Espinosa e os Judeus de Amesterdão

Como se vê, Espinosa não descurou os grandes e pequenos interesses, e que movimentava certo capital prova-o o documento de 17 de Novembro de 1655, pelo qual endossou em seu nome e no de seu irmão e sócio (compagnon) Gabriel —, desconhecido até então, pois nenhum biógrafo o mencionava — uma letra sobre Lisboa, de 870 cruzados portugueses.

Nestes documentos Bento Espinosa é qualificado de «um mercador português desta cidade», e a designação autoriza a conjetura de ele haver dirigido a casa comercial herdada de seu pai. Ao cabo de dois anos, porém, parece que abandonou os negócios, porque em Março de 1656 procedeu à liquidação da herança paterna; o documento respetivo indica-o como credor privilegiado, na sua qualidade de filho, com uma hipoteca legal sobre o conjunto dos bens da sucessão, e refere que para o efeito se lhe nomeou um tutor. Este facto, singular e dificilmente explicável em quem exercera até então atos jurídicos comerciais, parece sugerir, como observa Rivaud, que coincidindo a liquidação da herança com o seu afastamento da Sinagoga, ele recorreu ao engenhoso artifício jurídico de se declarar menor para confiar a gestão dos negócios a sócios ou indivíduos, que os administrassem, sem o seu nome figurar publicamente. «Assim, no caso de graves dificuldades com os correligionários, ele teria pelo menos posto em segurança uma parte dos seus haveres.»

Julgar-se-ia Espinosa incompetente para administrar os negócios? Era a fortuna avultada? Decidiria consagrar-se, como Descartes, exclusivamente à vida teorética?

Pode conjeturar-se com muita verosimilhança que, receando a expulsão da comunidade israelita, previra a impossibilidade do trato comercial e social com os antigos correligionários, e consequentemente liquidasse ou transferisse os haveres, acautelando-os com resguardo. A resposta àquelas perguntas, porém, não é fácil; os documentos notariais dizem-nos apenas que, pelo menos nos dois anos que precederam a sua exclusão da Sinagoga, ele exerceu o comércio. Este facto acrescenta um elemento desconhecido à biografia da sua mocidade, e revoca em dúvida certos juízos tradicionais; contudo em nada altera o que sabíamos acerca da sua escolaridade e formação intelectual.

Como os seus dois irmãos e o futuro cunhado Samuel Casseres, frequentou a escola de Talmud-Tora, mas só Samuel Casseres ascendeu a rabino.

Aos quinze anos, segundo cálculos prováveis, Baruch era o orgulho da escola que, anexa à nova Sinagoga, funcionava desde 1620. Os mestres admiravam-lhe a inteligência, e Saul Levi Morteira, o mais famoso de todos, «não podia compreender que um rapaz de tanta penetração fosse tão modesto» (Lucas); os condiscípulos pasmavam das suas respostas argutas e irónicas, e a comunidade dos fiéis revia-se no futuro servo de Adonai. A sua inteligência e a sua aplicação não prometiam, porventura, à Sinagoga um novo luminar, cujos escritos os doutos de Veneza, de Hamburgo, de Salónica, haveriam de meditar, e cuja fama atingiria a própria Jerusalém, a do Ano Próximo?

Esperanças ilusórias! A Bíblia, o Talmud, a Cabala, Maimónides, o «primeiro rabino que deixou de dizer tolices», no juízo talvez acertado de Leibniz, não contentavam o espírito do jovem Baruch; a tendência ingénita, decantada pelas subtilezas funambulescas da interpretação do Talmud, e a leitura de Descartes, desvendando-lhe conhecimentos insuspeitados, incitaram-no a prezar acima de tudo a evidência e a clareza das ideias. Baruch dá então, por volta dos vinte anos, o passo sempre arriscado no caminho da autonomia mental e moral. Ele nota que a leitura crítica dos textos sagrados nem sempre coincide com a tradição, e insensivelmente as suas inquietações religiosas, sinceras e profundas, tendem para o sossego intelectual de uma conceção do Mundo e da vida, clara, coerente, consistente. Procurá-la e fundamentá-la com o rigor das demonstrações geométricas vai ser o escopo da sua vida de homem livre...

Harmonizando o proceder com o pensar, evita as assembleias, não assiste com frequência à Sinagoga, cria relações com Cristãos, e da sua boca soltam-se às vezes ditos, que parecem estertores da fé moribunda —, os anjos são fantasmas, a alma é mortal, Deus é a extensão infinita dos corpos — e logo chegam aos ouvidos dos rabinos e dos senhores do mahamad. A desconfiança surge, naturalmente, na comunidade, e os murmúrios passam a escândalo, e o escândalo a ódio quando se espalha a notícia de que Baruch repudiara as exortações de Morteira, ficara indiferente à ameaça da excomunhão, não se deixara seduzir, se é exato o informe de Bayle, no Dicionário Histórico, por promessas de dinheiro, nem se intimidara com a tentativa de assassinato de um zelote fanático. Imperturbável, renitente à hipocrisia, a resipiscência não tem lugar na sua alma, porque a crise religiosa que atravessa não encontra na obediência à Lei e no ensino dos rabinos a paz que apetece. A desconfiança força-o a procurar a companhia de Cristãos, e daí, a suspeita de apostasia; frequenta o médico Van den Ende, homem singular, sucessivamente jesuíta livreiro, mestre-escola, conspirador, católico praticante e ateu declarado, o qual lhe ensina o grego e o latim e por cuja filha corria o boato de se haver apaixonado, e, suprema audácia em antigo estudante do Bet-Midrash, troca a meditação dos livros sagrados pelo estudo da física. Senhor da sua consciência, resolve-se, por fim, a abandonar definitivamente a fé dos seus maiores para ficar consigo próprio de boa-fé.

Baruch torna-se então o alvo insistente dos ódios da comunidade.

Citam-no para a retratação; porém, lembrando-se talvez do exemplo fatal de Uriel da Costa, não compareceu, e contra o prófugo transviado, pela boca do velho Aboab, rabino de grande reputação, o sinédrio decretou a excomunhão schammata, a mais terrível das excomunhões:

«Notta do Herem que se publicou da Theba em 6 de Ab, contra Baruch espinoza.

« Os SS. do Mahamad fazer saber a vms: como ha diaz que tendo noticia das más opinioins e obras de Baruch de espinoza, procurarão por differentes caminhos e promessas, Retiralo de seus maos caminhos, e não Podendo remedialo, antes pelo contrario tendo cada dia mayores noticias das horrendas heregias, que practicava e ensinava e ynormes obras que obrava, tendo disto muitas testemunhas fidedignas, que depugerao e testemunharão tudo em prezensa de ditto espinoza, de que ficou convencido, o qual tudo examinado em prezensa dos SS. Hahamim, deliberarao com seu pareçer, que ditto espinoza seja enhermado e apartado da naçao de Israel, como actualmente o poin em herem, com o Herem seguinte: «Com sentença dos Anjos com ditto dos Santos, nos Enhermamos, apartamos e maidisoamos e praguejamos a Baruch de espinoza, com consintimento dei D(eus) B(endito) e consintimento de todo este K(ehila) K(adoscha) diante dos santos sepharim estes, com os seis centos e treze preceitos, que estão escritos nelles, com o herem, que enheremou Jehosuah a Jeriho, com a maldissao, que maldisce Elisah a os Mossos, e com todas as maldisois, que estao escrittas na ley, malditto seja de dia e malditto seja de noite; maldito seja em seu deytar, e malditto seja em seu levantar; malditto ele em seu sayr, e malditto elle em seu entrar; nao querera A(donai) perdoar a elle, que entonces fumeara o furor de A. e seu zelo neste homem, e yazera nelle todas as maldisois, as escritas no libro desta Ley, e arrematara A. a seu nome debaixo dos Ceos, e apartaloa A. para mal de todas as tribus de Ysrael, com todas as maldisois do firmamento, as escritas no Libro da Ley esta; E vos os apegados com A. vosso D.3 vivos todos vos oye. Advirtindo, que ninguem lhe pode falar bocalmente, nem por escrito, nem dar lhe nenhum favor, nem debaixo de tecto estar com ele, nem junto de quatro covados, nem leer papel algum feito ou escritto por ele ».


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