Joaquim de Carvalho (1892-1958), pensador e historiador, por José V. de Pina Martins

1. No seu prefácio à tese António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença, publicada em 1916, escreveu Joaquim de Carvalho: «Este livro é o primeiro duma série de estudos que queremos dedicar à História da Filosofia Portuguesa». Mais adiante, insistiu: «Abstraindo, porém, desta possibilidade racional da nacionalidade em Filosofia, que nós incidentalmente aflorámos, os factos pouco a pouco nos formaram a convicção — temos a esperança que um dia devenha ainda certeza científica — de que a História da Filosofia Portuguesa é tão real como a História da Filosofia inglesa, alemã, etc., quanto mais não seja pela continuidade dos problemas, embora mais modesta, constituindo, portanto, um vasto campo a explorar, se não a descobrir».

Joaquim de Carvalho, por consequência, acreditava em 1916 na existência de uma história da Filosofia Portuguesa, que se propunha analisar numa série de trabalhos, o primeiro dos quais foi exatamente a sua tese sobre António de Gouveia. Não tendo podido levar a bom termo este seu plano, deixou-nos alguns contributos importantíssimos nesse domínio, acerca de autores como Leão Hebreu, António de Gouveia, Francisco Sanches, Verney e Antero de Quental, para apenas mencionar os que mereceram uma sua reflexão mais atenta, e deixando de lado outros como Pedro Hispano, Suárez e Pedro da Fonseca. Os próprios críticos estrangeiros se aperceberam desta sua preocupação de sublinhar o valor dos pensadores portugueses ou de origem portuguesa ou que se estabeleceram em Portugal: sobre ela escreveu Joseph Moreau  «qu´ il suffit de jeter un coup d'ceil sur la liste de travaux de Joaquim de Carvalho pour avoir une idée de la contribution du Portugal à la philosophie de l’Occident».

Por outro lado, embora cônscio da importância do filosofar, como evidenciou num dos seus discursos, nunca deixou de considerar como fundamental, indispensável até, antes de assumir o exercício da pesquisa filosófica, determinar as conexões de civilização, sem as quais esse exercício ficaria esvaziado de todo o seu conteúdo vivo e vital. Estabelecendo a sua conclusão sobre a análise que consagrou aos Dialoghi de Leão Hebreu, não se esqueceu de pôr em relevo  que essa obra, «na marcha do espírito universal, marca 'apenas um momento dialético do conceito de amor vincado e expresso pelo amor intelectual de Deus ' ». «Para o filósofo de hoje — afirma — é pouco; mas para o historiador da Filosofia é alguma coisa que merece fixar a sua atenção, tanto mais que, além de notar uma conceção filográfica mais ampla que a da Academia Platónica de Florença, assiste à formação e desenvolvimento de conceitos, não de todo alheios à ulterior especulação europeia». Ainda que o não exprima, Joaquim de Carvalho deixa entender que os Dialoghi d'amore, pela maior amplitude do campo em que o autor situa o debate das ideias, assume outras implicações que ultrapassam a esfera puramente filosófica a que se atinha o comentário ficiniano ao Banquete. Mas deixa subentender igualmente que tem como essencial dar atenção às balizas cronológicas, nos limites objetivos do que ele chama a «marcha do espírito universal».

Quer isto, então, dizer que o estudioso foi apenas um simples historiador da filosofia? Foi decerto, primariamente, um historiador da filosofia: a partir, porém, dos dados de um saber concreto, desenvolveu o seu filosofar próprio, como, aliás, escreve admiravelmente num dos estudos insertos neste volume.

Há pensadores que inventaram o seu sistema de conceção e de exploração da realidade antropológica e macrocósmica, e são os filósofos puros, criadores de novas teorias metafísicas. Outros renovaram os métodos e contribuíram para a descoberta dos meios de acesso a essa realidade. Descartes é porventura o modelo, já que Pascal não pôde criar uma filosofia sua que definisse as conexões do ser e das ideias, tendo, não obstante, estabelecido um estilo (esprit de finesse, esprit de géométrie) para o seu próprio filosofar (art de convaincre et d'agréer).

Mais homem de ciência do que filosofo, Pascal foi também, como é sabido, um grandíssimo matemático.

Há pensadores que não têm um seu próprio sistema de explicação do Homem e do Universo, mas aderem a um método já inventado e aceitam as descobertas que tornam suas, afeiçoando-as à sua forma mentis, à sua pessoal maneira de aceder à pesquisa da essência das coisas e de tentar clarificá-las através dos graus do progresso epistemológico. Esta aceitação, às vezes esta adoção dos vários meios de acesso ao conhecimento, que é uma espécie de marcha especulativa com vista à procura da razão de ser de tudo o que é ou existe e do seu esclarecimento através do domínio articulado da hierarquia do saber, costuma ser apodada de sincretismo. Joaquim de Carvalho não foi, neste sentido, um eclético, porque soube optar racionalmente por um sistema de explicação metódica do real. Giovanni Pico della Mirandola já foi também rotulado de sincrético até por alguns dos que talvez o tenham lido, embora sem aprofundarem a sua obra. É verdade que o pensador de Coimbra não se eximia a reconhecer algumas das suas simpatias intelectuais: preferia Platão a Aristóteles, Giordano Bruno a Pomponazzi, Francisco Sanches a Pedro da Fonseca, Descartes e Espinosa aos Conimbricenses e a todos os propugnadores de uma Escolástica decerto imponente como arquitetura da razão, mas afastada do centro de gravidade que deve ser o alfa e ómega de todas as aventuras do espírito contemplante e descobridor, ou seja o Homem. Sem fazer tábua-rasa do passado — como poderia isso acontecer, se ele se recusava a aceitar a pesquisa dialética divorciada do devir histórico? -, o investigador criou um pensamento que, na sua abertura à prospeção discursiva, procurava ser, e veio a ser de facto, moderno, problemático, livre, hostil a todos os dogmatismos. Não obstante, Joaquim de Carvalho foi, acima de tudo, um pensador de ideias incarnadas, isto é, formadas e renovadas no movimento espiritual que se esforçava por transmitir um logos humaníssimo e fraterno, comunicando-o, pela palavra, à adesão intelectual, posta diretamente em causa.

Ninguém, entre nós, foi tão capaz de operar este ato de adequação do saber ao repensamento metodicamente atuado das ideias, num estilo mais claro e mais exato. E verdade que também, neste domínio, nos legou contributos intencionalmente monográficos, limitados a tal ou tal autor, a tal ou tal obra. Mesmo quando menos profundos, esses contributos ostentam uma exemplar limpidez de expressão estilística. Na indagação conjuga a força intuitiva, não raro através de uma imaginação verbal que não se ousaria esperar — ainda que sempre discreta —, com uma compreensão explicativa dos nexos dialéticos. E de tal modo algumas dessas pesquisas são importantes por nos oferecerem uma exegese cristalina da evolução do logos, que pouco faltaria para com elas poder organizar o debuxo histórico do pensamento europeu. Foram tantos os autores que suscitaram o seu interesse e despertaram a sua curiosidade que só faltou o acabamento formal, através das articulações epocais, para que as análises fossem suscetíveis de converter-se numa síntese coerente. A evolução das correntes culturais e filosóficas foi decerto respeitada, mas o historiador, até por haver tratado os «seus» filósofos em períodos diversos, nunca se preocupou com integrá-los no vasto quadro geral de uma arquitetura histórica. Reconheçamos que, nesses belos capítulos de uma ampla suma inconclusa do pensamento europeu, reside um dos encantos da obra e a facilidade de acesso à sua leitura. Espírito livre e genuinamente problemático, Joaquim de Carvalho pôde assim exprimir-se como melhor quis: realizou, desse modo, a sua grande obra de pesquisador de ideias, embora, de início, tenha projetado tratar organicamente a História da Filosofia Portuguesa, o que só não conseguiu por ter prematuramente desaparecido.            


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