Algumas ideias capitais do Tratado Teológico-Político

O Tratado Teológico-Político é obra do alvor da maturidade; Espinosa publicou-o aos trinta e oito anos. Meditou-o longamente, consumiu laboriosos estudos escriturários e filológicos, recolheu os frutos, por vezes amargos, da experiência pessoal e alheia, iluminou-o com o clarão da sua metafísica, la plus réaliste, la plus scientifique, la plus nue et la plus pleine à la fois, enfin Ia plus redacta et reducta (J. Lagneau). Alguns, julgam-no o marco inicial da crítica bíblica; muitos, e não sem acerto, a suprema criação do génio de Espinosa; todos, assim os que o exaltam, como os que o deprimem, ou simplesmente desejam compreender, obra singular.

A mais recuada notícia sobre a sua elaboração procede da pena do autor; é o fragmento da carta dirigida a Oldenburgo, secretário da Sociedade Real de Londres, encontrada nos papéis de Boyle. Pelos meados de Setembro de 1665, Oldenburgo escreve a Espinosa e entre várias notícias informava-o de que os membros da Sociedade Real, apesar das calamidades da guerra e da famosa corporação não celebrar reuniões públicas, não esqueciam que eram filósofos, pois investigavam e experimentavam. Faria Espinosa o mesmo? «Vejo que não filosofais, mas, se a expressão é legítima, teologizais, visto ocupardes o pensamento acerca dos Anjos, da profecia e dos milagres. Provavelmente versais estes assuntos como filósofo, mas seja como for estou certo que a obra será digna de vós e desejo com impaciência conhecê-la. Já que estes tempos difíceis obstam à liberdade de correspondência, peço-vos que pelo menos indiqueis na próxima carta o objeto e propósito que tendes em vista».

Espinosa respondeu-lhe logo, em Setembro ou Outubro do mesmo ano, e dessa carta salvou-se apenas um fragmento, pequeno na extensão, porém de sumo valor:

«Tive satisfação em saber que os filósofos em cuja roda viveis se não esquecem de si próprios e do seu país. Para conhecer os seus trabalhos careço de esperar que os Estados em guerra se saciem de sangue e estabeleçam alguma trégua para repararem as forças. Se aquela personagem famosa que de tudo ria vivesse agora, certamente rebentaria a rir. A mim, porém, estas perturbações não solicitam o riso, nem as lágrimas; exortam-me antes a filosofar e a melhor observar a natureza humana. Com efeito, penso ser meu dever não rir nem deplorar a natureza, quando considero que os homens, como as restantes coisas, são apenas parcela da Natureza, e ignoro como cada uma destas parcelas convém com o todo e como se liga coerentemente às outras. Só esta privação do conhecimento é causa de certas coisas existentes na Natureza, e das quais tenho perceção parcial e limitada por não se ajustarem bem à nossa mente filosófica, outrora se me haverem figurado vãs, desordenadas e absurdas. Agora, porém, consinto em que cada qual viva segundo o seu gosto e os que querem morrer pelo que julgam ser o seu bem, que morram, contanto que me seja permitido a mim viver para a verdade. Componho atualmente um tratado, no qual explicarei o modo como considero a Escritura. Os motivos que a isso me levaram são os seguintes: 1.° Os prejuízos dos teólogos, pois sei serem os prejuízos o maior obstáculo que impede os homens de se aplicarem à filosofia; 2.° A opinião que o vulgo forma a meu respeito, não cessando de me acusar de ateísmo; sou, pois, forçado a combatê-la como puder; 3.° O meu desejo de defender por todos os meios a liberdade de pensamento e de palavra, pois uma e outra se encontram aqui ameaçadas pela autoridade excessiva e pelo zelo indiscreto de predicantes. Não ouvi ainda dizer a ninguém que um cartesiano tivesse explicado os fenómenos observados nos cometas recentes pela hipótese de Descartes, e duvido que isso seja possível... ».

O homem e o filósofo avistam-se destes períodos; deixemos um e outro para notar apenas que, por confissão do autor, o Tratado Teológico-Político, além do pensamento universalista que o inspirava, obedecia a intuitos de justificação pessoal.

Espinosa não queria ser considerado ateu. Estava no seu direito, e este direito era a um tempo vantagem e dever.

Vantagem, porque a dissipação da afronta resguardava-o do zelo incomodativo dos que pela violência querem sacudir a discordância e o erro nas costas e na bolsa do próximo. É uma maneira estupidamente fácil e egoísta de convencer o semelhante, que os filósofos, eternos recalcitrantes, sempre dispensaram de bom grado, e Espinosa melhor que nenhum compreendeu e perdoou, por saber que a brutalidade e a doçura são coisas igualmente naturais, dadas certas condições.

Dever, porque lhe cumpria arrancar a sua filosofia, ou por outras palavras, a sua religião pessoal, do lodo de interpretações falsas, malévolas e derrisórias em que os contemporâneos a atolavam e conspurcavam. Não o conseguiu; a depuração foi obra da posteridade: foi Novalis quem falou no «homem ébrio de Deus», e Renan «no vidente da sua idade, aquele que no seu tempo viu mais profundamente em Deus».

Nem a discrição e brandura do proceder, nem as afirmações expressas do pensamento, nem a estrutura interna da sua metafísica, na qual o conhecimento que explica é alicerce do conhecimento que salva, detiveram ou abalaram os contemporâneos —, Benedictus de Espinosa, Maledictus de Espinosa. Não prolongou Voltaire, volvido quase um século sobre a morte do filósofo, a incompreensão trivial, vestindo com versos andrajosos, de prosa rimada, fina e inteligente ironia?

Alors un petit Juif, au long nez, au teint blême, Pauvre, mais satisfait, pensif et retiré,

Esprit subtil et creux, moins lu que célébré, Caché sous le manteau de Descartes, son maître,

Marchant à pas comptés, s'approcha dru grand être: « Pardonnez-moi, dit-il, en lui parlant tout bas, Mais je pense, entre nous, que vous n'existez pas ».

Este foi ainda o juízo da Enciclopédia. Compreendamo-lo; a imputação de ateísmo nascera da hostilidade à insolência e desaforo do homem que abandonara a Sinagoga, não seguira Cristo, e escutava Jesus; crescera com a incompreensão da doutrina, e fortaleceu-se com a resistência e aversão ao inovador, e que inovador!     

O Tratado Teológico-Político, como o título adverte, é simultaneamente obra teológica e política.       

A associação de matérias tão diferentes, e quase sempre desavindas, pode parecer hoje singular e extravagante. Não o era, porém, para os setecentistas, — recorde-se apenas o Leviathan (1651), de Hobbes —, e sobretudo para Espinosa, pelas condições e termos em que examinou os fundamentos e o âmbito da liberdade de pensamento.

As teorias políticas então dominantes, e que, como já vimos, aspiravam à dominação, apresentavam o Estado como instituição teocrática isto é, o poder público derivante da vontade divina expressa nas Escrituras. Para os defensores desta conceção, o reconhecimento legal da liberdade de pensamento era impossível: teoricamente, por ser contraditório, praticamente, porque abria os diques à anarquia. Se todo o poder vem de Deus e a vontade divina preside à comunidade política, a liberdade de pensamento, na espécie a liberdade crítica em matéria religiosa, tornava-se sinónima, a um tempo, de blasfémia e de traição pública.

Espinosa repudiou a teoria, negando-lhe as bases; por isso fez, simultaneamente, obra de teólogo e de político. Em que proporção? Como Bossuet, embora diversamente, extraiu Espinosa uma política das Escrituras, ou, pelo contrário, foi a Escritura interpretada à luz de certa política?


?>
Vamos corrigir esse problema