais da perfeição, aliás inatingível dada a natureza do objeto da História e do pensar que o pensa, quanto a esquematização e as ideias gerais mais clara e irresistivelmente brotarem da correlação dos factos, ampla, severa e criticamente apurados.

Herculano é, sob este ponto de vista, o Mestre —, e Teófilo o seu antípoda, devido ao espírito de sistema. A ambos a Natureza fadou generosamente com a pujança do talento, com o vigor hercúleo no trabalho, com a altivez da personalidade, com o amor sem limites à terra natal, com os dotes da sensibilidade poética, com as virtudes da coragem cívica, com a dignidade austera da conduta, e não obstante as obras de um e de outro não se comparam na solidez, no alcance interpretativo e no sentimento da beleza. Parafraseando a primeira ideia do Discurso do Método, de Descartes, pode dizer-se que nenhum excedeu o outro no lume natural da inteligência, só os tornando diferentes a circunstância de haverem seguido caminhos diversos na investigação, na estruturação dos factos, nas ideias condutoras e no pensar os próprios pensamentos.

Herculano foi o homem da investigação meticulosa e ampla das fontes e da respetiva interpretação nos limites razoáveis do bom senso; Teófilo, o leitor insaciável que, às vezes, se limitava a aproveitar os factos que lhe convinham e não todos os factos que cumpria ter presente, que amiúde utilizava com igual desembaraço, quando não no mesmo plano, a informação autêntica e o parecer de segunda mão, e que, fossem quais fossem os materiais, sempre enquadrava em esquemas prévios e correlacionava com ideias gerais preconcebidas. Revolveu milhares e milhares de páginas, estabeleceu conexões com penetrante sagacidade, fez generalizações mais ou menos precárias e fecundas, mas, no íntimo, foi homem unius libri, e os factos que refere e os juízos que sobre eles enuncia não podem ser recebidos com a ingénua confiança com que acolhemos os de Herculano e de Gama Barros. Por deficiência crítica ou miopia? Exclusivamente pela pressa de concluir, pelo salto da intuição clarividente para o juízo concludente, e, sobretudo, pela deformação inerente ao espírito de sistema, que é coisa muito diferente da necessidade racional da harmonia e da coerência.

A circunstância das ideias fundamentais e das traves mestras terem sempre a mesma aplicação, qualquer que fosse a destinação, visto serem antecipações e não generalizações, e de apenas variarem relativamente os factos — dizemos relativamente dada a constância da sua repetição — tornou de certa maneira fácil a fecundidade literária de Teófilo, ou mais exatamente a proliferação de páginas ou “bibliorreia”, no pitoresco dizer de Silva Cordeiro, boa mente de filósofo e, sobretudo, de crítico. Por isso, para penetrar no íntimo do processus mental de Teófilo e na urdidura dos seus livros, há que procurar o sistema, ou antes os reportórios de ideias consolidadas, mediante as quais conduziu a investigação, enquadrou os factos e lhes deduziu as implicações.

Uma obra vasta e polimorfa como a sua, cuja realização exigiu a aplicação de todos os instantes durante uma longa vida, não se explica apenas por pressupostos intelectuais, por índole pouco ativos; necessitou vitalmente de um forte sentimento dinâmico que a nutrisse. Teoricamente, este sentimento tanto pode ser o egotismo do escritor, como o dever de levar a cabo exigências epocais da cultura, a satisfação de propagar valores intelectuais, éticos ou estéticos, a ambição de atuar socialmente, a vaidade de ser falado ou o impulso irresistível de urna vocação profunda. No caso de Teófilo influíram todos estes estímulos, atuando uns solidariamente e outros separadamente, como a vaidade, porque se é certo que admirou devotamente a individualidade de outrem, como Camões, Garrett e João de Deus, não menos certo é que detestou passionalmente indivíduos como Herculano e Antero e se admirou a si próprio com delirante enlevo, organizando a própria propaganda (Instituto Teofiliano) e orientando o juízo dos vindoiros com escritos tendenciosamente afeiçoados, como esse inacreditável abecedário da presunção que se intitula Mocidade de Teófilo. Subsídios biobibliográficos para o estudo da obra de Teófilo Braga, Lisboa, Instituto Teofiliano, 1920.

Tudo isto é exato e de fácil comprovação, como é igualmente certo ter exagerado até ao despropósito as dificuldades económicas durante a escolaridade, só para erguer a personalidade voluntariosa; não obstante, seria ofensivo da verdade não ressaltar o sentimento patriótico como primitivo, absorvente e constante.

Portugal foi tema permanente da sensibilidade e do pensamento de Teófilo desde a estreia literária, aos quinze anos, com a poesia A Canção do Guerreiro (Janeiro de 1858), até à antevéspera da morte, em que ditara algumas páginas do “romance de um livre pensador”, Uriel da Costa, e anunciara ao editor do volume a recapitulação da História da Literatura Portuguesa dedicado ao Romantismo o envio próximo do capítulo relativo à apreciação da História de Portugal e da História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Herculano. Amar Portugal, estudar Portugal — “A nossa História é tão linda!”, exclamava muitas vezes encantado, refere um discípulo, (In Memoriam, 131), “Ah! se eu agora pudesse voltar à mocidade confinar-me-ia somente nas coisas de Portugal” —, reivindicar para o portuguesismo a plena autonomia política e cultural contra a absorção castelhanizante, designadamente de Menéndez y Pelayo, que entendia dever negar-se “a existência de uma literatura portuguesa distinta da espanhol, mas não a de uma rica e poderosa literatura regional irmã da castelhana e da limosina igual a elas em certos géneros e em alguns superior”, (Letras y literatos port., 1876), predicar a instauração do regime em que os Portugueses, instruídos pela Ciência, especialmente pela Sociologia, e guiados pela consciência histórica, pudessem organizar livremente a sua vida política e social sem compromissos nem transigências, como o regime da Carta outorgada — foram objetivos absorventes do seu infatigável labor.

Precedera-o a grande geração romântica do Liberalismo, a primeira a amar com espírito de cidadania a Nação como Nação, a separá-la de missões transnacionais, do Oriente ou do Ocidente, de Roma ou de outro meridiano, a querer-lhe como à própria alma, e a substituir — e com que nobreza, como os valentes que no exílio prestaram juramento a D. Maria II, então uma menina, que nem sequer era moça! — a fidelidade no serviço do rei pela lealdade ao monarca, isto é, ao penhor das liberdades públicas e do equilíbrio dos poderes. Se Herculano foi a expressão altíssima da nova consciência histórica, Garrett foi a personificação da sensibilidade que a nutria, e talvez por isso o espírito altaneiro de Teófilo se inclinou sempre perante o génio do Poeta e as mais das vezes com reconhecimento de investigador ao pioneiro de nova senda no estudo do povo português.

“A obra de Garrett deve ser continuada por uma geração moderna”, proclamava em 1865 nas Teocracias Literárias, com o tom imperativo a que cedo se habituou quando não falava na primeira pessoa, enquanto Antero, pouco antes, no manifesto da “questão coimbrã”, que é a carta Bom-senso e bom-gosto a Castilho, “o Tirteu dos merceeiros e uni Homero constitucional”, voando mais alto e vendo mais longe, liberto do “espírito de rotina”, da “banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias”, do feitiço dos que “adoram a palavra, que ilude o vulgo, e desprezam a ideia, que custa muito e nada luz”, reivindicava para a missão do escritor “o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato”. No ano seguinte, no início do seu quinto ano jurídico, já anunciava a Supico que estava “preparando para imprimir, logo que se me depare um editor, o trabalho do Cancioneiro e Romanceiro Geral Português, com uma análoga introdução histórica sobre a nossa poesia popular. É o primeiro passo da minha ambição literária, que se define em continuar a obra de Garrett, e completá-la no seu pensamento” (Mocidade de Teófilo, 257).

O interesse pela etogenia nacional, “compreendendo os Costumes, as Indústrias locais, Crenças e Superstições, Festas religiosas, Cerimonias funerárias e nupciais, Símbolos do direito consuetudinário, Jogos infantis, Adivinhas, Adágios, Colóquios e Danças dramáticas, Músicas e Canções, Novelas, Profecias nacionais, Cantos heroicos do Romanceiro, Literatura de cordel, Dialetologia e Lendas históricas”, como escreveu num dos seus melhores e mais duradoiros livros, O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições (Lisboa, 1885), cuja gestação se desenvolveu de 1867 a 1884, não remontava apenas ao exemplo incitante de Garrett. O lírico romântico apenas descobria o tema com a intuição afetiva do seu veemente lusismo, porque quem verdadeiramente lhe desvendou as perspetivas, rasgando horizontes inexplorados entre nós, foi Michelet. Salvo Vítor Hugo, que atingiu profundamente as nossas camadas populares, nenhum outro escritor francês exerceu tão vasta e diversificada influência durante uma ou duas décadas do terceiro quartel do século passado como o autor da Bíblia da Humanidade e da História da França. Do ensaio crítico à poesia, da conceção da História à visão sensível da Natureza, do culto do ideal à ação militante, não houve homem novo, na idade ou no pensamento, que se tivesse furtado à magia do estilo e à sedução das ideias do historiador romântico, poeta e panfletário, moralista e visionário.

Todos os rapazes que então passaram por Coimbra lhe ficaram devendo a vivacidade dos sentimentos humanitários, quando não algumas ideias orientadoras da conceção da vida. Antero e Teófilo mais que nenhuns outros —, a avaliar pelo que escreveram, já que nos escapa a influência, às vezes mais real e eficaz, dos que só atuam pelo diálogo, pelo conselho ou pela decisão. Um e outro sentiram tão íntima a presença espiritual de Michelet que ambicionaram o seu juízo crítico como máxima recompensa literária e prefiguraram a sua biografia como modelo de conduta, a ponto de se fazerem tipógrafos —, Antero, segundo dizem, em Paris, Teófilo, segundo ele disse, como suspeitamos —, para poderem dizer como o mestre na dedicatória a E. Quinet do Le Peuple: “... Moi aussi, mon ami, j'ai travaillé de mes mains. Le vrai nom de l'homme moderne, celui de TRAVAILLEUR, je te mérite en plus d'un sens. Avant de faire des livres, j'en ai COMPOSE matériellement; j'ai assemblé des lettres avant d'assembler des idées; je n'ignore pas les mélancolies de l'atelier, l'ennui des longues heures”.

Ambos veneraram com igual devoção “um dos primeiros e, porventura, o mais querido entre os mestres da nova geração”, escrevera Antero, em 1877, ambos receberam, talvez com igual vibração, o influxo das visões retrospetivas, de “profeta do passado”, da Bíblia da Humanidade, as audácias panfletárias, antiultramontanas, do Le prêtre, la femme et ia famille, que foi traduzido na nossa língua, as efusões humanitárias e o calor do sentimento patriótico do Le Peuple, mas cada um, à medida que se lhes acentuava a própria individualidade, colhia na vasta obra do escritor sugestões e estímulos diversos. A diferença ressalta nitidamente das páginas rememorativas e críticas que dedicaram a Michelet — Antero em dois ensaios breves, Teófilo num capítulo das Modernas Ideias na Literatura Portuguesa—, mas se a não tivessem mostrado tão claramente bastaria o testemunho inconfundível das Odes Modernas, da Visão dos Tempos e da Poesia do Direito.

Antero, poeta e filósofo, aprendeu em Michelet — ele o declara —, “o segredo daquele espírito renovador da História, ao mesmo tempo crítico, filosófico e político”, “a ver e amar na Natureza... uma alma e não um mecanismo ou uma abstração”, e o “critério supremo em que se combinam a filosofia e a experiência, e que consiste em marcar por limite ao espírito de sistema... as afirmações espontâneas da consciência moral”.

Teófilo, de tendências eruditas e sistemáticas tão absorventes e soberanas que nem a inspiração poética se lhes furtou, se acaso admirou em Michelet o apóstolo e o visionário, cativou-o acima de tudo o espírito generalizador do historiador e do apologista de Vico e de Grimm. É possível que o exemplo da Histoire de France, a que Michelet devotou a vida com indefesso labor, tenha sido um dos impulsos do vasto plano da História da Literatura Portuguesa, concebido na mocidade (1868?) e a cuja realização Teófilo também sacrificou com exemplar perseverança a sua portentosa atividade de estudioso. A biografia de Michelet parece ter sido o modelo de Teófilo durante a escolaridade coimbrã, o ideal de homem que ele desejou ser. A coincidência de alguns lances e sobretudo o teor dos informes autobiográficos assim o sugerem —, tal como a autobiografia de Antero sugere, irresistivelmente, a autobiografia de Eduardo von Hartmann na ordenação dos acontecimentos e sobretudo no ritmo das ideias e no surto das conceções.

Seja ou não exata a rápida incursão nos recessos psicológicos de Teófilo, feita aliás sem reiterada sondagem, é incontestável a filiação intelectual do futuro instaurador da História da Literatura Portuguesa no complexo de ideias de Michelet, ou talvez mais rigorosamente, nas conceções filosóficas e sociológicas de Vico e de Grimm, tão entusiasticamente divulgadas por Michelet. “No meio das tentativas de retrocesso da política europeia, Michelet foi sempre um revelador das mais avançadas doutrinas, escreveu nas Modernas Ideias na Literatura Portuguesa (I, 354-5); foi assim que ele soube incitar a atividade do pensamento que marasmava; vulgariza os trabalhos esquecidos de Beaufort e de Niebuhr sobre a História romana, descobre o método e a síntese histórica de Vico, fazendo conhecer a Ciência nova, reabilita a personalidade de Lutero tornando legíveis os trabalhos autobiográficos dos Tischreden, e por último tira da erudição inesgotável de Jacob Grimm a profunda poesia dos costumes sociais da raça germânica, nas Origens do Direito Francês. Estes estudos foram a preparação do homem de combate, e lhe deram a intuição das coisas humanas com que fez da história uma ressurreição. Sobretudo foi a Vico, que ele fez reviver perante a ciência moderna, que deveu a sua principal feição como intérprete da história; com ele aprendeu Michelet a ler nos factos aparentemente acidentais do passado; uma frase incidente de uma crónica dá-lhe a fisionomia de um personagem; um quadro, como o Naufrágio de Medusa, de Gericault, revela4he a Restauração; um símbolo jurídico dá-lhe a medida do respeito de uma instituição, finalmente ele tira a história de todos estes vestígios inconscientes e por isso inviolavelmente verdadeiros”.

Se como pensador, Teófilo teve a atitude mental do homem unius libri, unilateral, seguro de si, concludente, maciço, sem fendas por onde entrasse o ar livre da dúvida e da ironia, a filha delicada do sentido do contraste e da relativização, como leitor era também de boa boca, com insaciável e precoce insatisfação. Como Antera, embora com dimensões diversas, também poderia dizer, a par de muitos outros rapazes da sua geração, que em Coimbra se lhe varrera “num instante toda a educação católica e tradicional” e se achara “sem direção ao abandonar decidida e conscientemente a velha estrada da tradição”; e ainda acrescentar, como o poeta das Odes Modernas, que o “germanismo” lhe proporcionara também novas certezas metafísicas, ou mais exatamente crenças de nova índole. Por via diversa, porém, embora com o traço comum de ser um “germanismo” passado pelo crivo mental de alguns franceses — Michelet, Quinet, Vacherot, principalmente —, e restrito a contados alemães, Herder, Creuzer, Grimm e Hegel, traduzidos parcialmente em francês.

Enquanto Antero encontrava no Hegelianismo “o ponto de partida das especulações filosóficas”, dentro do qual se operaria a sua “evolução intelectual” —, entenda-se, espírito de coordenação sistemática tendendo para o idealismo absoluto e impregnado da ideia de evolução, ou melhor, de desenvolvimento, mas com insignificante aplicação do método dialético, o bastante em todo o caso para dar fisionomia insólita à prosa e ao ritmo das ideias das Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX —, Teófilo, apesar das reiteradas alusões à influência da Estética de Hegel, colhia o primeiro sistema de ideias condutoras, ou mais precisamente assentava alguns pontos das coordenadas da sua atividade intelectual na Filosofia da História da Humanidade, de Herder, mediante a tradução de Edgar Quinet, na simbólica de Creuzer e na lição sábia e incitante de Grimm, que Michelet recolhera e afiançara.

A investigação minuciosa das fontes, o apuramento crítico dos factos, o estabelecimento de problemas precisos e de âmbito limitado, condição essencial de avanços firmes e de generalizações consistentes, como que repugnavam à sua atitude metodológica, para a qual, como disse Oliveira Martins, “cada facto é uma ideia e o curso dos acontecimentos uma perpétua psicomaquia” (T. Braga e o Cancioneiro..., p. 12).

«A característica predominante do espírito de Teófilo Braga é o poder de construtividade”, escreveu Prado Coelho, e o juízo do dedicado panegirista é exato porque em vão se procurará na obra teofiliana a severidade crítica no estabelecimento dos dados sobre que assenta o trabalho intelectual e a firmeza da coerência lógica. Como a nenhum outro escritor, desde os tempos de rapaz, impôs-se-lhe a exigência íntima das revisões, refundições e recapitulações da própria obra, por vezes estruturais, como no caso da “raça moçárabe”, inventada, como penetrantemente viu Oliveira Martins (Camões e a sua Obra), como corolário da teoria de Schlegel sobre os antagonismos nacionais, isto é, a necessidade teórica da existência de uma raça oprimida para explicar o dualismo, ou antes antagonismo, da tradição ancestral e das influências eruditas e alienígenas.

“Vi-me forçado a inverter as bases da minha existência”, relata no preliminar da 2.a edição (1869) dos Contos Fantásticos, “abandonando a arte que me seduzira, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-me à crítica, à erudição, à ciência, à filosofia. Neste campo, os meus erros e exageros bem merecem ser perdoados. Só muito tarde é que consegui conciliar em mim estas duas tendências do espírito”. A par destes defeitos, tão inveterados que parecem congénitos, que assombrosa pujança no poder de efabular, de relacionar, de construir! Ninguém se lhe avantaja e raros o igualam — talvez só Oliveira Martins, que, mais artista, o excedia na capacidade de realização estética, e igualmente arrojado no opinar, foi seu parceiro no jogo metarreal do arremesso de teorias e na pressa de novo-rico de exibir quanto antes na praça pública, com sapatos de polimento, a última ideia lida ou sugerida.

Para quem assim nasceu dotado, as ideias, originais ou assimiladas, são pontos de partida, nunca termos finais ou de limite. Despertam o mundo latente de associações, incitando tanto os voos largos da imaginação como as correrias à solta do pensamento discursivo; por isso tais temperamentos, que sob certo ângulo dão a sensação do simulacro do talento e sob outro a de jorrarem originalidade e pujança criadora, são ordinariamente fecundos e exuberantes de aptidões, transpondo com assombrosa desenvoltura o abismo que separa a emoção alada da inspiração poética da severidade comedida do pensamento conceptual. São — ou parecem ser—, a um tempo, poetas e sábios, criadores e eruditos, investigadores analíticos e generalizadores de abstrações, mas, claro, o que ganham em fecundidade perdem-no frequentemente na consistência lógica. Impressionam, mas nem sempre convencem, e as suas obras, onde abundam os clarões repentinos, raramente conhecem a serenidade tranquila do que se não consome e perdura.

Teófilo foi desta estirpe, com tão nítida consciência e desvanecimento que se não cansou de falar na exuberância nativa das suas capacidades poéticas e científicas e de declarar, aliás, nem sempre com idêntica sinceridade, o que devia às ideias de outrem. Das numerosas referências sirva de exemplo a seguinte, na História da Universidade de Coimbra (IV, 519), por mais pertinente à quadra e ao assunto: “A leitura da Ciência Nova de Vico, das Origens do Direito Francês, por Michelet, revelando os vastos materiais da Poesia do Direito Germânico, de Jacob Grimm, abriram-nos um horizonte imenso para a compreensão do elemento sentimental das instituições sociais, e para o lado vivo e sério da tradição dos povos. A alma repassava-se nesse oceano de Poesia, fecundada sobreabundantemente para a erudição e para a idealização, levando à frente as duas empresas — a exploração do Romanceiro, Cancioneiro e Novelística populares portugueses, e a construção da Epopeia da Humanidade pela aproximação de todos os símbolos de cada povo ou civilização representando o esforço do resgate das fatalidades cósmicas e históricas até atingir a liberdade mental e social”.

Neste passo autobiográfico, ou mais rigorosamente autolátrico, acentuam-se duas ideias-forças, de certo modo conexas e de extraordinário potencial e desenvolução, a que Michelet imprimira o prestígio do talento e a sedução literária, “a linguagem a mais vibrante e alucinadora que se tem falado”, disse Teófilo nas Modernas Ideias (I, 352) —: a conceção da História como luta da Liberdade contra a Fatalidade, e a dos mitos, lendas populares, formas primitivas do Direito e da linguagem, constituírem fonte capital do conhecimento histórico.

A primeira destas conceções era uma “bela fórmula” (Mod. Ideias, I, 355). Subjacente ao ideário das Odes Modernas, notadamente ao poemeto À História (1865), incitou ao abandono da poesia subjetiva pela poesia coletiva, ou mais precisamente ao apostolado poético da redenção dos povos pela escalada da Liberdade, e penetrou até ao âmago da idealização poética de Teófilo, a ponto de o levar à expressiva coordenação das poesias posteriores às Folhas Verdes (1859) em três ciclos o da Fatalidade, o da Luta e o da Liberdade.

Da Visão dos Tempos, de 1864, no verdor da mocidade, à Visão dos Tempos, de 1894, na plenitude da maturidade, não foi apenas o título da sua epopeia cíclica da Humanidade que Teófilo conservou. Permaneceu fiel à conceção da “poesia da História como meio de reconstrução do ideal da Humanidade” (Autobiografia), tanto mais que a ulterior adoção do positivismo comteano firmara e alargara este pilar do ideário da juventude, assente ideologicamente na filosofia da história de Vico e de Herder e nas audácias sintéticas de Michelet e de Quinet, e esteticamente, nas perspetivas rasgadas sobre a Antiguidade pela Lenda dos Séculos, de Vítor Hugo, e pelos Poemas Antigos, de Leconte de Lisle.

Fora uma das ideias dominantes na roda avançada do seu tempo de Coimbra (Antero, Anselmo de Andrade, nas Epopeias da História, sem contar os minores das páginas das revistas) e que ainda atingiria Junqueiro e Gomes Leal. Ninguém como Teófilo a assimilou tão entranhadamente e lhe deu tão vasta, profunda e imponente idealização, mas também ninguém como ele afogou a chama da inspiração poética na torrente gelada da erudição. Disse Antero, nas linhas críticas (1864) da Visão dos Tempos, que “descer a todos os infernos, e voar a todos os paraísos, que a alma do homem tem atravessado, desde a hora primeira do seu génesis, não é trabalho de um livro, nem de um poeta”, — nem da índole da poesia, como Teófilo a concebera, deve acrescentar-se. “O livro da Visão dos Tempos, escreveu na Generalização da História da Poesia, que serve de prólogo à segunda edição (1869) deste livro, é uma recomposição animada e sentida dos argumentos frios e geométricos, a que chegaram os modernos iniciadores da ciência da história” e podia acaso brotar de tão gélida fonte a emoção poética?

Nem só pela matéria, erudita, pesada, abundantemente anedótica, pouco importando para o caso se anedotas reais, se espirituais, sufocara a criação poética; asfixiara-a ainda mais, logo à nascença, na própria alma do poeta, arrebatando-lhe o ar puro da subjetividade lírica.

Os rapazes do seu tempo, a que é de uso chamar-se a “Escola de Coimbra”, foram os primeiros que inverteram a relação entre o indivíduo e a sociedade estabelecida pelos românticos com rajadas de talento e de coragem, de armas na mão e com as misérias do exílio. Com eles — Antero, Eça, Oliveira Martins, etc. irrompe a mentalidade socializante, isto é, a ideia de que cumpre reformar primeiramente a sociedade para depois se atingir, como sequela, o indivíduo; por isso, coerentemente, por caminhos diversos mas coincidentes, atacaram o existente, nessas incomparáveis décadas do reinado de D. Luís, escarnecendo e vituperando o liberalismo da Carta Constitucional, que fora a condição vital do desenvolvimento e das manifestações dos seus talentos... Teófilo, embora avesso por índole às emoções socialistas, sofreu, não obstante, o contágio da então incipiente e agora crassa superstição, ligada aliás ao sentimento do advento de uma nova era cientificamente impessoal, acolhendo-a precisamente onde ela é fatalmente mortal: na alma do poeta, por essência única, pessoal, irredutível. “O desenvolvimento do século tirou-nos a individualidade, elevando acima do eu audacioso as leis eternas que o absorvem na contemplação da sua harmonia. Eis porque o lirismo e a poesia pessoal vão decaindo em todas as literaturas”, deixou consignado no Cancioneiro Popular Coligido da Tradição (1867), bastando a mera transcrição para explicar, sem mais razões, o malogro congenital da sua obra poética, copiosa — na edição definitiva da Visão dos Tempos, 3 partes, 13 cantos, num total de 1632 páginas —, erudita, imponente na vastidão das generalizações e na compreensividade dos símbolos, mas tão enlevada na evolução da Humanidade que nunca reparou no Homem concreto, nas suas lutas e anseios morais, tão prosaica na expressão e tão falha de sensibilidade artística, escultural, pictórica ou musical, que só prende a atenção como expressão epocal de mais uma corrente de ideias.

A outra conceção foi por igual fecunda e constante, devendo-se-lhe em parte a série notável dos estudos que Teófilo dedicou às tradições nacionais e à poesia popular, assim como o seu primeiro conceito da História da Literatura Portuguesa, por assim dizer embriogénico. Brotou, sem dúvida, do âmago da sua idiossincrasia, pois como observou penetrantemente Prado Coelho, Teófilo teve “alma fundamentalmente de etnólogo e de folclorista”, mas cresceu sob o alento de leituras e de escrúpulos. A meu ver, filia-se mediatamente na Scienza nuova d'intorno dalla commune natura delle nazioni (2.a ed. refundida, 1730) de Giambattista Vico, e nos Deutschen Rechtsaltertümer, de Grimm, imediatamente nas versões de Michelet e mais diretamente ainda na aplicação das ideias do filósofo napolitano e do método e da erudição do sábio germânico que o mesmo historiador-poeta fizera em 1837 nas Origines du Droit français.

Vico, pensava Michelet e com este Teófilo, havia iniciado “a inteligência das tradições” pela aliança da “Filologia e da Filosofia, base do método histórico-comparativo”, e “pela lucidez do génio compreendeu que a verdade das Tradições resultava da verdade dos processos psicológicos que a elaboravam e pelos tropos da linguagem emocional procuram recompor as Faculdades poéticas” (Mod. Ideias, I, 364-5). Por outras palavras mais simples e mais precisas: Vico procurou devassar o segredo da história humana, sem se perder na poeira dispersiva do acontecer, fazendo corresponder o desenvolvimento histórico da Humanidade às bases evolutivas do indivíduo, por seu turno momentos ideais da vida do espírito. “Gli uomini prima sentono senz'avvertire dappoi avvertiscono con animo perturbato e commosso; finalmente riflettono con mente pura» —, isto é, de início, a consciência dispersa-se, submergindo-se na particularidade sucessiva das impressões e afeções, depois começa a afirmar-se, isto é, a libertar-se da opressão do instante mediante a “fantasia”, surgindo então a linguagem, a poesia e o mito, e, finalmente, atinge o pensamento discursivo, lógico e universalista. “Gli uomini dei mondo fanciullo per natura furono sublimi poeti» e é esta reivindicação do primitivo, do “barbárico” e do pensamento alógico, mas criador, independente e irredutível à pura atividade intelectual, que constitui um dos rasgos mais originais do pensamento de Vico. Ultrapassando as fronteiras do racionalismo cartesiano, que antepunha a “crítica”, ou arte de julgar, à “tópica”, ou arte de inventar, isto é, de obter a matéria do juízo, e só conferia direito de cidade às verdades demonstradas, Vico descobria o mundo genesíaco dos mitos e dos símbolos, propunha a consideração dos factores antropológicos e psíquicos no estudo das instituições sociais e, sobretudo, erguia a ideia fecunda de que a Humanidade é história, isto é, os valores espirituais nascem e crescem mediante um processo autónomo de desenvolvimento.

Seduzido por estas conceções, que Michelet rejuvenescera com a tradução da Seconda Scienza nuova sob o título de Principes de la philosophie de l'histoire (1827) e cujo alcance tornara sugestivo em 1837, devido à aliança com a erudição dos Deutschen Rechtsaltertümer (1828), de Grimm, nos estudos de “biografia jurídica” a que pôs o título de Origines du Droit français, Teófilo assentou nelas o primeiro sistema das suas coordenadas intelectuais. “Foi na Ciência Nova, de Vico, declara na Autobiografia, que tive a primeira revelação poética dos Símbolos com que a Humanidade exprimiu com verdade as suas aspirações; Mitos e Fábulas, Alegorias, Tropos, Imagens, Lendas, Contos, são uma linguagem do sentimento que só o poeta moderno compreende, quando identifica sob a forma de Emoção a Síntese filosófica atingida pela inteligência”.

Nasceram neste clima, a que se não furtaram os próprios romancistas, como Balzac e Flaubert (Bouvard et Pécuchet), todos os escritos por Teófilo planeados, redigidos ou publicados até à adoção do Positivismo de Comte, circa 1873-76. À cabeça, a Poesia do Direito, de 1865, “livro de História do Direito no estado de sentimento”, no qual “sistematizava as ideias de Vico, de Jacob Grimm, de Michelet e Hegel, com uma ideia nova de evolução dos Símbolos materiais em fórmulas abstratas e Ficções de Equidade” (Mocidade de Teó filo, 233); depois, desenvolvendo e diversificando o anelo de perscrutar as origens do Direito e do sentimento estético-literário em Portugal, a impetuosa torrente de páginas sobre a Idade Média e o romanceiro; em 1867, a História da Poesia Popular Portuguesa, o Cancioneiro Popular coligido da tradição, e o Romanceiro Geral coligido da tradição, em 1868, a reedição de Gaia, romance de João Vaz, “acompanhado de um estudo sobre a transformação do romance anónimo no romance com forma literária”, a História do Direito Português—Os Forais, e a Floresta de vários romances; em 1869, os Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, e a Introdução à História da Literatura Portuguesa, cujo desenvolvimento levará a cabo, volume a volume, numa cadência impressionante de perseverança e de trabalho gigantesco.

Toda esta obra, realmente extraordinária por muito que lhe descontemos os erros, os arrojos e os paralogismos, jorra com igual impetuosidade da emoção poética e do interesse científico, orientado para o problema das origens. Teófilo o disse, numa das páginas mais belas e atraentes da Autobiografia: “Nesse estado de poesia, em que me elevei da emotividade pessoal à conceção e tentame da Epopeia humana, plano prosseguido ininterruptamente durante trinta anos, viemos a fecundar-nos no estudo das Tradições das raças, sob a direção de Vico. O que se me revelava com riqueza para a idealização poética, desdobrou-se na curiosidade científica das Tradições populares, que começámos logo a investigar sob o ponto de vista antropológico e etnológico. A minha situação de estudante de Coimbra em relação direta com uma mocidade de todas as províncias de Portugal, colocava-me em condições excecionais para obter os documentos do Romanceiro e Cancioneiro oral português. Assim das grandes Tradições humanas transitava para as Tradições nacionais; mas não acabava aqui a correlação estética. Essas Tradições nacionais, comparadas com a dos outros povos ocidentais levavam à determinação de um fundo comum de temas épicos e líricos; assim procurando o substratum dessa unidade tradicional éramos levados à determinação de um fundo antropológico comum, — a raça de que o Lusitano é representante, e a persistência étnica dos costumes, do velho politeísmo árico, que se manifestam já inconscientemente nos cantos, danças e poesias das festas populares. Por uma sucessão lógica destes germes tradicionais prosseguimos para a sua elaboração artística nas Literaturas modernas, concentrando todos os nossos esforços na construção da História da Literatura Portuguesa, especialmente. Assim como a Ciência Nova de Vico influíra para a compreensão do elemento tradicional, a filosofia de Hegel veio-nos interessar profundamente pelos fenómenos estéticos da morfologia literária; sobretudo na sua Estética e Filosofia da História encontrámos um novo impulso para alargar a nossa sistematização. Compreendemos a uma nova luz como a Epopeia da Humanidade era verdadeiramente uma Filosofia da História expressa por Símbolos pitorescos, e imagens objetivando sentimentos e estados de consciência. Pelo trabalho intenso da Epopeia humana e coordenação simultânea de uma História Universal, apareceu-nos em toda a sua nitidez o pensamento determinativo ou a missão que se encerra em uma História da Nacionalidade portuguesa. O sentimento nacionalista é servido pelo ideal poético e pela narração histórica. Na marcha da Civilização europeia é imprescindível o conhecimento da ação do Povo Português iniciando pelos Descobrimentos marítimos a era da atividade pacífica; como Israel, como a Grécia, como a Holanda, Portugal cumpriu uma missão impulsora inolvidável, e as suas lutas e vicissitudes só podem interessar enquanto se prendem com trama complexo da História universal.

“Sob este aspeto, a História de Portugal muitas vezes me parecia um hino; no estudo da História universal, apareceu-me em toda a luz o pensamento de Schiller, em uma das suas cartas: Um espírito filosófico só pode particularmente interessar-se por uma nação quando ela lhe aparece como condição do progresso da Humanidade inteira '. Isto explica como os esforços dos historiadores estrangeiros (Henri Schaeffer, Ferdinand Denis, Major) precederam ou se adiantaram aos nossos escritores, tentando uma História de Portugal; e essa solidariedade iniciadora da Civilização moderna é que torna essa história a maior ambição da minha vida”.

A vibração destes períodos, que na verdade só Teófilo poderia ter escrito, não ofusca os defeitos das suas primeiras obras nem a dependência do seu pensamento em relação a Vico e ao “germanismo” de Quinet e, sobretudo, de Michelet.

Com efeito, a vibratilidade da emoção poética, associada ao fundo temperamental, mais assimilador que criador e mais cativo do desenvolvimento e da expressão das ideias que do respetivo exame intrínseco, concorreu poderosa, senão decisivamente, para que Teófilo se esquivasse, desde a juventude, à severidade da disciplina crítica e à escrupulosidade do espírito científico. A Poesia do Direito (1865) — a expressão é de Grimm, “der Poesie im Recht”—, logo define no verdor juvenil estas feições, que se acentuam na dissertação para o doutoramento em Direito (1868), cuja triplicidade de títulos — na capa, História do Direito Português, na lombada, Ideias para a história dos forais, e na página de guarda, História do Direito Português—, e cuja fúria apriorística e interpretativa converteu as cento e cinquenta e sete páginas deste livro num “vasto pandemónio onde poderá examinar-se até que ponto é capaz de chegar o talento a par com a audácia e a insensatez”, no justo dizer de Oliveira Martins (T. Braga e o Cancioneiro e Romanceiro Geral Português, 1869, p. 14).

Herculano, cujo génio criador arrancara a Idade Média à babugem da curiosidade para lhe firmar a história em bases severamente críticas, via com irónica tristeza estas travessuras medievistas, dizendo de Teófilo em carta a Oliveira Martins que “achou a porta do abstruso sintético e simbólico engrinaldada de maravalhas francesas: meteu-se por ela, e em resultado aí temos, não direi a Visão, as Tempestades e a Ondina, porque não quero que V. S.a fique mal comigo, mas direi a História da Poesia Popular e os Forais, que V. S. mesmo trata desapiedadamente”. No sorriso amargo do Mestre do pensamento preciso, vinculado aos factos, estremecia o receio da pedantocracia e o horror das frases feitas, grandíloquas e vazias, — as duas pragas que sempre proliferam em terreno lavrado pela grafomania e pela verborreia.

O insucesso nos concursos à cadeira de Direito Comercial da Academia Politécnica do Porto (1868) e ao magistério na Faculdade de Direito de Coimbra (1871), tentados, sem dúvida, mais com o propósito de obter o ganha-pão que o de levar a cabo uma obra jurídica, compeliram-no a abandonar definitivamente as incursões, aliás pouco felizes e brilhantes, pelo Direito Comercial, pelo Direito Civil e pela História do Direito, e a consagrar-se definitivamente à história literária portuguesa. “Trabalho há anos, escrevia a F. M. Supico em 12 de Outubro de 1869, em um livro que é o mealheiro de todas as minhas ideias, a monomania, a ambição única que tenho — é a História literária de Portugal; já tenho muitos materiais, o bastante para estar seguro de que levo a obra até ao fim; calculo a publicação em 12 volumes de 8.° pequeno, ou 4 volumes de 8.° grande. A publicação é difícil por causa do pequeno público, mas em todo o caso de 1870 em diante começarei a pensar no modo de lançar à rua a primeira parte do trabalho” (J. Bruno Carreiro, Vida de T. Braga, Resumo Cronológico. in-Primeiro Centenário do Doutor T. B., 1944, p. 228).

E na verdade assim foi. A ambição de construir uma obra pessoal e, de certo modo, o prazer de prosseguir com amplitude numa direção que concorrera notavelmente para lhe singularizar a escolaridade, assinalam o ano de 1870 e os que imediatamente se lhe sucedem: em 1870 publica a História da Literatura Portuguesa— Introdução; os dois volumes da História do Teatro Português —Vida de Gil Vicente e sua escola e A comédia clássica e as tragicomédias, e sob o título Estudo da Idade Média a coletânea de artigos dos tempos de estudante, de índole histórico-literária; em 1871, A baixa comédia e a ópera, Garrett e os dramas românticos, a Vida de Sá de Miranda e sua escola, as Epopeias da raça moçárabe, os Trovadores galécio-portugueses, os Poetas palacianos; em 1872, Bernardim Ribeiro e os bucolistas, a Teoria da História da Literatura Portuguesa, e os Críticos da História da Literatura Portuguesa, e em 1873, a História das novelas portuguesas de Cavalaria — Formação do Amadis de Gaula, sobre a origem portuguesa do Amadis de Gaula, Os novos críticos de Camões e os três vols. da História de Camões.

Que assombrosa atividade, mormente quando se pensa na ansiedade e comoções de dois concursos, um, em 1871, ao magistério da Faculdade de Direito, com a tese Espírito do Direito Civil Moderno, outro, em 1872, à cátedra de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras, que justa e retumbantemente conquistou em oposição a Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro!

Abundam na nossa gente os rasgos de audácia, são constantes nos humildes e na classe média os exemplos de abnegação e de sacrifício, todos sabemos, mais ou menos, de casos de tenacidade e de estoica perseverança, mas onde e quando outro português com o historial laborioso de Teófilo!

Teófilo foi Teófilo, totus, unus, solus, porque embora tivesse nascido com mente de discípulo a sua alma foi de Mestre e só conjugou bem os verbos na primeira pessoa; no entanto, acode-me, uma vez mais, como exemplo incitante e em parte normativo dos primeiros passos da História da Literatura Portuguesa, esse assombro de trabalho e de entusiasmo comunicativo que foi Michelet.

Na gestação de tamanha obra atuaram, como é óbvio, influências diversas, desde o alento temperamental às sugestões do ambiente e à atração normativa de alguns livros e de algumas ideias. Não pode evidentemente esquecer-se Garrett, o teórico do Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa (1826) e do prólogo do Romanceiro, ou por outras palavras, a conceção romântica da poesia como produto espontâneo da alma popular, diversa senão oposta à poesia artística, considerada como produto intelectual, na essência mais ideia que poesia; mas vejo erguer-se ao lado do genial romântico, porventura com mais vigor atrativo e incitante lição, o autor da Histoire de France, quando atento no complexo de ideias que nesta quadra serviram de coordenadas à atividade intelectual de Teófilo.

Foi a Michelet que dedicou em 1870 os Estudos da Idade Média e se na dedicatória se podem descobrir os impulsos da gratidão ao “homem de génio que, depois de Jacob Grimm, tem espalhado mais luz na história da Idade Média, tanto sobre o direito, como sobre o génio das raças realizado nas grandes criações”; e se dignara “lançar os olhos para o primeiro livro da minha História do Direito Português, e mais ainda, que o julgasse um trabalho importante”, não é menos certo que Teófilo dedicava esta coletânea de escritos histórico-literários da juventude ao “autor da História de França». Cinco anos antes, como já dissemos, dominara-o principalmente o vulgarizador de Vico e de Grimm e o autor das Origines du Droit français a quem devia a sugestão da Poesia do Direito e dos estudos do Romanceiro popular—, agora, era o “autor da História de França” que acima de tudo admirava, e o facto tem também significação, talvez não menos profunda. Como este, Teófilo quer escrever a História literária de um Povo e não a dos escritores ou a de um Estado, e desinteressa-se da história política e administrativa para concentrar a investigação sobre os factos que expliquem as origens e se relacionem com a alma popular O vinco é ainda sensível no próprio conceito do objeto da história literária, e foi o próprio Teófilo quem reiteradamente o disse, notadamente nesta esclarecedora página do proémio de O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições (I, VI-VII):

“Atraídos ainda na adolescência para esse lirismo pessoal pervertido pelo Romantismo, viemos a conhecer que existia uma poesia mais profunda do que as emoções do momento, revelada nos conflitos da Humanidade que acentuam a sua elevação na história. Entrando nesta via, em que traçámos o esboço de uma Epopeia humana na Visão dos Tempos, a idealização do passado fez-nos compreender os documentos persistentes da sua poesia, as tradições transmitidas na voz do povo. Imediatamente começámos a acumular os materiais do Cancioneiro e Romanceiro Geral Português, aproveitando o contato com toda a mocidade portuguesa na frequência da Universidade de Coimbra. Obedecendo a esta sedução, escolhemos para a nossa tese de doutoramento em Direito, os Forais, documentos tradicionais do direito local e consuetudinário; o estudo da jurisprudência foraleira fez-nos encontrar numerosos vestígios de costumes na vida atual do povo, e abundantes símbolos jurídicos nas cantigas e romances orais. Por esta forma acha-mos o lado vivo das instituições locais, e ao mesmo tempo a importância histórica contida nos factos aparentemente insignificantes aludidos nos cantos do povo português. Estava achado o nosso critério, e portanto o interesse artístico convertido em seriedade científica. A relação entre os Forais do século XIII e os romances populares atuais estabeleceu-se no nosso espírito, pelo encontro frequente de numerosíssimas referências dos principais romances nas obras dos escritores quinhentistas Gil Vicente, Prestes, Sá de Miranda, Jorge Ferreira e Camões. Avançando constantemente, e sentindo, compreendendo a expressão do nosso génio nacional, organizámos então a História da Literatura Portuguesa, onde cada escritor» seria julgado segundo a intuição que teve das fontes tradicionais de que mais ou menos conscientemente se aproximou. Assim pelo estudo dos cantos do povo é que compreendemos o que havia de caracteristicamente nosso nos Cancioneiros provençais portugueses, considerados por Wolf como imitações sem carácter nacional; pelo estudo das superstições é que conhecemos as origens de alguns Autos de Gil Vicente, onde este homem de génio dramatizou costumes populares, como no Triunfo do Inverno. Pertence também a esta ordem de estudos a observação da persistência étnica das raças peninsulares, base do nosso esboço sobre os Elementos da Nacionalidade Portuguesa e da História de Portugal em que trabalhamos”.

Uma frase diz tudo: “Cada escritor seria julgado segundo a intuição que teve das fontes tradicionais de que mais ou menos conscientemente se aproximou”. Quer-se melhor testemunho da intenção e do critério com que iniciou a sua obra? Daqui ainda o cunho que vinca tudo o que saiu da pena de Teófilo: o nacionalismo, como fim ético--político, e como critério histórico-crítico.

O iluminismo racionalista, de Verney ao manifesto romântico de Garrett, partindo do pressuposto da unidade e da identidade da razão em todos os tempos e lugares, havia conduzido, por intrínseca determinação ao cosmopolitismo estético e ao universalismo da cultura; agora, pelo contrário, a surpresa das manifestações ingénuas do povo, tanto mais puras quanto mais próximas das forças barbáricas da Natureza, exaltava a sensibilidade e conduzia ao nacionalismo, isto é, à irredutibilidade e à unidade do génio nacional, na política e na arte. O republicanismo de Teófilo mergulha as mais fortes raízes nesta demofilia e o enlace da história e da política, inerente ao seu pensar, não tem outra origem.

Como é óbvio, a história literária tinha de assentar também no conceito basilar de “povo” e no da correlação das criações estéticas espontâneas com a civilização universal —, e Teófilo não se esqueceu de o acentuar na Teoria da História da Literatura Portuguesa, que em 1872 apresentou como dissertação de concurso à terceira cadeira do Curso Superior de Letras: “Para nós a verdadeira literatura consiste em descobrir pelas realizações que ela nos apresenta a vitalidade da raça, a consciência da nacionalidade, e até que ponto estas correntes naturais estão em harmonia ou em antinomia com a civilização”.

Consequente, por inexorável ditame da visceral tendência sistemática, Teófilo, como logo observou Antero num ensaio intelectual penetrante mas eticamente de duvidosa intenção, no juízo de alguns, “dominado pela necessidade de dar por fundamento ao génio nacional o génio de uma raça primitiva e sui generis, teve, por assim dizer, de inventar para Portugal essa raça primitiva. Estendeu um facto particular de certas províncias, a existência das populações moçarábicas, a todo o país; e, transformando esse fenómeno puramente social em fenómeno etnológico, fez dos moçárabes uma raça distinta, cuja profunda espontaneidade, apesar de prematuramente sufocada, se revelou em criações sentimentais, que laboriosamente trata de descobrir, e que, segundo ele, teriam dado à literatura portuguesa uma feição original, se a tradição clássica não tivesse obstado ao desenvolvimento livre desse ciclo verdadeiramente nacional” (Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa, Prosas, II, p. 219).

A investigação do “barbárico” e das criações estéticas espontâneas e primitivas como chave reveladora do génio nacional tem a marca inconfundível de Vico-Michelet e exprimiu-se abundante e desastradamente nas Epopeias da Raça Moçárabe (1871) e na Teoria da História da Literatura Portuguesa (1872). Por paradoxal que pareça em obra tão intencionalmente nacionalista, Teófilo é o grande responsável da sistematização da nossa história literária baseada em caracteres extrínsecos e forasteiros. Poeta, não ouviu o apelo dos valores estéticos, escritor, não reparou na morfologia da expressão, historiador, não atentou no “espírito do tempo” nem nas correlações epocais: só o dominaram, como sempre, as implicações sistemáticas da conceção tida por basilar, fossem ou não apriorísticas. Partindo de premissas falsas, à cabeça das quais a da existência dos moçárabes como raça, erradas tinham de ser as conclusões --, o que Antero também logo apontou nas mesmas Considerações com a lúcida penetração que lhe é habitual: “Esta esterilizadora tradição clássica vê-a o Sr. T. Braga representada na aristocracia asturo-leonesa-romanizada, autoritária e imitadora. A aristocracia, pela instituição monárquica, pelo catolicismo, pelo provençalismo, depois pela reforma dos forais, o direito romano e o poder absoluto, sufoca o livre génio moçarábico e faz da literatura portuguesa, que nas mãos poéticas do moçárabe prometia ser um jardim oriental, um triste deserto de imitações estéreis e enfezadas, onde só por milagre a seiva primitiva faz de longe em longe rebentar alguma flor doentia, fadada a morrer sem se propagar. Daqui conclui o Sr. Teófilo Braga que literatura verdadeiramente nacional nunca chegou a haver entre nós”.

Não é para aqui a análise de tais opiniões, expostas na dissertação apresentada ao Curso Superior de Letras e sensivelmente da estatura dos disparates que havia apresentado nas dissertações à Faculdade de Direito de Coimbra, nem tão-pouco o respetivo destino no pensamento ulterior de Teófilo e no da crítica; baste apenas acentuar que a História da Literatura Portuguesa nasceu sob o impulso de uma conceção dinâmica, mas cujo desenvolvimento, para além das limitações intrínsecas, sofreu a ação perturbadora de várias causas de erro, desde a unilateralidade e precipitação na investigação ao desvario imaginativo na interpretação dos factos.

De tudo isto abundam exemplos, raiando alguns pelo inverosímil, como o logro da carta de Aires Barbosa, na História de Camões (I, 1873), altamente revelador da ausência de espírito crítico na colheita dos materiais. Deixemo-los na obscuridade, dado o objetivo destas páginas, e se lhes fazemos alusão é tão-somente para salientar o rasgo de Teófilo na confissão dos erros da primeira fase da sua atividade histórico-literária —, aliás compreensíveis num escritor torrencial, que se não gastou na redação febril de tanto livro, na ceifa vertiginosa de tantos informes e na criação alucinante de tanta teoria e de tanta explicação nova.

Perseverante na ambição de levar a cabo uma grande Obra, forçado a considerar frequentemente os mesmos factos, tinha necessariamente de chegar o momento em que a continuidade do estudo e a maturação do juízo o advertissem dos erros cometidos, exortando-o a corrigi-los. O primeiro rebate parece ter-se dado publicamente em 1885 com o Curso de História da Literatura Portuguesa, mas só se tornou claro e ostensivo em 1896, no prólogo da Introdução e Teoria da História. da Literatura Portuguesa. Agora, escrevia, “que já se passaram vinte e três anos de magistério sobre esta disciplina no Curso Superior de Letras, volto mais habilitado a emendar os meus erros e a suprir as deficiências da educação universitária... Para escrever uma História da Literatura Portuguesa digna deste nome, faltava-me o conhecimento da antropologia e da etnografia; ignorava o processo da formação das línguas românica e o método filológico comparativo; tinha uma incompleta noção histórica da Idade Média, e principalmente da revolução ocidental que envolve todas as manifestações da história moderna da Europa; estava desviado de apreciar a missão iniciadora e profunda da cultura greco-romana continuada pelos povos latinos; com um criticismo anárquico julgava as instituições e os homens, sem ter a vista de conjunto de uma Filosofia que me revelasse as leis psicológicas e históricas, para coordenar o imenso tropel de factos acumulados por uma erudição impertinente. Todas estas faltas fui reconhecendo, acudindo-lhes com a disciplina conveniente. A revisão de toda a História da Literatura Portuguesa impôs-se como uma necessidade; se na obra poética fiz a minha Catedral, esta agora identificada em um mesmo método crítico ficará o meu Palácio, por onde divaguei livre de paixões ruins em um sonho de trinta anos”.

A emotiva confissão, a que não falta elevação literária, brotava principalmente do sentimento da posse, ingenuamente acrítica, de um sistema de ideias, cuja amplitude compreensiva lhe ditara a refundição da sua obra, “unificando o processo crítico e esclarecendo-a por uma mesma luz filosófica” (Ibid.). A “nova luz” que ilumina a giorno, a ponto de o cegar, a segunda fase da atividade mental de Teófilo, emanava, como a anterior, de França, mas agora de um genial pensador, representativo, como Descartes, do espírito francês, e sem as contaminações germânicas de Michelet: Auguste Comte.

Com efeito, das várias correntes filosóficas do terceiro quartel do século passado nenhuma quadrava tanto à conformação mental de Teófilo e se harmonizava melhor com algumas ideias da sua juventude, notadamente a da eliminação da subjetividade no sentido individualizante da palavra, do que o sistema do Curso de Filosofia Positiva.

Todo o trabalhador intelectual, mormente o realizador de uma obra que o empolgue, obedece com mais ou menos consciência e fidelidade a um ideal normativo: o bom-senso, como Herculano, a exatidão, como Gama Barros, a exaustão, como Leite de Vasconcelos, a universalidade e simetria do saber, como Latino Coelho, a atualização dos conhecimentos, como Adolfo Coelho, o rigor sóbrio, como Rodrigues de Freitas, a explicação clara, como Luciano Pereira da Silva, a plastização do essencial, como Oliveira Martins, que nasceu com o génio da evocação e cuja capacidade interpretativa se perdeu no livre curso das exaltações e das crises da própria alma. Para Teófilo, foi a sistematização, isto é, a subordinação do múltiplo e do vário a pontos de convergência: “a verdadeira Filosofia não está na novidade nem na originalidade individual, escreveu nas Modernas Ideias (II, p. 395), mas sim na determinação das verdades e na sua consequente sistematização”. Tudo lhe deve: o bom e o mau, o grande e o mesquinho, a própria verdade e o erro.

Quem ama a clareza, cartesianamente, tende por índole para a redução do complexo ao simples, do heterogéneo ao homogéneo, do diverso ao idêntico, levado pelo fio quebradiço e insubstituível da coerência lógica; quem lhe antepõe espontânea ou deliberadamente a conexão sistemática, subordina os dados e factos a diretrizes e ideias prévias, e em vez da coerência procura a consistência, ou mais exatamente a largueza de vistas. Conjugar harmoniosamente a coerência com a consistência é dom fácil do génio científico ou tarefa laboriosa da inteligência circunspecta, mas Teófilo não atingiu a estatura do génio e possuindo talento não foi circunspecto, porque sempre ambicionou chegar o mais rapidamente possível ao período final do livro que o ocupava.

Com tal conformação, nenhuma outra filosofia mais condizente que o Positivismo de Comte -, “a banalidade francesa”, no motejo de Antero, que este rabiscara do alto de um hegelianismo castrado no que tinha de fecundo, o método dialético, e, a despeito do manuseio do alemão, com a caneta molhada em tinteiro vindo de França, ao tempo laboratório e mercado fornecedor da nossa francesia, da nossa germanofilia e da própria anglofilia, sorvida em grande parte nas páginas de Taine. Claro que o hegelianismo é o ponto mais alto da especulação, no máximo de tensão até hoje atingido, e o positivismo o seu antípoda, a posição especulativamente mais rasteira, derreada e incrivelmente paradoxal no contrassenso de reduzir a filosofia a pensar-se a si própria como inexistente, mas a genial sistematização comteana merecia acaso tão desabrido enxovalho?

Isto, porém, é outro assunto, assim como o de apurar se foi ou não saudável — e foi-o, pelo menos no que condicionou —, que quase toda a gente pensante de Portugal, de 1870 ao final do século, até se elevar no horizonte, palidamente, o evolucionismo de Spencer, tivesse lido pela cartilha do Curso de Filosofia Positiva.

O Positivismo, que não é precisamente o mesmo que espírito de positividade, sem o qual tudo é frágil, entrou pelo ensino das Matemáticas e das Ciências Naturais nas escolas superiores de Lisboa, do Porto e de Coimbra. Era a filosofia da conjuntura histórica, expressa tipicamente no Fontismo, isto é, aqueles anos da nossa vida pública em que os discursos fáceis e empolgantes do Setembrismo e da Patuleia não supriam as necessidades da produção e da circulação da riqueza. Impunham-se ideias precisas, concretas, úteis, e, pela base científica, o Positivismo proporcionava a atmosfera mental propícia à política de fomento. Por isso, a sua influência decisiva verificou-se no terreno da conceção do Mundo e da vida que há que viver, aliás, o objetivo supremo de Comte, que, filósofo da Ordem muito mais que do Progresso, sempre subordinou o saber científico aos fins da ação espiritual, universalista e humanitária. Teófilo, em especial, recebeu-o e assimilou-o como norte e viático, tão entranhadamente que dir-se-ia ter renascido para nova vida do espírito. “A meio da sua carreira, este homem singular tem a coragem rara de fazer a reconstrução das suas ideias, submetendo a um método novo todo o corpo das suas opiniões anteriores, criando assim o direito de ser tão severo para os outros como o começou por ser para si mesmo”, disse justamente Sampaio Bruno, na Geração Nova (Porto, 1886, pp. 102-3), um dos seus melhores livros, do tempo em que escrevia correntiamente, sem retorcidos de parafuso, e conduzia a ideia ao fim, sem a perder longitudinalmente no labirinto de atalhos e ramais.

O facto era, na verdade, insólito, mas a estranheza esmorece quando se atenta no conjunto de predisposições que lhe facilitavam a assimilação do pensamento de Comte.

“Talvez que eu tenha inventado a Filosofia do Inconsciente' sem o saber!”, Disse Antero a Oliveira Martins (carta de 13-5-1876), levianamente, a outro leviano que anos depois adulteraria a conceção de Hartmann em prestidigitações de pseudoexplicação filosófica —, mas Teófilo, se não podia dizer que inventara o Positivismo, por distar infinitamente do assombroso saber de Comte, talvez o último grande enciclopédico, pois Wundt aproxima-se-lhe, mas não se lhe iguala, podia afirmar que o Positivismo era a sua Filosofia, o sistema que coincidia plenamente com a sua conformação mental, virtualidades e anelos latentes. Avesso, senão refratário, à meditação teorética e à pura reflexão lógica, inclinado irresistivelmente para a subordinação hierárquica das ideias —, Teófilo, o detrator da Escolástica, foi scholasticissimus na estrutura intelectual -- que não para a coerência e harmonia dos juízos, nenhuma outra atitude lhe era mais consentânea que a do Curso de Filosofia Positiva—, sistema totalitário de pensamentos e de explicações acessíveis, de estupenda base científica e hierarquicamente coordenados, mas sem os rasgos, voos e penetrações nas esferas epistemológica, ôntica e do valor que singularizam a atitude filosófica. Com a ingenuidade dos que nasceram para acreditar, Teófilo admitiu às cegas que a Filosofia não é problema mas solução, naturalmente tanto mais filosófica quanto mais terminante, maciça, rotunda, e coincidente com o que não é, — a ciência, ou por outras palavras, a zona de conhecimentos objetivos, rigorosos, demonstráveis ou verificáveis, cujas fronteiras avançam pela terra relativamente coerente e consistente da reflexão filosófica à medida que esta, de certo modo, vai ficando reduzida. Da Física helénica à Física pós-galileiana, que lição sugestiva do âmbito recíproco da Filosofia e da Ciência!

Por ditame da conformação mental, que não por preguiça, Teófilo viu, pois, no Positivismo um reportório de afirmações concludentes, admissíveis como expressão unívoca da Verdade ou como pontos de partida e premissas. Não reparou, sequer, ainda por ditame, nos fundamentos epistemológicos, ou melhor na falta de fundamentos da doutrina, nas suas omissões e saltos mortais do mundo físico para o biológico, da Natureza para a História e da História para a Hominidade, e das várias fases em que se desenvolve um pensamento sistemático teoria do método, teoria dos princípios ou dos fundamentos, teorias do ser, do valer, do homem e sua história, só se deteve nesta última, que acolheu como critério e como conceção da vida, senão como substituto da religião. Compreende-se —, e não apenas no seu caso pessoal, senão também na raiz da inquietude da maior parte dos que foram rapazes na Coimbra do seu tempo, que ao saírem “decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição” se deixaram guiar pelos veios mais ou menos avermelhados do radicalismo.

Ser radical não é apenas rótulo político nas terras soalheiras e vibráteis do Ocidente europeu, que os obumbrados pela luz sem cambiantes e sempre dilucular do Oriente esquecem terem sido as terras antigas e veneráveis onde o cavernícola pôde elevar-se e elevar os outros à estatura do cidadão e criar, intuir ou acolher — na escolha do termo se reflete a problematicidade da sua mente insatisfeita — essas duas palavras augustas, densas como nenhumas outras de sentido humano, que entraram em todos os idiomas de gente civilizada e cuja relação é tão íntima que os agravos numa logo se repercutem na outra, — Pessoa e Liberdade. É acima de tudo uma atitude interior, que partindo da repulsa mais ou menos extensa, profunda e veemente da ordem existente, aspira ao estabelecimento de uma nova adequação psicossocial. Do descontente resignado ao acrata subversor é variada a gama psicológica do radicalismo, mas todos os seus graus implicam sempre, dentre outros vincos comuns, o sentimento de insatisfação, mais ou menos acompanhado da ideia da existência de um estado de crise, manifestado pela deliquescência, ruína ou anacronismo das instituições ou ideias vigentes.

Todos os rapazes do “Bom-senso e bom-gosto”, no sentido lato e necessariamente vago da designação, viveram espiritualmente neste clima. Sem sondar em que medida as circunstâncias e dificuldades lhes propiciaram o sentimento de repulsa do existente assim como a respetiva gradação e intensidade psicológica e doutrinária, é fora de dúvida que o seu radicalismo se projetou no plano da idealidade, com inéditas dimensões intelectuais, estéticas e filosóficas. A diversidade dos temperamentos, das capacidades e dos sulcos das influências ideoló-gicas ditou naturalmente atitudes prospetivas diferentes nessa geração, cujas parcialidades antagónicas, de radicais e de conservadores, se alcunhavam em Coimbra pitorescamente de “traça” e “sopa”; não obstante, todos coincidiam no lugar-comum de que o mal-estar social e a decadência da cultura, procediam de uma crise mental, isto é, de uma “anarquia” de opiniões e de sentimentos. Anticlericais e incréus na maioria, obedeceram não obstante, inconscientemente, à superstição da ideia de unidade; por isso, como teólogos em viés, sob a ideia, antiliberal e escravizante, de que a vida plena numa sociedade perfeita implica a unidade de crenças e de opiniões, andaram à cata de diretrizes que reorganizassem a “ordem” no plano social e dessem às consciências a paz interior da religião. Por isso, ainda, além de outras razões e impulsos, esta geração, aparentemente revolucionária, teve entranhas de conservantismo reacionário de uma ordem a estabelecer e a impor, tão avassalante que a liberdade do espírito individual seria uma aberração monstruosa, e furiosamente crítica dos “liberdadeiros” da única articulação política da Liberdade compatível com a decência e o bom--senso —, oh! Que saudades desses políticos românticos, os melhores “realistas” da governação pública! — alguns fizeram-se pedantescamente programáticos e metediços, como Oliveira Martins e Antero, que chegou a redigir pelos anos de 1871-1872 algumas páginas de um Programa para os trabalhos da geração nova, que mais tarde rasgou, talvez num impulso de bom-senso, e cuja estrutura pode reconstituir em parte quem quiser avaliar a influição de Proudhon, sobretudo do De la création de l'ordre dans l'humanité, e de Cournot.

Dois mestres, sobretudo, orientaram a inquietude desta mocidade: Proudhon e Comte. Antero, Oliveira Martins e os primeiros socializantes, ouviram acima de tudo o apelo do autor de La Justice dans la Revolution et dans l'Eglise e das Contradictions économiques, penetrantemente criticadas por Amorim Viana; Teófilo, e os que se dedicavam ao estudo das ciências exatas e da Natureza, a lição de Auguste Comte, o pregoeiro da nova era científica, cujas condições definitivas de pensamento e de ação procurou definir com robusto saber e expansiva convicção.

Nas páginas densas do Curso de Filosofia Positiva, Teófilo refez, como nenhum outro contemporâneo, a sua conceção da vida, a ponto de se poder falar em verdadeira reeducação. Tudo lhes ficou devendo — ideias, métodos, planos de trabalho, orientações na ação política, e o próprio estilo ou antes o vocabulário, porque como notou Sampaio Bruno, “os positivistas não têm individualidade no estilo. Lido um, estão lidos todos. O modo de dizer é comum, como o modo de pensar. Tão poderosa é essa síntese, e absorvente semelhante subordinação” (O Brasil Mental, p. 106).

Sem sombra de educação científica e com escassa cultura filosófica, mais verbal que conceptual —, compare-se a propriedade da linguagem das Tendências, de Antero, com a algaravia ensalsada das páginas filosóficas das Modernas Ideias, v.g. 394 e seguintes —, sem tendências nem impulsos que o levassem à meditação em profundidade e clareza, o “positivismo” de Teófilo nasceu vassalo e enfezado. Só a “sociologia”, a ciência recém-nada que o génio de Comte trouxera para a consideração científica, lhe mereceu algum estudo, em função da teoria da ação prática, especialmente política. No mais, palavras e ideias são apenas o eco do pensamento comteano, seguido à letra, principalmente na primeira fase, isto é, no Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), sob a diretriz de Littré, e repudiando com este sábio os delírios do Système de la politique positive (1851-1854), ou mais precisamente o culto da religião da Humanidade, cujo morrão Pierre Laffite lá ia espevitando na capelória da Rua Monsieur-le-Prince: “Não acompanhamos a conceção sociológica de Comte enquanto às suas formas religiosas, diz no Sistema de Sociologia (16-17), mas reconhecemos que nas sociedades modernas alguma coisa se passa, que, tendendo a satisfazer necessidades de sentimento, vai ao mesmo tempo substituindo as religiões”.

O primeiro escrito em que Teófilo anunciou o novo credo saiu à luz em 1877 com o título: Traços Gerais da Filosofia Positiva, comprovados pelas descobertas científicas modernas. Obra de sequaz, pensada desde 1874 e propinada em grande parte aos ouvintes do Curso Superior de Letras, foi também obra de continuador, que introduz inovações, aliás desprovidas de seiva própria e de futuro, como a “comprovação psicológica” da lei dos três estados, e até desenvolvimentos como no capítulo (IV) dedicado à “Comprovação monística da classificação dos conhecimentos humanos”, e no que respeita à Psicologia, especialmente no capítulo final intitulado “Reorganização da Sociologia”.

A partir de então, convicto de que o Positivismo era uma teoria de diretrizes firmes e definitivas, tão deslumbrado ficou com a nova luz que dir-se-ia ter posto de lado a continuação da História da Literatura Portuguesa para se devotar às investigações sociológicas. Com efeito, de 1877 a 1885, ano do aparecimento dos dois volumes, O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições, a atividade do historiador literário é mínima, corno que limitada à publicação de textos, e em compensação surge a obra do sociólogo, com a torrentosidade a que habituara o público: em 1878, o vol. I da revista O Positivismo; em 1879 o vol. I da História Universal. Esboço de sociologia descritiva, dedicado à “noção positiva da História” e às “Civilizações fundadas sobre o empirismo das artes industriais —, Egipto, Caldeia, Babilónia e Assíria”; em 1879, as Soluções positivas da política portuguesa e o t. II do Positivismo; em 1880, ano do centenário de Camões levado a cabo com diretrizes patrióticas e comteanas, o t. III desta revista; em 1881, a Dissolução do sistema monárquico-representativo, e A Era Nova, “revista do movimento contemporâneo”, partilhando a direção com Teixeira Bastos; em 1882, o t. IV do Positivismo e o t. II da História Universal, no qual se ocupa das “civilizações cosmopolitas propagadoras das civilizações isoladas” e da “hegemonia das raças semíticas: Fenícios, Hebreus e Árabes”, com o primeiro volume da Estatística Social do “Sistema Geral de Sociologia”; em 1883, o t. I da Revista de Estudos Livres, o Sistema de Sociologia e Os Centenários, como síntese afetiva nas sociedades modernas.

Uma vez mais, tal como em relação à História da Literatura, passaremos em claro a multidão de observações que a leitura destes livros suscita. Baste apenas acentuar que o Positivismo forneceu a Teófilo ideias, esquemas e diretrizes, reeducando-o mentalmente, mas não o fez sociólogo e muito menos filósofo, já por impotência da própria doutrina, já por deficiência de quem só se movia dextramente no sentido longitudinal das ideias e dos problemas. Os exemplos são abundantes; sirva, porém, rapidamente, de comprovação, pela amplitude e fecundidade, a conceção comteana do estado de crise da sociedade europeia contemporânea.

O poderoso pensador desenvolvera esta ideia, que fora um dos impulsos fundamentais, senão o fundamental, da sua obra, com extensas e penetrantíssimas reflexões, notadamente sobre as origens e causas do estado anárquico consequente à “dissolução do regime católico-feudal” e que a Revolução Francesa agravara até ao paroxismo. A diagnose exigia naturalmente a terapêutica, que era G que importava; por isso Comte se aplicou também com extraordinária perseverança, nas horas de trabalhador lúcido como nas de visionário delirante, a justificar que só na Ciência podiam firmar-se as bases de um novo poder social e do restabelecimento de uma nova comunidade espiritual duradoira e saudável.

Teófilo assimilou entranhadamente esta conceção da Ciência como fundamentadora da teoria da ação uma das ideias condutoras do século e para a qual o impeliam a sua constituição mental de sistematizador e o poder comunicativo de algumas leituras, designadamente o vibrante L'avenir de la Science, de Renan, de que há sulcos em páginas do nosso historiador da literatura.

Com efeito, politicamente, o sentimento republicano de Teófilo nasceu em Coimbra, mas foi no pensamento de Comte que mergulhou as mais robustas raízes doutrinárias e adquiriu o alor profético de anátema e de salvação pública. Ele o confessou reiteradamente, designadamente no capítulo intitulado “Ação da Filosofia positiva na democracia portuguesa” da História das Ideias Republicanas em Portugal (1886), e que o não confessasse era evidente no repúdio do “espírito retrógrado”, só atento à estabilidade da ordem imutável, e do “espírito anárquico”, cuja ação irregular e destruidora se não confunde com o movimento do progresso, assim como na finalidade prática da Sociologia.

Teófilo foi homem de doutrinas rígidas e impermeáveis, a ponto de parecer ter pretendido fundar nos derradeiros anos uma modesta ecclesia, mas nunca chegou a apresentar-se, como o Mestre, com a auréola do profeta fadado para conduzir espiritualmente a reorganização política e, por extensão, social do nosso País, mas é certo que assim como Comte fez do Curso de Filosofia Positiva a suma científica em que assentou as ideias reorganizadoras, assim Teófilo quis fazer da sua obra a suma histórica e normativa, senão alma mater, da civilização portuguesa.

“Na marcha dos nossos estudos, escreve na Autobiografia, desapareceu este desalento sobre o futuro da nacionalidade portuguesa, e é esse o pensamento dominante que nos dirige na elaboração da História de Portugal, demonstrativa da previsão da sua hegemonia entre os Estados peninsulares. Pelo poder do sistema fomos levados do quadro geral da História da Literatura a um pensamento mais vasto, o da Civilização portuguesa sob os três aspetos fundamentais —, o afetivo, ou artístico, o especulativo, ou científico, e o social, ou propriamente político. Realizando no grande corpo da História da Literatura Portuguesa o estudo crítico e filosófico do nosso génio estético, prosseguimos o mesmo trabalho da evolução intelectual na História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrução Portuguesa; a parte social tem de integrar-se neste quadro no dia em que for publicada a História da Nacionalidade Portuguesa, capítulo imprescindível da História Universal”.

De tão vasto projeto, que a mente e a vontade de nenhum outro português jamais anunciara com tamanha amplitude e vibração, a sós com a sua consciência, longe da euforia da mesa do café e das ombreiras das livrarias, como pode ver-se no Plano das obras completas, exposto na Autobiografia, Teófilo apenas levou a cabo a História da Literatura, pois a história intelectual foi versada mais sob o ponto de vista institucional que ideográfico na História da Universidade, na qual sobressaem os capítulos relativos ao século XVIII, e a história social e política só teve algum desenvolvimento no respeitante às origens e, sobretudo, ao período da Monarquia Constitucional, designadamente nas Soluções positivas da política portuguesa.

Abandonada a ilusão de uma grande obra sociológica que continuasse, se não rematasse, a construção de Comte, e da qual deixou um tratado, o Sistema de Sociologia, pouco original e pensado mais como antecâmara da política que o objeto de Ciência pura (Sistema de Sociologia, XV), e os dois volumes de “esboço de Sociologia descritiva”, intitulados história Universal, que são o eco tagarela e fastidioso da erudição orientalista de segunda mão, colhida notadamente em Renan, Maspero, Lenormant, Sedillat, etc., regressou ao amor antigo, empreendendo a revisão da grande obra começada na juventude. Em duas fases a irá desenvolver, sob a disciplina do positivismo comteano e com o alargamento sucessivo dos materiais e da informação: a primeira, iniciada em 1896 com a refundição da Introdução e Teoria da História da Literatura Portuguesa, tem uma feição essencialmente monográfica, incidindo sobre as grandes figuras literárias dos séculos XVI-XIX, a segunda, a partir de 1902, com feição sintética, de condensação ou de “recapitulação” desenvolveu-se na História da Poesia Popular Portuguesa, talvez o seu melhor livro, pelo menos aquele que mais me encanta e menos fatiga, e nos volumes dedicados à Idade Média (1909), Renascença (1914), Os Seiscentistas (1916), Os Árcades (1918) e o Romantismo, que não chegou a concluir.

Fiel à maior parte das ideias de que havia partido na primeira fase da História, Teófilo mantém e até robustece a conceção do génio nacional como distinto do Estado, isto é, da expressão epocal da política, mas atenua, de certo modo, a densidade mística da ideia de “povo”, cingindo-a agora com mais rigor mediante a distinção comteana dos elementos estáticos e dinâmicos, isto é, o estudo das condições de existência da sociedade e o estudo das formas e leis do seu desenvolvimento, que no fundo representam a projeção dos conceitos de Ordem e de Progresso, nucleares no pensamento de Comte.

No Positivismo colheu fartamente conceções sociológicas, ideias gerais, a crença de que a fé na Humanidade deve fundar-se nas ciências exatas, o próprio vocabulário, e acima de tudo uma certa disciplina científica —, bem entendido, aquela disciplina compatível com a fogosidade do seu génio, que Oliveira Martins no verdor da juventude dissera ser “tão irmão do de Michelet” (T. Braga e o Cancioneiro, p. 14). O conceito da história literária, porém, não radica em Comte, e sem apurar as transformações que sofreu baste ao nosso objetivo acentuar que a refundição da História da Literatura iniciada em 1896 obedeceu, ou pretendeu obedecer, ao intento “de deduzir o génio e carácter íntimo do povo que produziu as obras literárias, e sobretudo de pôr em relevo as circunstâncias exteriores que lhes deram origem; é um processo filosófico desenvolvendo-se conjuntamente com a investigação histórica” (Introdução, cit. 4).

Levaria longe o apurar se Teófilo cumpriu o propósito, isto é, se sondou penetrante e firmemente as circunstâncias psicológicas, estéticas e epocais em que nasceram as grandes obras da nossa literatura, se estabeleceu com clareza a correlação entre os elementos históricos e artísticos, se as suas mãos apreenderam com delicadeza o fio frágil das mutações da sensibilidade e da estimativa estética. A resposta a tais dúvidas obrigaria a repensar uma multidão de assuntos e consequentemente a escrever alguns livros; no entanto, não hesitamos no juízo de que a História da Literatura Portuguesa não exprime verdadeiramente o exame da consciência histórico-literária do povo português. Por incapacidade, deficiência ou negligência do autor? De forma alguma; apenas, e uma vez mais, pelo “espírito de sistema”, a cumieira e o marnel da atividade discursiva de Teófilo.

Ninguém excedeu Teófilo no amor intelectual ao Povo português; mas na realização da obra que intencionalmente deveria ter sido a expressão histórica do génio literário lusíada interpuseram-se dois obstáculos entre a mente do historiador e a realidade viva e peculiar da alma portuguesa: a atenção desmesurada aos indivíduos, o que o levou a exagerar a investigação biográfica para além do razoável, isto é, dos lances reveladores do sentir e do pensar estético, e a obcecação de tópicos, ideias gerais e opiniões, filosóficas ou pseudofilosóficas, que o afastavam do contato imediato, sem desvios nem interposições. Dir-se-ia que a sua caneta vertiginosa só se detinha na anedota biográfica do indivíduo concreto ou na ideia abstrata e deserta da Humanidade, à sombra daqueles estandartes de poeira a que Comte chamara “síntese afetiva”, “síntese ativa” e “síntese especulativa” e outros de igual jactância e farelório.

Quer isto dizer que a História da Literatura Portuguesa seja a história de um equívoco insistente e teimosamente prosseguido durante uma longa vida?

Sim, em parte, por não merecer inteira e absolutamente o nome de historiador quem, no esforço crítico de reconstituição do passado — e outra coisa não é a História —, confiou demasiadamente no pressentimento alvoroçado da intuição e trocou frequentemente o raciocínio severo pela imaginação escandecida. A primeira condição da objetividade assenta na informação minuciosa do maior número possível de documentos, sem que nenhum seja desvirtuado ou deliberadamente excluído. É a condição fundamental, na história política como na económica, na história literária como na filosófica. Nestas últimas não é só fundamental senão também essencial, dado que o espírito e a ideia só se atingem pelos caminhos da letra, isto é, pela meditação assídua, escrupulosa, total, dos textos.

Sob o ponto de vista da reconstituição histórica, com efeito, que é o espírito de uma obra, de uma instituição, de uma época, ou por outras palavras o sentimento profundo, as ideias incitantes, as intenções decisivas, o ser autêntico, senão o que é comum e constante nos “documentos”, o alento que a todos anima e aparenta numa harmonia racional coerente e consistente? É acaso possível apreender o “espírito» quando as “letras” são discordes?

Na conduta das ações como no discurso pela ideosfera há sempre que “ter razão” para se não soçobrar no remorso e no dislate, e só a exatidão abre o caminho a deusa tão esquiva e difícil. Podem as intuições alvoroçadas ou as deduções intempestivas ser formosas literariamente e de compostura sedutora —, se não tiverem razão, isto é, se não forem exatas e severamente consistentes, terão a sorte inexorável das inutilidades.

Teófilo, como homem de imaginação e de sistema, não se furtou aos desvarios da intuição palpitante e da dedução precipitada; no entanto, por mais alto que ergamos as pilhas dos seus erros e dos seus defeitos não conseguirá diminuir-se a grandeza da ideia que o animou, das que alentam e iluminam uma vida inteira com fulgor imarcescível. Com seus erros e faltas, seus desacertos e deformações, a História da Literatura Portuguesa assinala o primeiro intento de interpretação global da nossa história literária com intenção científica. Parecendo pouco, é muitíssimo, tanto que Teófilo como historiador da literatura portuguesa continua a ser na morte o que foi em vida: totus, unus, solus.

Tal o Teófilo que me represento, na individualíssima personalidade do trabalhador. O que vale, porém, este Homem para nós, em que medida o seu pensamento pode ser o nosso pensamento e nutrir a nossa ação?

Ser atual significa sempre contemporaneidade do valer. É o sentido genérico, mas como nada se define pelo género comum cumpre cingir a noção de mais perto. Assim, pode, na espécie, entender-se diversamente, desde a projeção de um pensamento que por haver penetrado claro e fundo nos mistérios da Beleza, da Exatidão, da Justiça, da Bondade, da Santidade, se tornou de todos os tempos, até à modesta conformidade acidental de pensares transatos com o pensamento que vivemos com mais ou menos intensidade.

O primeiro sentido equivale a tomar contato com as contadas ideias e coisas que têm iluminado a longa e penosa ascensão do Homem, mas a tomada de contato não implica necessariamente conformidade ou assentimento. Assim, por exemplo, uma filosofia como a de Espinosa, que, mediante puras relações lógicas, conduz a pensar, ou mais rigorosamente o Universo a pensar-se como causa sui e natureza naturante, pode opor-se à nossa conceção dualista ou pluralista do ser e da transcendência de Deus, mas é atual por exprimir, como que definitivamente, uma maneira de pensar com a qual tem de se defrontar quem quiser tomar posição consciente e refletida, seja para a aceitar, seja para a repudiar. O mesmo se pode dizer de todas as conceções e atitudes filosóficas que são pontos de partida ou marcos altaneiros da jornada da inteligência na interpretação da realidade, como o platonismo, a metafísica de Aristóteles, o cogito cartesiano, o criticismo de Kant, o método dialético de Hegel, a noção de positividade, de Comte, e num sentido de certo modo afim, os rasgos decisivos de orientação metodológica e os alentos vitais e estruturais das mundividências.

Teófilo não está nesta linha de atualidade, de sua natureza intemporal e atópica. Foi demasiadamente homem do seu tempo, tanto que ainda em vida o seu método e as suas ideias se tornaram anacrónicas. Por isso, é pouco lido, não teve, em rigor, um discípulo, e é improbabilíssimo que o venha a ter pela lição silenciosa dos livros, dada a carga de temporalidade e até de circunstância que eles suportam.

Quem tanto escreveu, tanto amou e tanto detestou, assumiu, não obstante, posições e atitudes que lhe sobrevivem. Teófilo foi sempre o mesmo homem, como que monolítico, porque embora distingamos o Teófilo anterior a 72-76, de olhos fitos em Michelet, do Teófilo posterior a estes anos, com a mente encadeada ao Curso de Comte, ou mais exatamente à pauta e norma do Littré diretor da Revue de philosophie positive (1867) e autor do De la philosophie positive (1845), da Aplication de la philosophie positive au gouvernement des sociétés et en particulier à la crise actuelle (1849), do A. Comte et la philosophie positive (1863), do La science au point de vue philosophique (1873), jamais deixou de ser um português de quatro costados que desejou elevar-se a cidadão da Humanidade, dentro das fronteiras de Portugal, bem entendido. Na sua alma, o português foi nativo, no mais denso sentido da palavra, e o cidadão da Humanidade, o adventício e forasteiro; por isso a sua obra tem a marca radical e indelével do portuguesismo, tão forte e penetrante que atravessou a própria carapaça de ideias adventícias com que a revestiu.

Este é o vinco indelével da sua atualidade. É pouco? É muito? Para mim, é essencial, e vou dizer a razão.

O português pode sentir diversamente a sua relação com Portugal e pensar os seus ideais políticos e estéticos sob anelos diferentes. Está no seu direito, e quanto mais pessoal e rasgadamente o aplicar tanto melhor para o nome dele e para o crédito do País. No entanto, por mais amplo que se figure o reportório dos seus ideais, uma como que tendência ancestral o impele a fitá-los sob dois luzeiros que até agora mais o têm encaminhado. Pode vê-los em função do Tempo, e portanto ou coloca o acento na continuidade, e é então tradicionalista, com cómoda mentalidade de herdeiro, gosta de sacudir o pó do trono e do altar, e tende para o classicismo, ou projeta-o para o futuro, e neste caso a incerteza não lhe mete medo, lança-se na aventura das inovações, tem fumaças de romântico, e é radical, com a gama de rebeldias e de esperanças que vão desde a vinda do D. Sebastião até à queda do ministério, com o que quase sempre todos estamos de acordo. E pode vê-los em função do Espaço, e portanto ou quer enquadrar os compatriotas em organizações que lhes disciplinem a atividade, ou deseja que eles estabeleçam mais ou menos livremente a coexistência dos seus interesses.

Claro que o bonito, o difícil, o decente, consiste em extrair do particularismo nacional o universalismo humano e em combinar a consideração temporal da convivência com a espacial da coexistência, e aqui para nós — e que ninguém nos oiça nesta manhã de Cinco de Outubro de 1946 em que escrevo, e se o ouvirem não o vão dizer, por favor — ainda se não inventou mais fina, delicada e digna combinação que a da Liberdade com a Democracia —, só esta, e não a outra, às avessas, e muito menos, é evidente, a triaga que exclua qualquer destes salutares ingredientes, por trazer consigo, inevitavelmente, a anarquia horrenda ou a tirania infecta.

Seja, porém, qual for a posição que tome, uma coisa lhe está vedada: as atitudes que destruam as raízes morais da convivência nacional e cívica. Um país grande pode dar-se ao luxo de ter de tudo; um país pequeno paga sempre este luxo por preço muito caro e nele só pode ser grande o que fortalece a convivência e acentua os vincos da fisionomia que, queiramos ou não, todos conlevamos perante o Mundo.

Sob este aspeto, Teófilo é mestre. Toda a sua obra respira portuguesismo, sobretudo a partir da refundição da História da Literatura e de haver entoado a palinódia de alguns exageros e disparates, como o da raça dos moçárabes e o resto que lhe aditara como aposto ou continuado, atraído pela sedução da teoria de Taine acerca da influência de saxões e de normandos na literatura inglesa.

Civicamente, reputou-se herdeiro das reivindicações da gente de 1384, de 1640, de 1820 e de 1834, e esta maneira de ser português, isto é, de sentir a soberania militante da Nação, conduziu-o ao patriotismo exaltado e a um republicanismo jacobino, reativo e estreito, mais inclinado para o contra que para o pró, e ao qual a conceção comteana de positividade e, sobretudo, a lição de Littré imprimiram uma índole anticlerical e materialista.

Este é o Teófilo do partido e como que da circunstância política, que uns aplaudiram, outros detestaram e todos reconhecem ter sido uma das vias intelectuais por onde entrou a ideia e em parte a feição da República de 1910, dentro da qual me fiz homem. Para além dele, necessariamente estreito, combativo, sectário, há o Teófilo que o português de isento amor à Pátria admira, por lhe haver ensinado razões do seu portuguesismo, embora às vezes pelos caminhos do desacerto.

Da montanha de páginas que escreveu e estão a pedir o confronto com os 415 000 linguados do Dictionnaire de la langue française, que o próprio Littré reduziu à extensão de 37 quilómetros, 525 metros e 28 centímetros, é este o vinco mais profundo e a dimensão mais impressionante que o alinhamento espacial dos papéis que mandou para a tipografia. A filosofia com que as travejou já lá vai, levada pelo vento que sumiu as ilusões baseadas na nova era da ciência da vida e da Natureza e cuja ruína talvez haja reavivado o fogo-fátuo da credulidade fácil e da superstição obstinada, que infecionam o nosso tempo; e o método com que as construiu também já não é o nosso método.

Quer isto dizer que façamos as nossas despedidas a Teófilo?

Não, e não, com a mão na consciência o digo, e olhos fitos em tudo o que tenho visto e aprendido.

A sua obra, na qual raras vezes se sente pulsar o coração com cordialidade e onde mais raramente ainda se respira o ar subtil da finura e da ironia, foi amassada à pressa, sem o talhe fino do buril e do escrúpulo?

Não há dúvida, mas não gera pedantes afanosos de notoriedade e de sensacionalismo, nem intoxica com palavreado pretensioso e ideias estultas, com a presunção de exalarem inteligência, que é o mais repugnante dos fedores.

O seu ideário político foi de uma estreiteza censurável num mentor e de um sectarismo só desculpável por quem espinozamente sabe que compreender é situar as coisas no seu lugar e, portanto, perdoar?

Sim, não há dúvida, mas foi liberal na conceção da vida, pugnou indefetivelmente pelas franquias públicas e pelas garantias individuais, e quando se vivem tempos em que estas coisas, que são timbre da dignidade humana e flor da maturidade política, fazem figura de antiguidades egípcias, as suas ideias e o seu exemplo atraem e ensinam. Civicamente, é da estirpe dos nossos grandes, hostis visceralmente às atividades políticas e às formas de conduta amorais e sem fé —, e isto é quase tudo para a boa saúde pública e tudo para a da alma do civilizado, que pode suportar a mudança de instituições e a transformação das condições de vida, mas que se aniquila na medida em que lhe tolham a liberdade de consciência, lhe sequestrem o espírito de iniciativa e lhe afrontem o sentimento da dignidade da Pessoa.

O seu pensamento filosófico foi vassalo, a atitude científica eivada de ídolos e de preconceitos, a investigação nem sempre escrupulosa, as generalizações frequentemente precipitadas?

Também não há dúvida, e tanto que cumpre ler-lhe a obra com prudente reserva e algum arame farpado; mas trabalhou como ninguém em Portugal, e embora não haja repensado severamente as obras literárias na peculiaridade em que nasceram, submetendo-as aos moldes de ideias antecipadas, quando não precipitadas, merece, não obstante, a nossa gratidão pelo esforço hercúleo de ter sacrificado a vida à explicação integral, da embriogenia à plenitude, do nosso génio literário.

Disse Renan de Littré que este “havia vivido e sentido com a Humanidade do seu tempo, partilhado das suas esperanças e, se se quiser, dos seus erros, não recuando diante de nenhuma responsabilidade”. Tão nobres palavras dizem-se com igual justiça do Homem que foi na intenção e na conduta o Littré português; por isso, se lhe censuro a obra, admiro o espírito que a escreveu e a quem jamais direi adeus, por lhe sentir a presença, viva e incitante, sempre que procuro compreender alguns aspetos da realidade que mais imediatamente se nos impõe e enche a alma: — Portugal e o Povo Português na integridade da sua existência e na dignidade e galhardia da sua vida.


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