Lugar do Certamen Philosophicum na literatura anti-espinosana

Compreendemos que houvesse estudado a fisiologia e mesmo a medicina. Levá-lo-iam a tais meditações a natural curiosidade e o exemplo de Descartes; mas é incrível que houvesse pensado na transmigração das almas, porque vejo no informe de Tschirnhaus a incompreensão, senão adulteração, da teoria da eternidade das almas, a mais obscura e intrincada conceção espinosista.

Leibniz, no entanto, não considerou os singulares informes como indício de doutrina oculta; admitiu, apenas, mais tarde, que Espinosa «era versado na cabala dos autores da sua nação».

Foi Wachter quem pela primeira vez lançou a singular ideia, em 1699, no Der Spinozismus im Iüdenthumb e mais tarde, em 1706, com linguagem diversa, no De recondita Hebraeorum philosophia ou Elucidarius Kabbalisticus; naquele, atacou simultaneamente o espinosismo e a Cabala, confundindo-os e acusando o filósofo de ateísmo, neste retificando o juízo, já não considera Espinosa como ateu, porque o apresenta como um sages, que, iluminado pela ciência divina, havia reconhecido em Jesus, o Cristo, e no Cristianismo, verdades de sempre e para sempre. Sob a aparente armadura lógica do método geométrico, aÉtica abrigava, pois, uma doutrina oculta, que se não confessava.

Leibniz criticou este juízo nas Animadversiones ad Ioh. Georg. Wachteri librum de recondita Hebraeorum philosophia, ou antes, sob este título, procurou refutar a filosofia de Espinosa. E com efeito, é manifesta a inconsequência de tal opinião, saltando à vista que ela confunde duas coisas diversas: o conhecimento da Cabala com a adesão às conceções cabalísticas. É porventura compreensível — e A. Franck acentuou-o bem no La Kaballe — que o semi-discípulo de Descartes e autor do Tratado Teológico-Político, crítico da tradição bíblica adversário de todas as idolatrias, proviessem da letra ou se abrigassem em símbolos, pactuasse com os delírios da Cabala? Não confessa Espinosa no Tratado (cap. IX) haver lido alguns cabalistas, cuja demência o deixara confuso, e não alude na Ética (II, 7, sch.) a certos hebreus, sem dúvida cabalistas, que parece terem divisado a unidade da substância « quasi per nebulam »?

Não. O espinosismo não se repartiu em duas doutrinas, uma, vulgar e acessível, outra, esotérica e recôndita.

É uma conceção sistemática, como que um bloco, sem disfarces nem refolhos; não abrigando, porém, pensamentos herméticos, prestou-se como nenhuma outra filosofia do seu tempo, a interpretações diversas e opostas.

Dessas interpretações uma logrou rápida e extensa popularidade: o espinosismo era o ateísmo erigido em sistema. Debalde, alguns amigos corajosos defendiam o filósofo; assim Abraão Cuffeler, no Specimen artis ratoicinandi naturalis et artificialis ad pantosophiae principia manuducens (Hamburgo, 1684), considerava a Ética um livro imortal e repelia como falsa a afronta de ateu ao filósofo que cogitara os mais sólidos argumentos da existência de Deus. Os seus esforços, porém, foram inúteis; os desenhistas, com intuitos de propaganda, levavam ao povo, a representação de Espinosa como um monstro de impiedade, decorando-lhe a efígie com o ornato simbólico duma serpente, e os doutos, numa unanimidade militante, se divergiam em considerações secundárias, todos coincidiam em o proclamarem ateu e responsável da propagação do ateísmo. Todas as confissões religiosas e todas as parçarias filosóficas concordaram por então no juízo supremo e definitivo: o bispo católico Daniel Huet, na Demonstratio evangelica (Paris, 1679), declara-o abertamente ateu; Cristiano Kortholt, no De tribus impostoribus magnis liber, Herberto de Cherbury, Hobbio et Spinoza (Kiel, 1680) chega a dizer que a terra jamais foi pisada por homem tão maldito; António Arnauld, das maiores inteligências do seu século, que foi o século do Génio, em 1683, numa epístola, julga-o «le plus impie et le plus dangereux homme de ce siècle», não hesitando em o qualificar também de «veritablement athée», e, para rematar a lista, que poderia dilatar-se com largueza, em 1717, João Francisco Buddeus, nas Theses theologicae de atheisme et superstitione variis observationibus illustratae (Iena, 1717), atribui-lhe destacado lugar entre os ateus da primeira fila.

É nesta copiosa literatura teológico-filosófica, cujo denominador comum e fundamental é a conceção do espinosismo como sistema ateísta, que se integra o Certame Filosófico de Oróbio de Castro. A intenção não singulariza, pois, a obra do famoso judeu português; seguindo no cortejo de tantos críticos e opositores, a história do espinosismo não se deteria nela se Oróbio de Castro, como Leibniz, Malebranche, Lami, Fénelon, Boulainvilliers, não houvesse cogitado também uma refutação dos conceitos fundamentais da Ética.


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