4. Joaquim de Carvalho, portanto, embora estivesse convencido de que, através da prática historiográfica, se poderia contrariar, por falta de vigilância crítica, a autenticidade do filosofar, escreveu uma obra que se caracteriza pela fidelidade às regras áureas da mais rigorosa historiografia. Essa preocupação de respeito por tudo que possa representar exigência no terreno da história das ideias em função da época em que surgiram e se desenvolveram, levou uma certa crítica a tê-lo como um simples historiador. Daí a julgá-lo um pesquisador de curiosidades anedóticas, mais sábio de coisas e de factos do que de conceitos, a distância não é grande. Será esta uma das razões por que o maior investigador do pensamento filosófico em Portugal jaz no purgatório de um imerecido esquecimento? Diga-se, em abono da verdade, que a cultura universitária não tem posto à margem Joaquim de Carvalho, cujos livros são constantemente e cada vez mais insistentemente procurados para as bibliotecas de ensino superior.
A nossa «crítica» — literária, historiográfica ou qualquer outra — está habituada a julgar como filosófico o que não entende. Daí que considere a reflexão límpida do professor de Coimbra como de erudição bizantina, de documentação confinada à monotonia árida de um passado já morto: o que para ela vale é o que supõe ser especulação teorética, identificada com o ensaio sobre temas contemporâneos, os únicos atingíveis por quem não tem olhos que possam penetrar na modernidade esplêndida das vivas civilizações de outrora. A ensaística, mesmo quando praticada por espíritos do fulgor de António Sérgio, é um género de exercício mental que foge à sistematização do pensamento crítico, que não se compraz com uma disciplina científica, respeitadora, como é óbvio, das categorias do filosofar, mas em relação direta e fiel com o evolver concreto do homem histórico. Pensar à luz do próprio testemunho ou da própria reflexão é decerto muito importante, sobretudo quando a escrita reflete, em forma correta e elegante, o sopro vivifico do intelecto. Quem ousará negar o valor dos Ensaios de António Sérgio na história da cultura portuguesa contemporânea? Pensar historicamente pressupõe, porém, a abstração depuradora e o sentido do concreto, a adequação das categorias do pensamento à vida dos povos, em transformação ininterrupta, a adequação do pensar original ao saber metodicamente elaborado, a harmonização do especular racional com as coordenadas vivas e vitais da civilização. Joaquim de Carvalho foi de tudo isso um alto exemplo, um paradigma. A nossa «crítica» está longe de poder compreender a perenidade de uma escrita que não se atenha aos tópicos consuetos da sua análise repetitiva, psitacista, ou, então, que não saiba abster-se de exibir os achadilhos lúdicos de modas já ultrapassadas lá fora, nos meios culturais mais evoluídos. Ë fruto de um equívoco, de um erro grave, que o ensaísmo lhe surja como a mais valiosa forma literária de criação especulativa, se nos ativermos à literatura dita de ideias.
Tudo o que é verdadeiramente literário tem de ser histórico, isto é respeitador do homem situado, da sua forma de exprimir-se hic et nunc, no espaço e no tempo da civilização. Criar sistemas pode ser tão ocioso como comprazer-se no hedonismo das congeminações verbais, na invenção fátua de falsos problemas que dão a ilusão, pela sua nebulosidade, de serem o que não são. A obra de Joaquim de Carvalho, escrita com primores literários invulgares, com limpidez paradigmática, é certamente de meridiana clareza, mas é uma obra difícil, pelos textos que estuda, recomenda e dilucida. Platão e Aristóteles, Pedro Hispano e Leão Hebreu, António de Gouveia e Francisco Sanches, Giordano Bruno e Pedro da Fonseca ou Suárez, Descartes e Espinosa, Locke e Verney ou Ribeiro Sanches, Hegel e Husserl são autores que, hoje, quase ninguém lê e cujos escritos, pelo menos entre nós, vão ficando arrumados nas estantes destinadas aos cartapácios poeirentos, às pesadonas, soporíferas teses. E, não obstante, se a crítica aceitasse um dia estudar — podendo-o — a obra de Joaquim de Carvalho, descobriria que, na primeira metade do século XX, tivemos um pensador como alguns dos melhores que floresceram, na mesma época, em França, na Itália ou na Alemanha; um historiador que não faz pesar o seu imenso saber na escrita límpida que nos legou; um autor de estilo fluente e austero, sóbrio, apesar do entusiasmo íntimo que anima e não raro transfigura a palavra em que nos informa, nos orienta, nos ensina, na descoberta das ideias e na arte rara do filosofar.
5. Os textos de Filosofia e História da Filosofia da OBRA COMPLETA de Joaquim de Carvalho exaurem-se neste segundo tomo, o que não quer dizer que os dois volumes contenham tudo o que há de filosófico e de histórico-filosófico nos seus escritos. Toda a classificação, pela sua rigidez, violenta os materiais que pretende ordenar. Mas nada de importante se pode fazer sem uma classificação que os disponha numa arquitetura proporcionada. Os estudos que se reeditaram nestes dois primeiros volumes são os que podem ser suscetíveis de uma ligação mais direta com a Filosofia e com a História da Filosofia. Outros poderiam ainda incluir-se aqui, mas, por estarem mais perto da história da cultura do que da história do pensamento, terão de arrumar-se nos próximos volumes. Quando toda a obra estiver publicada, poderá ver-se, então, como foram insignes, em Portugal, os serviços prestados pelo seu autor à Filosofia, à História da Filosofia, à História da Cultura, à História da Ciência, à História das Instituições e ao Pensamento Político.
Os dois primeiros volumes da OBRA COMPLETA de Joaquim de Carvalho são já, todavia, um verdadeiro opus magnum. Embora com uma estrutura mais homogénea, as duas teses sobre António de Gouveia e Leão Hebreu — que o seu autor parece ter depois deixado cair no olvido — não estarão, talvez, à altura da autenticidade, do vigor e mesmo da originalidade que se evidenciam em trabalhos ulteriores, como, por exemplo, as introduções ao Fédon de Platão, à Metafísica de Aristóteles e à Ética de Espinosa. O conjunto é, não obstante, do mais inovador, do mais importante que algum dia nos ofereceu um pensador português, preocupado ao mesmo tempo com a pesquisa gnosiológica, com o respeito pela documentação histórica e pela limpidez, correção e elegância da escrita literária.
Paris-Lisboa, Julho de 1981.
José V. DE PINA MARTINS