Lugar do Certamen Philosophicum na literatura anti-espinosana

A Ética, obra suprema do génio de Espinosa e sua derradeira meditação, dá a impressão de haver sido pensada e escrita para uma pequenina roda de doutos iniciados; o seu aparato geométrico, a contenção que a sua leitura exige, o saber que pressupõe, o préstimo do conhecimento que explica ao conhecimento que salva, tornam-na inacessível ao vulgo, a despeito da popularidade que conquistou.

Não resguardará a inacessibilidade uma doutrina recôndita, e não se velará sob a clareza lógica do método geométrico, que Espinosa aplica uniformemente a Deus, à alma e às ações, aos desejos e anelos humanos como se fossem «linhas, superfícies e volumes», um pensamento alegórico, porventura militante, que se socorre do mistério para se não descobrir?

O espinosismo, ao contrário do cartesianismo, em parte seu genitor, não consistia apenas numa teoria da ciência e na metafísica do ser, porque é estruturalmente uma maneira de conceber a vida e de fruir a sensação de eternidade pela inefável identificação com Deus: sentimus experimur que nos aeternos esse. Panlogismo, metafísica do ser, teoria do conhecimento, são alicerces, e não remates; por isso o espinosismo é razão que explica, mas também, e sobretudo, filosofia que salva. Daí, o seu carácter religioso, de salvação, graças ao qual conquistou a adesão de verdadeiros prosélitos, embora não lograsse, como o positivismo, a fundação de uma igreja.

Disse Leibniz, a respeito de si próprio, que «quem me conhece apenas pelos escritos que publiquei, não me conhece»; e com efeito, a posteridade encontrou no espólio inesgotável da biblioteca de Hanover maneira, embora fadigosa, de lhe devassar o pensamento, de lhe surpreender os mais íntimos recessos, de traçar a imagem do homem e de aprofundar as ideias do filósofo, do sábio, do político, do religioso, que os escritos publicados em vida deixavam por vezes na penumbra e até na discordância.

Perante o legado do seu espólio literário, Leibniz podia apelar confiadamente para a posteridade; pelo contrário, Espinosa, ao soltar o derradeiro suspiro, poderia dizer que a maioria dos contemporâneos o desconhecera, e os vindouros porfiariam debalde em o conhecerem. Para ele, sim, era verdadeiro em toda a sua extensão o juízo de Leibniz, pois não assistimos, porventura, ao debate de conceções opostas acerca do seu carácter e da significação da sua filosofia? Não há quem sustente, ou pelo menos suspeite, que Espinosa é o tipo acabado do homem reservado, astuto, com absoluto senhorio sobre os impulsos, cuja máscara de serenidade dissimulava o espírito militante e cujo isolamento era logro e ardil para mais «cautamente» manobrar a conjura contra a superstição, isto é, a teologia?  Não há, pelo contrário, quem nele veja o modelo exemplar do santo laico, compreensivo, tolerante, sem ódios, vivendo para a sua meditação e no amor intellectualis Dei encontrando a alegria e a beatitude que os dons terrenos e as promessas das religiões lhe não ofereciam? A menos que surjam revelações inéditas, podem disputar-se hoje, quase com igual verosimilhança, os dois juízos; penso, no entanto, que a astúcia, a reserva, e o ardil, patentes no último decénio da sua vida, brotaram da defesa contra os ódios provocados pela condenação dos correligionários e pela publicação do Tratado Teológico-Político, e não de ingénito impulso combativo. Espinosa teve o heroísmo do pensamento, e não o da ação; é justo censurá-lo pelo que não possuiu e por haver defendido «cautamente» o direito à vida contra tantos inimigos?

Se passarmos do homem para a obra encontraremos igualmente a diversidade dos juízos e a suspeita dela obrigar um pensamento recôndito. Espinosa é a negação do alarde e do reclamo.

A sua vida decorreu apagadamente, e os seus escritos levam tão longe o desvelo da impessoalidade objetiva, que nem sequer são assinados. Salvo os Renati Des Cartes Principiorum Philosophie Pars I et II more geometrico demonstratae (1663), os demais escritos são anónimos, quando sentiu aproximar-se a morte destruiu pelo fogo alguns manuscritos e confiou a amigos dedicados os que desejava impressos, sob condição de os publicarem sem o seu nome.

Obscurecendo-se, Espinosa não procedeu espontaneamente; precaveu-se apenas. No íntimo, não creio que ele tivesse a humildade daqueles escolásticos medievais, que apagavam o nome perante a verdade majestosa do Senhor, património do género humano. O filósofo livre-pensador pensou e quis, sem dúvida, que a sua filosofia, como a dos humildes monges medievais, exprimisse uma conceção universal e absolutista; mas ao contrário deles, sabia que ela era produto do seu pensamento, e                não um legado, que herdara e lhe cumpria transmitir.

Por isso, o anonimato de Espinosa não é filho da espontaneidade e da reverência humilde ao universalismo da verdade; nasceu de causas exteriores, e cresceu de braço dado com a suspicácia e a precaução. As provas são numerosas; nenhuma, porém, tão elucidativa como e seu epistolário. A publicação das cartas de Espinosa foi cuidadosamente expurgada dos nomes de pessoas cuja divulgação da amizade com o filósofo poderia ser causa de suspeitas e dissabores, e tão funda se levou a expunção que se suprimiram as passagens reveladoras do carácter e dos sentimentos íntimos, fosse de quem fosse. É um epistolário científico e filosófico; não é o trato de amigos, nem a confidência de almas. Não obstante, escaparam algumas passagens confidenciais; por elas, em parte, há quem tenha sido levado à suspeita do espinosismo conter um pensamento oculto. Está neste caso, sobretudo, a carta a Jarig Jelles, de 17 de Fevereiro de 1671 (Ep. 44), a que já aludimos, na qual Espinosa roga ao amigo que impeça a tradução holandesa do Tratado Teológico-Político, e confia que ele não lhe recusará «os bons ofícios à causa» e à sua pessoa. É isto desígnio de conjura, ou indício de uma doutrina secreta e militante, que do mistério fizesse resguardo e arma de combate? Penso que não.

Jarig Jelles era adepto de Espinosa; a «causa» que os unia era a da liberdade de pensamento, partilhada, aliás, por muitos holandeses contemporâneos, e esta causa vimo-lo já, era então uma causa politicamente vencida e tenazmente perseguida por pastores e governantes. Espinosa não abdicou, nem renunciou às suas ideias; aconselhou e praticou o retraimento prudente, e é porventura legítimo considerar o aviso do bom senso, mormente em quem não tinha o espírito combativo e heroico, como indício de credo oculto ou desígnio de conjura secreta?

No entanto, contemporâneos houve para quem o espinosismo encobria doutrinas recônditas, e a prova encontravam-na, não na biografia, mas na própria doutrina. Assim Wachter.

A Ética foi obra longamente meditada e, ao que parece, refundida. Nos colóquios de Tschirnhaus com Leibniz disse-se que ela se ocuparia de Deo, mente, beatitudinem seu perfecti hominis idea, de medicina mentis, de medicina corporis, e, dentre outras opiniões, Espinosa «creditquandam Transmigrationis Pythagoricae speciem (palavra ilegível) mentes ire de corpore in corpus».

O texto da Ética dado a publicidade contém, com efeito, as primeiras teorias que Tschirnhaus referia a Leibniz, se por medicina mentis entendermos a teoria das paixões (Liv. IV); mas não se ocupa da medicina corporis, nem tão-pouco da transmigração das almas. Quer isto dizer que Espinosa guardou certas doutrinas, não as revelando ao público porque as reservara aos iniciados?


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