Algumas ideias capitais do Tratado Teológico-Político

Se compara entre si as profecias, observa que as coisas são representadas, incluindo Deus, corporalmente —, Deus tem figura humana, numas aparece sentado, noutras de pé, chegando mesmo algumas a atribuir-lhe paixões, como a vingança, o arrependimento, compaixão; se compara mutuamente os profetas, nota que cada um fala segundo a sua índole e opiniões. Amos, aldeão, só vê bois e vacas; Isaías, palaciano, tronos, e na boca de todos, Deus fala uma linguagem bárbara, nem sempre isenta de grosseiros erros científicos. Geralmente incultos, apenas excederam o comum dos homens na viveza da imaginação, que não da inteligência. O saber, se o tiveram, não lhes adveio da aplicação do intelecto; nasceu da exaltação da imaginação.

Acreditaram sempre os Judeus serem o povo eleito, e a voz dos seus profetas manifestar a revelação; porém, a própria Bíblia testemunha que o dom da revelação não foi dom privativo do povo do Senhor. Não disse S. Paulo que Deus é o Pai de todas as nações?

A profecia é atributo do espírito humano, e nos profetas hebreus não se adquire o conhecimento de Deus nem o conhecimento da Natureza; o seu valor é moral e edificante da conduta da vida.

A celebração do culto não tem em si mesma carácter absoluto de obrigação. Os profetas distinguiram sempre a Lei Divina dos ritos, e o Antigo Testamento adverte que as cerimónias foram estabelecidas para que o povo obedecesse às leis por devoção. Elas simbolizam valores necessários à salvação; apesar de acessórias e indiferentes, têm o mérito de encaminharem os homens para o amor de Deus.

O conhecimento por imaginação, de que é exemplo o conhecimento profético, ao contrário do conhecimento intelectual, não tem em si próprio a garantia da certeza; carece de prova exterior. O milagre é uma dessas provas; mas é acaso possível o milagre, ou não será antes sinónimo de ignorância?

No Antigo Testamento os eventos naturais não são considerados como necessários e o miraculoso é justamente o que impressiona a imaginação. Imagina-se o poder de Deus à maneira da majestade de um rei absoluto e a Natureza como teatro do poder divino; o insólito quer na cessação das causas eficientes, quer na emergência do inaudito ou insuspeitado, é o milagre, ou, por outras palavras, o testemunho da vontade de Deus?

Espinosa repudia a ideia da independência recíproca de Deus e da Natureza; o primeiro livro da Ética é a demonstração metafísica da identidade de Deus e do Universo, isto é, do panteísmo, se por panteísmo entendermos não a identificação de Deus com o mundo sensível, mas a identificação de Deus com a inteligibilidade da Natureza, isto é, da Natureza tal como a concebe e explica o entendimento puro.

A sua metafísica e conceção das leis científicas e da ordem do Universo não toleravam a admissibilidade do milagre; mas ao repudiá-lo, o pensamento de Espinosa não se confunde com o dos racionalistas contemporâneos, designadamente Louis Meyer, seu amigo dedicado.

Ele não julga o milagre ininteligível; julga impossível atribuí-lo a Deus, porque se Deus é a ordem do Mundo e o Mundo é regido por leis necessárias e universais, que são as leis do Universo senão a manifestação da eternidade, da infinidade, e da imutabilidade de Deus? Qualquer evento é o termo de uma série indefinida de causas, e nenhum termo intermédio pode ser eliminado sem que ipso facto se destrua a ordem total e necessária do Universo, ou por outras palavras, Deus.

O milagre, portanto, não prova a seu ver a existência de Deus; pelo contrário, se existisse, seriam os céticos e os ateus que dele tirariam partido contra a existência de Deus.

O milagre, porém, tem na Escritura elevado alcance: a edificação das almas. Eles revelavam aos simples a doutrina da santidade da vida; hoje são o escândalo do pensamento, mas a santidade da vida que inculcavam persiste intacta. Se assim não fosse, isto é, se a Bíblia não revelasse o divino, a Bíblia seria, como o Alcorão, um livro dispensável. A mensagem bíblica é eterna, mas onde reside o seu valor?

Como acabámos de ver, para Espinosa nada há de sobrenatural nas profecias, na eleição do povo hebreu e nos milagres; nada há de essencial nas cerimónias da Lei. O valor da Bíblia reside na doutrina e no ensino da obediência e da piedade, que os profetas e a tradição, mediante recursos acidentais, levavam ao conhecimento dos simples. A legislação bíblica não foi, pois, a promulgação de dogmas abstratos e       «a Escritura está adaptada não só à compreensão dos profetas, mas também à compreensão do baixo povo judeu, vário e inconstante», e portanto as profecias, os milagres e o culto tiveram por missão aconselhar a obediência e a virtude, numa palavra a religião e a fé universal do género humano Pouco importa a verdade ou a falsidade dos dogmas; o essencial é que as almas se inclinem e pratiquem a piedade e a obediência aos mandamentos divinos. «A fé não exige expressamente dogmas verdadeiros, mas dogmas que gerem necessariamente a obediência, isto é, que confirmem a alma no amor do próximo, pois é só na proporção deste amor que cada um existe em Deus (para falar como João) e Deus existe em cada um... »

«A Fé católica ou universal não contém dogmas, acerca dos quais possa haver controvérsia entre os homens honestos. »

« (...) Pertencem à Fé católica, [isto é, à universalidade do género humano], apenas os que inculcam absolutamente a obediência a Deus e cuja ignorância determina necessariamente a impossibilidade da obediência; quanto aos outros, o direito de cada qual adotar os que lhe parecerem melhores para se confirmar no amor da Justiça. Por esta regra penso que as controvérsias não terão lugar nas Igrejas. »

«Não hesito agora em enumerar os dogmas da Fé universal, isto é, as crenças fundamentais que a Escritura universal tem por objeto estabelecer. Para um princípio só devem tender estes dogmas, a saber: existe um Ser Supremo que ama a Justiça e a Caridade, e ao qual, para serem salvos, todos devem obediência e adoração, praticando a Justiça e a Caridade para com o próximo. Partindo deste princípio, facilmente determinamos os dogmas, que são os seguintes, e não outros:

«1.° — Existe Deus, isto é, um Ser Supremo, soberanamente bom e misericordioso, ou por outras palavras, um modelo de vida verdadeira; quem o não conhece ou não crê na sua existência não pode obedecer-lhe ou reconhecê-lo como Juiz;

«2.° — Deus é único, e ninguém pode duvidar disso, porque é absolutamente necessário que exista um objeto supremo de devoção, de admiração e de amor. Porque a devoção, a admiração e o amor nascem da excelência única do ser que é sobre todos os outros;

«3.° — Ele é omnipresente e omnividente. Se se acreditasse que havia para ele coisas ocultas e se se ignorasse que ele vê tudo, duvidar-se-ia da equidade da sua Justiça, que tudo dirige;

«4.° — Tem sobre todas as coisas direito e autoridade supremas; não obedece jamais a autoridade estranha, age em virtude do seu bom-prazer absoluto. Todos lhe devem obediência; ele não obedece a ninguém;


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