Oróbio de Castro

ORÓBIO DE CASTRO

O famoso controversista nasceu em Bragança, numa época em que a tolerância havia sucumbido à atrocidade de leis, que perseguiam e faziam expiar a fé jurada e a constância dos mais respeitáveis sentimentos como crimes monstruosos.

Ignora-se ao certo o ano do seu nascimento; supõe-se, no entanto, que ocorreu por volta de 1620.

Dos pais sabe-se apenas que eram cristãos-novos, ou marranos. Como tantas outras famílias cristãs-novas, a sua vida exterior era pública e ostensivamente católica; porém no recato familiar, nas máximas educativas e na convivência íntima, mantinham tenazmente a esperança na Terra da Promissão.

Por então, os judeus confessos não tinham entre nós existência legal; e os suspeitos de judaísmo, pela ascendência do sangue, pela prática de ritos, ou simples abstenção de certas viandas, viam-se excluídos do exercício das funções públicas e na iminência constante da delação, da inveja ou de um ódio mesquinho, os colher na rede trágica das devassas, das torturas e do auto-de-fé.

Oh! Como é triste que o nosso povo, tão misericordioso da desdita alheia, houvesse tolerado as aviltantes ofensas à dignidade humana e à caridade cristã!

É fácil, aparentemente, decretar o silêncio, e mesmo o extermínio das crenças, constrangendo com o aparelho coativo da força pública os mais recônditos sentimentos; na realidade, porém, só se estimulam com tais preceitos e se logram com tais práticas a hipocrisia e a traição. Por isso, não é de surpreender que o cripto-judaísmo houvesse sido a um tempo escola de dissimulação, de revolta e de ignávia, a qual tudo contaminou e perverteu, costumes e atividades, ideias e sentimentos. As responsabilidades da infecta corrupção, que tem resistido à assepsia da Liberdade, não pertencem a Israel, porque recaem de pleno sobre os guardiães daquela conceção política, que colocou o Estado perante a vil alternativa de perseguir ou de se desonrar.

Quando evocamos a vida dos nossos burgos medievais salta à vista que as judiarias foram grémios de gente inassimilável pelos sentimentos, pelas ideias e pelo labor; parecem corpos estranhos, desligados do organismo da Nação, vivendo na desconfiança permanente e no exercício arteiro e sugadoiro de mesteres que não radicavam no solo nem nos interesses profundos da grei. Seria extremada cegueira não ver os perigos sociais que esta lida parasitária desentranhava, mormente após a expulsão dos judeus de Espanha, a qual quase colocou a gente portuguesa à beira de se degradar em colónia israelita.

Simplesmente, a necessidade pública é uma coisa e a forma como foi resolvida outra, e é esta que perduravelmente vindicará os direitos da consciência monstruosamente trucidados pela política autocrática e liberticida de D. João II e D. Manuel.

O judeu é, sem dúvida, um indivíduo inassimilável; contudo, não foi Israel quem criou a judiaria, senão que foi a judiaria, isto é, o regime legal e social da segregação e do apartamento, que gerou o isolamento moral de Israel, a sua lida parasitária e, como defesa, a ambição do oiro, expressão da riqueza facilmente transportável e de universal valia. O regime de liberdade de cultos — provam-no a alta Idade Média e o século XIX — não gerou em parte alguma a rebelião interior nem o divórcio social. Regime de convivência moral, conferindo ao desconforme o reconhecimento da personalidade religiosa e humana, trouxe sempre consigo a paz das consciências e a solidariedade nas agruras e alegrias nacionais; pelo contrário, o regime de apartamento e a unificação ortodoxa coativamente imposta conduziram Israel a protestar intimamente pela fraude e pela inimizade contra as afrontas da intolerância, a agasalhar-se, enquanto pôde, na Sinagoga, e, quando desse conforto foi privado, a dissimular, por vezes torpemente, a fé inquebrantável na Lei.

É, porventura, digno vituperar aquele que, para resguardar a crença ou arreigada convicção, troca corajosamente a ignoscência que se lhe oferece pelo inferno das hostilidades e provações?

Depois do édito da expulsão, cerrados os caminhos da confissão franca e digna, o Judaísmo refluiu sobre si próprio; tornou-se secreto, recatou-se entre nós nas povoações fronteiriças de Trás-os-Montes e das Beiras, e por fim degenerou numa espécie de religião bifronte, misto da Lei e do Evangelho, a qual, se vindicou altivamente a insensatez de todas as violências contra a consciência religiosa e moral, também nos ensina como se transformam sociologicamente as religiões.

Sem sacerdotes, quebrada a tradição pelo encerramento das Sinagogas, o cripto-judaísmo volveu-se em numerosas famílias numa forma de protesto íntimo, guardando do ritual tão só a lembrança de uma ou de outra prática observável na intimidade do lar.

Oróbio de Castro foi batizado catolicamente, recebendo o nome de Baltazar; informa-nos, porém, o biógrafo anónimo da Bibliotheque Universelle et Historique de l'année 1687, cujo escrito julgamos ser a mais antiga biografia de Oróbio, que ele foi educado em sentimentos israelitas, embora os pais guardassem do Judaísmo somente a observância do grande jejum de Kipur.

É tudo o que sabemos acerca deles; conjeturo, no entanto, que deviam usufruir alguns bens de fortuna, pois o mesmo biógrafo assegura que Baltazar Oróbio estudou a filosofia escolástica na Universidade de Salamanca. Saindo de Portugal na adolescência, parece que Baltazar nunca mais pisou a terra natal. A sua vida vai desenrolar-se pela Espanha, pela França e por fim na Holanda.

Em Espanha, diz o biógrafo da Bibliotheque Universelle que se tornou tão hábil na Filosofia que logrou o leitorado de Metafísica na Universidade de Salamanca, aplicando-se posteriormente ao estudo da Medicina, que exerceu em Sevilha. Outra notícia, igualmente anónima, porém, informa que ele foi catedrático de Metafísica e de Medicina nas Universidades de Alcalá de Henares e de Sevilha, médico da Câmara do Duque de Medina Celi e da família de Borgonha do rei Filipe IV.

 Os judeus peninsulares (Sephardim) jactavam-se de exibir em Amesterdão escudos heráldicos e títulos de valimento social perante a sociedade holandesa e a arraia miserável dos judeus alemães (Asknasim) não raro, entre eles, a impostura ocupou o lugar discreto da modéstia. Não ouso afirmar que Oróbio houvesse sido impostor; suspeito apenas que os correligionários, para se honrarem vaidosamente a si próprios, o decoraram com títulos que ele não possuiu, assim como o fizeram retratar com o ar senhoril e imponente de um marechal vitorioso.

O nome de Oróbio de Castro não aparece na tábua dos professores da Universidade de Salamanca, e se é certo que não pudemos apurar se ensinou efetivamente nas Universidades de Alcalá e de Sevilha, temos por seguro que algum facto ocorreu para que na Holanda constasse como certo que professara numa ou várias Universidades de Espanha. De positivo apenas se pode assegurar que fora médico e exercera a profissão em Sevilha, talvez como médico da câmara do Duque de Medina Celi.

Foi em Sevilha que a Inquisição o prendeu como judaizante e onde, talvez, se decidiu intimamente pelo caminho franco do Judaísmo. Ignoramos a causa concreta das suspeitas da Inquisição; o que se sabe é que Oróbio contava mais tarde, na Holanda, as torturas que sofrera, a ponto de quase perder o entendimento, e como enchera a solidão do cárcere argumentando consigo próprio, à maneira das teses e disputas universitárias, sobre temas de metafísica. Resistindo a tudo, negando sempre, não se produzindo prova, Oróbio foi solto.


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