Sobre a origem da conceção da inconsciência de Deus em Antero de Quental

«Suprimindo toda a oposição, qualquer colisão de pensamentos e de ações finitas, suprime-se de par a consciência que delas resulta. Ainda mesmo que se aceitasse momentaneamente a suposição impossível de a consciência poder subsistir como forma de uma repercussão sem limites, esta forma deveria ser concebida como infinitamente superior à consciência que conhecemos. Rapidamente se veria também que a forma infinita equivale à própria ausência de qualquer forma, e que a consciência absoluta, que se considera necessária a Deus, é idêntica à inconsciência absoluta (...)».

Antero jamais enveredou por esta metafísica do conhecimento; através das profundas vicissitudes e mutações de pensamento foi sempre personalista, considerando firmemente, embora sem meditação assídua e penetrante, a personalidade como inerente à essência do espírito, tão firmemente que constitui até um problema de difícil, senão impossível, explicação, como pôde conciliar o personalismo com a teoria do Inconsciente como realidade psíquica independente dos graus e forma da consciência. Na dialética espontânea do seu pensar, a inconsciência de Deus seria uma ideia improvável e até ilógica, tão improvável que, a despeito dos sulcos do hegelianismo, que remontavam aos derradeiros tempos de Coimbra, creio que jamais lhe ocorreria. Topara, porém, com esta conceção e pela surpresa que lhe causou, pelo espanto que imaginou provocar, — «se não fizéssemos pasmar as gentes, que seria a nossa filosofia mais que banalidade?», exclamava interrogativamente em carta a Oliveira Martins por 1875-1876— deu-lhe expressão poética, pois no soneto que temos diante de nós só a forma literária e o contraste da ironia lhe pertencem. Daí o problema: onde colheu o poeta a conceção?

Antero foi um grande leitor, dispersivo, que não sistemático; atesta-o o Catálogo da Livraria de Antero de Quental, legada à Biblioteca Pública de Ponta Delgada e confirmá-lo-á mais copiosamente o inventário das fontes intelectuais da sua obra. A sua curiosidade, insaciável e volúvel, associada por demais em certos períodos ao desejo de fundamentar alguns escritos de filosofia da História ou de pura especulação, levara-o ao contato, quase sempre superficial, com as atitudes e com as ideias que mais vigorosamente se perfilam na história do pensamento. Assim, a literatura mística não lhe foi de forma alguma alheia, a ponto de admitirmos, por exemplo, a hipótese da influência da Teologia Germânica, lida na tradução inglesa de Susana Winkoorth, 1874, nos sonetos de mais intensa vibração religiosa; no entanto, cremos que de Plotino e de Escoto Eriugena pouco mais teria sabido que os nomes, de sorte que não foi nestes pensadores que, direta ou indiretamente, colheu a ideia da ausência da consciência de Deus.

De Espinosa teve, sem dúvida, mais amplo conhecimento, mas a sua alma de poeta-filósofo, apesar da admiração por Goethe, não captou nunca a vibração emotiva que se desprende do Deus siue natura, da humanitas seu modestia, do amor intellectualis Dei, chegando mesmo a considerar « o velho panteísmo espinosista, sombrio e fatal, embora muito requintadamente metafísico », como dizia, por volta dos trinta anos, em carta a Oliveira Martins.

Apesar de o Catálogo acusar apenas a tradução francesa do Korte Verhandling... feita por Paul Janet, é de crer que houvesse lido algumas proposições da Ética e conhecesse o sistema mediante um expositor, mas tudo isto não ultrapassou a curiosidade do diletante, porque Antero não foi espiritualmente espinosista, nem se esforçou por meditar Espinosa com a decisão com que estudou Leibniz e, sobretudo, Hegel.

A nosso ver, é em Edouard von Hartmann que cumpre filiar a conceção. Interna e externamente, tudo o comprova. Do filósofo alemão, tão lido e discutido no último quartel do século passado e hoje quase esquecido no ocidente latino, que entre nós teve certa voga, como testemunham as citações de Oliveira Martins, de algumas ideias do «profundo pensador», especialmente ético-religiosas, o artigo de Júlio de Matos no primeiro número (Outubro-Novembro de 1878) da revista O Positivismo sobre A Religião do Futuro, e a dedicatória de Gomes Leal, de O Anti-Cristo (1884), ao «Sublime autor da Filosofia do Inconsciente », possuiu Antero os seguintes livros:

—     Gesammelte Studien und Aufsiitze, 3.a ed. Leipzig.

—     Phiinomenologie des sittlichen Bewusstseins. Prologomena zu jeder künftigen Ethik. Berlim, 1879.

—     Religionsphilosophie. Erster historischkritischer Theil. Das religiõse Bewusstsein der Menschheit. Leipzig.

—     Philosophie de l'Inconscient. Traduit de l'allemand. Paris, 1876.

Nenhum outro filósofo seu contemporâneo ocupou tão amplo lugar na sua livraria, quer nos escritos originais, que quase possuiu completamente, quer nas traduções e na continuidade de discípulos, como Taubert (Der Pessimismus und seine Gegner, Berlim, 1873) e Moritz Venetianer (Der Allgeist. Gründzüge der Panphychismus im Anschluss an die Philosophie des Unbewussten, Berlim, 1874), aconselhados por Nolen no prefácio (1877) da tradução da Philosophie de l'Inconscient, por serem, respetivamente, «le complément indispensable du treizième chapitre de la métaphysique de Mr. Hartmann» e « l'ouvrage le plus utile à consulter entre tant d'autres sur le monisme de la philosophie de l'Inconscient ».

Antero leu, pois, Hartmann com veemente curiosidade, e não o só leu senão que o meditou e se deixou impregnar de algumas conceções hartmannianas, designadamente acerca da significação metafísica do «Inconsciente» e seu ativismo cósmico, da efemeridade da consciência, do panteísmo histórico-evolutivo, e da morfologia da ilusão da felicidade. A impressão foi tão profunda que é possível entrevê-la na elaboração de ideias e no próprio plano formal, designadamente na carta autobiográfica a G. Storck (1887), que recorda a «História do meu desenvolvimento» dos Studien und Aufätze; mas em rigor Antero deteve-se naquelas conceções que se reportavam à esfera da reflexão ontológica e ética, repensando-as, de certo modo como próprias, nas Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, passando fugazmente sobre as páginas do metafísico que interpretara a fenomenologia do «Inconsciente» no mundo orgânico, com justo escândalo e protesto dos biologistas.

Na essência, assimilou ideias que, de certo modo, se associavam às suas próprias ou se inseriam facilmente no sentido das suas aspirações; por isso pode falar-se de graus, e até de fases, na influência de Hartmann. Para o nosso ponto de vista bastará apenas acentuar que a data da tradução francesa da Filosofia do Inconsciente — 1877 —é um marco capital, pois é a partir desta data que, porventura, se pode falar com exatidão na influência direta das ideias de Hartmann. Anteriormente, porém, já Antero conhecia, por divulgadores e críticos, aspetos e consequências da teoria do «Inconsciente », e foi quiçá a esperança de encontrar uma fundamentação metafísica do pessimismo, isto é, a projeção no plano conceptual das suas crises de doente e das suas desilusões de evangelizador social, que o impeliu ao encontro direto com os livros do filósofo alemão.


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