Oróbio de Castro

 

JOHAM BREDENBURGO

Joham Bredenburgo pertenceu à roda daqueles burgueses da Holanda para quem os problemas teológicos e filosóficos assumiram uma importância vital. Homem obscuro, da sua vida quase tudo se ignora; sabe-se que nasceu em Roterdão, seu pai havia pertencido à Junta da Igreja Luterana desta cidade, e casara com Catarina Oudaen, e diz-se que estivera à testa de uma loja ou fábrica de tecidos, pelo que alguns contemporâneos lhe chamavam tecelão, como Jorge Matias Kõnig, na Bibliotheca vetus et nova —, textorem quendam Rotterdamensem. Alguns biógrafos acrescentam que faleceu por volta de 1691, e aprendera o latim na derradeira quadra da vida, depois de 1670, talvez para poder ler no original o Tratado Teológico-Político.

O seu nome deve a notoriedade a Pedro Bayle, no célebre artigo sobre Spinoza do Dictionnaire historique et critique, e a Leibniz, nos Essais de Théodicée (§§ 373 e 374) —, notoriedade por assim dizer de empréstimo, pois utilizaram o seu caso de consciência e as suas dúvidas intelectuais para ferirem o espinosismo. Por isso, a posteridade guardou apenas da vida de Joham Bredenburgo as vicissitudes das suas reflexões, tanto mais singulares e notáveis, quanto é certo brotarem de um autodidata, no mais rigoroso sentido da palavra.

O seu primeiro escrito apareceu em 1671; intitulava-se Traetjes over Tafel, behelsende consideratien over den Vredehandel, Amesterdão, (Conversação à mesa, considerações sobre as negociações de paz), e com ele parece não ter granjeado grande fama. As reflexões políticas iriam, porém, suceder as reflexões teológico-filosóficas, com maior fortuna e notoriedade.

Deu-lhes ensejo o aparecimento do Tratado Teológico-Político; o espírito de Bredenburgo, convictamente religioso, ficara abalado com a leitura do revolucionário livro, o qual, despertando-o para a crítica, o incitou a refletir sobre a antiga conceção do Mundo, que Tolland mais tarde apelidará de panteísmo e Espinosa renovara com admirável modernidade, e por fim a escrever em 1675, na sua língua materna, uma refutação do princípio nuclear do Tratado, isto é, a identificação de Deus e da Natureza. Diz-se que um amigo indiscreto mandou imprimir este escrito, hoje raríssimo, cuja tradução latina, encomendada pelo autor, surgia a público neste mesmo ano com o seguinte título: Enervatio Tractatus Theologico-Politici, una cum demonstratione geometrico ordine disposita, Naturam non esse Deum, cujus effati contrario praedictus Tractatus unice innititur.

Como o título indica, Bredenburgo esforçara-se por demonstrar more geometrico a incompatibilidade das noções de Deus e da Natureza, e, porque não era letrado nem exercia profissão liberal, houve naturalmente quem se admirasse do aparato da refutação e que o autor houvesse podido pénétrer si subtilement tous les principes de Spinoza, et les renverser heureusement, après les avoir réduits par une Analyse de bonne foi dans l'état oíí ils pouvaient le 'mieux paroitre avec toutes leurs forces (Bayle). Bredenburgo, contudo, não tivera em vista lograr a admiração das gentes; pensava de boa-fé e procurava a verdade honradamente, embora não faltasse quem descobrisse na sua argumentação o ilogismo de alguns raciocínios e até a apologia dissimulada do «execrável» panteísmo de Espinosa. Conta Bayle, a fonte capital e crível dos nossos informes, pela lucidez da sua admirável inteligência e pela segurança da sua prodigiosa erudição, por demais, neste caso, socorrida pela prolongada estadia em Roterdão, que Bredenburgo, ayant réfléchi une infinite de fois sobre a refutação daEnervatio, concluíra, por fim, que era viciosa, isto é, descobrira a verdade da demonstração do princípio espinosista Deus sive Natura.

Decidiu-se então a condensar num escrito, que redigiu em flamengo, a série dos seus raciocínios, com os quais empreendia prouver qu'il n'y a point d'autre cause de toutes choses, qu'une nature qui existe nécessairement et qui agit par une nécessité immuable, inévitable, et irrévocable (Bayle); para que a prova alcançasse o máximo rigor demonstrativo apresentava-a more geometrico.

Como se vê, operara-se no espírito de Bredenburgo a subversão das antigas ideias metafísicas; ao dualismo transcendente e irredutível de Deus e da Natureza sucedia agora a conceção monista da existência absolutamente necessária de um ser — Deus sive Natura — imanente e causa de todas as coisas, agindo por necessidade intrínseca e inevitável.

Na informação de Bayle, Bredenburgo teria desejado destruir a nova construção intelectual, e porque a sua razão lhe não encontrara o ponto fraco e vulnerável apelara para a dos amigos, na esperança de lhe patentearem o vício original e os paralogismos. Por isso, resolveu não dar publicidade ao novo escrito; porém, Francisco Cuyper (1629-1692), pastor da comunidade remontrante de Vlaardingen em 1652, que pouco depois abandonou para montar uma livraria em Amesterdão, onde editou, a partir de 1656, a Bibliotheca fratrum polonorum quos Unitarios vocant, e que, como vimos, fora um dos críticos do Tratado Teológico-Político, obteve uma cópia e publicou-a com algumas reflexões, das quais se destacava a acusação de espinosista, ou antes de ateísta. A tradução latina do opúsculo de Bredenburgo tem o título — J. Bredenburgi Mathematica Demonstratio, quod omnia entia, rationis capatia, necessario operantur, cuja tradução castelhana foi incluída entre as peças que constituem o Certamen Philosophico de Oróbio de Castro; supomos que a publicação holandesa teve por título — J. Bredenburgs verhandeling van de oorsprong van de Kennisse Gods, en van desseifs dienst. Alleen uyt de natuurlyke reden afgeleyd, buyten alie openbaringen of Mirakelen, etc. Van welken hy hier verklaart, dat men daaruyt niet kan bewysen, dat'er een God is, ais men dat niet alleen uyt de natuur kan bewysen. Waar voor een Schriftje van Barento Joosten Stol gevoegd is, behelsende eenige zielverderffelyke steilingen van J. Br., met de genen die hier verhandeld worden, zeer wel over eenkomende, Amesterdão, 1684, in-4.°, de 48 págs. (Tratado de J. Bredenburgo sobre a origem da ciência de Deus e do serviço divino. Derivado só da razão natural, fora de todas as Revelações ou Milagres. Dos quais ele aqui declara que não é possível demonstrar com eles que haja Deus, se não for possível prová-lo apenas pela Natureza. Acrescenta-se um opúsculo de B. J. S. contendo algumas proposições execráveis (literalmente: que corrompem a alma) de J. Br. que se parecem muitíssimo com as de que se trata aqui).

A publicação deste opúsculo causou extraordinária surpresa; logo houve quem notasse com indignação a conversão do autor da Enervatio, que de adversário de Espinosa se volvera em seu sequaz, tanto mais que Cuyper não hesitara em o denunciar como ateu. Não patenteava, porventura, a conversão de Bredenburgo a expansibilidade tentacular do espinosismo, cuja energia resistia a toda a casta de perseguições e de assaltos?

Compreende-se a veemência da acusação de Cuyper; apesar de ambos haverem abraçado a teologia liberal dos Colegiantes de Renoburgo, a discórdia separa-os, a ponto de chefiarem as duas correntes religiosas em que se cindiu a comunidade.

Duvida-se se Cuyper copiou furtivamente o opúsculo de Bredenburgo, traindo a promessa de o ler sem o copiar, ou se, como ele protestava e afirmavam os amigos, encontrou o manuscrito nos papéis de Hartigvelt, de quem fora herdeiro. Biograficamente, é um pormenor de escassa importância; não assim moralmente, e, sobretudo, na história do espinosismo, a um tempo pela impossibilidade histórica de remontar certas ideias e atitudes de Espinosa à teologia dos Colegiantes  e pela polémica que a publicidade do opúsculo desencadeou, a qual renovou a velha querela das fronteiras da razão e da fé e suscitou a análise contemporânea da extensão do conceito de necessidade.


?>
Vamos corrigir esse problema