Joaquim de Carvalho (1892-1958), pensador e historiador, por José V. de Pina Martins

2. Ninguém, portanto, entre nós, deu no presente século contributos mais valiosos, operados com tanto rigor metodológico e histórico, com vista à publicação de uma história do pensamento português: essa história terá um dia de ser escrita não por um só estudioso, mas por um grupo de historiadores, filósofos e filólogos, ocupando-se de cada época. Nenhum investigador nosso nos ofereceu trabalhos de tão lúcida análise, de tão sólida ciência, acerca do pensamento europeu, desde Platão e Aristóteles até Hegel e Husserl, passando por Descartes, Espinosa e Locke. A leitura dos estudos incluídos neste volume poderá confirmar, sem qualquer dúvida, o asserto. Se alguns deles tivessem sido traduzidos em francês ou em inglês, teriam acarretado ao seu autor um prestígio que só não tiveram por estarem redigidos numa língua pouco acessível aos leitores de além-Pirenéus.

O Platão que mais o interessou foi o do Fédon e o do Simpósio, como se prova pelo trabalho incluído neste tomo e pelo admirável estudo sobre as leituras filosóficas de Camões. Este reflexo das suas simpatias intelectuais é ainda visível no seu escrito introdutivo à Metafísica do Perípato, a qual, com a Ética a Nicómaco, representa um documento do magistério platónico a que' Aristóteles foi sensível. Descartes tinha marcado profundamente a sua formação mental: o que se prova até pelo trabalho inserto neste volume, em que o pensador não deixa de sublinhar criticamente a conexão que remete a cultura filosófica portuguesa para os fontes do Discurso do Método. Mas a sua admiração por Espinosa levou-o a dedicar ao autor da Ética a mais importante dissertação que algum dia se tenha escrito em língua portuguesa acerca do «excomungado» da sinagoga de Amesterdão. No que concerne a outros contributos, quase todos eles apontam para a exploração crítica do pensamento português, excluindo os que consagrou a Hegel e a Husserl, em que se reflete o livre magistério de um universitário, não ilaqueado pelas exigências pedagógicas do ensino: são textos que denotam a frescura de uma leitura entusiástica, ainda que fiel, a exprimirem o desejo, que nunca pôde realizar, de um contato direto, in loco, com a filosofia germânica. Pelo que respeita ainda a Espinosa, só poderá deixar-nos perplexos o facto de Joaquim de Carvalho nunca haver estudado ex professo, detidamente, o Tratado Teológico-Político que, porventura, mais do que a Ética, seria de molde a interessá-lo. Se os seus anos tivessem sido mais longos, ter-nos-ia decerto oferecido um largo ensaio sobre esse texto famoso que ninguém, entre nós, melhor do que ele, estaria preparado para lançar e redigir.

Platão, Aristóteles, Giordano Bruno, Descartes, Espinosa, Locke, Hegel e Husserl: estes são, pois, os pensadores não portugueses a que o estudioso consagrou maior atenção, em dissertações de maior amplitude. O leitor aperceber-se-á de que, nestas páginas, o excurso e o discurso pressupõem um conhecimento exaustivo, às vezes explicitamente referido, outras só implicado, de toda a marcha do pensamento filosófico, desde o idealismo platónico até à fenomenologia. Ao tratar de Giordano Bruno (e também de Francisco Sanches), não podia deixar de ter presentes os caminhos da filosofia do Renascimento, sobretudo da fase naturalista, definida esta dentro dos limites temporais da segunda metade do século XVI. Mas a análise do pensamento renascentista, por todas as suas implicações literárias e filológicas, foi dotada de um timbre mais histórico-cultural, razão por que se trata de contributos que exorbitam da temática filosófica ou histórico-filosófica. Ao ocupar-se de Descartes e a cultura filosófica portuguesa, não podia deixar de focar os problemas relacionados com a segunda Escolástica, que Joaquim de Carvalho não amava, pelas tendências específicas da sua forma mentis, mas que profundamente conhecia e apreciava no seu justo valor. Os trabalhos que se vão incluindo na OBRA COMPLETA obedecem, dentro do campo temático, a uma ordem de sucessão cronológica. Como definir a evolução do pensamento de Joaquim de Carvalho, da sua escrita e do seu estilo, que refletem, como não podia deixar de ser, o progresso do seu domínio crítico do saber, a mestria cada vez mais orientada dos métodos de pesquisa intelectual, o seu amor crescente da limpidez discursiva, da ordem e clareza cartesianas?    

3. O leitor poderá por si mesmo, com facilidade, aperceber-se da evolução das ideias e do estilo de Joaquim de Carvalho, visto que os estudos, dentro de cada tema, estão dispostos pela ordem com que foram editados. Já em 1916, aos 24 anos — poderemos verificá-lo na tese sobre António de Gouveia —, o jovem investigador estava de posse de qualidades invulgares, pelo que respeita à pesquisa filosófica e à sua expressão literária. Três décadas depois, em 1946, quando o homem amadurecido escreveu a introdução ao Fédon, publicada em 1947, o pensador tinha evoluído no sentido da procura e do melhoramento progressista da arte do filosofar, o escritor através da limpidez da forma e da austeridade estrutural da escrita.    

A ensaística, crítica ou literária, não exige o mesmo rigor do discurso filosófico, pelo menos tal como hoje se pratica. A reflexão metódica, a dissertação monográfica e a investigação gnosiológica postulam um respeito vigilante pela historicidade do pensamento, pela exatidão da sua forma, pela clareza da expressão dos juízos. Se assim não fosse, a reflexão deixaria de ser ato crítico, para se limitar a simples exercício despretensiosamente dialético ou discursivo. Reflexão desencarnada, mesmo vazada em termos eleitos, acabará por não levar a conclusões sérias. A ginástica mental ou verbal pode ser útil, porque todo o esforço acaba por cifrar-se em progresso, mas não conduzirá a descoberta que valha a pena. Joaquim de Carvalho não desdenhou o cultivo da ensaística crítica ou literária, mas procurou sempre comunicar-lhe as características da pesquisa monográfica: estrutura compositiva, proporção arquitetónica, rigor, clareza e ordem na formulação judicativa ou discursiva, correção e elegância formais, tudo isto ao serviço da exploração conceptual, da investigação histórico-filosófica.             

Quando desapareceu, aos 66 anos, o pensador atingia a sua plena maturidade. Se um destino mais generoso ou mais justo lhe tivesse concedido ainda duas décadas de vida, até onde o teria levado a sua incessante atividade intelectual? A julgar pela evolução do seu estilo de pensar e de escrever, pelo progresso do seu método de reflexão crítica, podemos bem aceitar que nos teria oferecido outros estudos valiosos sobre o idealismo, o cartesianismo, o espinosismo e a fenomenologia. Se nos ativermos à cultura portuguesa, poderia ter escrito em 1972, por ocasião do centenário de Os Lusíadas, as dissertações que nos faltam para explicar a epopeia camoniana nas suas relações profundas com a filosofia e com a ciência do segundo Renascimento. Por exemplo: «Os Lusíadas» e o pensamento antropo-cosmológico de Giordano Bruno; «Os Lusíadas» e a ciência náutica e matemática do seu tempo. Ninguém, melhor do que ele, poderia ter composto e redigido um ensaio claro e ordenado acerca da erótica platónica da poesia de Camões, na perspectiva do Humanismo. Mas Joaquim de Carvalho desapareceu em 1958, tendo ultrapassado de menos de uma década os primeiros cinquenta anos do século. Se ainda se encontrasse junto de nós, neste nosso mundo de contrastes e contradições, não deixaria certamente de acompanhar-nos no júbilo que é o de todos os espíritos pacíficos, por assistirmos ao fraterno, progressivo diálogo entre famílias espirituais que ontem se combatiam.  


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