Evolução da historiografia filosófica em Portugal até fins do século XIX

A História da Filosofia surgiu tardiamente entre nós como disciplina autónoma, com escassos cultores e sem prévia investigação teorética do seu objeto.  

Em rigor, o seu aparecimento só se verificou no século XIX, quando a ideia de evolução penetrou nos espíritos, convidando-os a nova conceção da vida e do saber. Até então, tudo o que a erudição pode arrancar à mudez dos documentos tem, mais ou menos acentuadamente, o vinco a-histórico, como efeito inevitável do sentimento da posse de verdades eternas, de índole religiosa como na Idade Média, ou de estrutura racional, como no iluminismo oitocentista.               

Como a História da Ciência, a mais jovem das disciplinas históricas, a sua existência procede a um tempo da irradiação de correntes intelectuais forasteiras e da tardia desenvolução interna da ideia de historicidade, cujo alargamento material e cuja marcha, da narrativa à crónica, da crónica à história e da história à interpretação crítica e filosófica dos acontecimentos e das ideias, se produziram lentamente.            

I. — Na Idade Média, o recanto histórico fez-se sem sentido crítico e, sobretudo, sem consciência metodológica, pelo que não raro se espraiou no acidental e confundiu no mesmo plano o real e o fabuloso. Em tal ambiente não podia gerar-se a História da Filosofia. Tudo lhe faltava, desde a simples apreensão do próprio objeto à atitude relativista e equânime do pensar.               

Letrados e pregadores é de crer que manuseassem com alguma assiduidade as laudas da Historia scholastica, de Pedro Comestor ou Manducator  †1179) e as do Speculum historiale, de Vicente de Beauvais  (Bellovacensis, 1264), assim como os repositórios de ditos, sentenças e opiniões no género do Communiloquium ou Summa Collacionum, de João de Gales (†1302)o Liber de vita et marobus philosophorum, de Walter Burley (Gualtherus Burlaeus, †1337), e do Policraticus, sive de nugis curialium et vestigiis philosophorum de João de Salsbury (Sarisberiensis †1180), particularmente notado entre nós pelas opiniões de re politica, mas nenhum destes escritos tem sentido histórico e os que os utilizaram apenas viram neles reportórios de exempla, de factos e de opiniões propícios à exortação moral ou ao desenvolvimento de comparações literárias ou oratórias, como de certo modo impunha a parenética então vigente.

A depreciação do sistema de ideias que enquadrara com admirável coerência a atividade mental da Idade Média trouxe consigo a desenvolução de atitudes espirituais e sociais que haveriam de configurar os tempos modernos, designadamente a secularização da cultura e a emancipação das ciências particulares.

Ao lado do sacerdote, representante típico do saber tradicional, começam a aparecer o escritor e o lente universitário revestido de um prestígio social bem significativo das novas tendências e anelos; e para além da Teologia, até então detentora das honras de ciência primaz, e das compilações mais ou menos unificadas pela metafísica, forma-se uma nova consciência científica, cujo alento fecundo desentranhou a emancipação de algumas ciências da Natureza.

Como sequela de tão vasto, profundo e complexo movimento, comummente designado de Renascença, o horizonte histórico dilatou-se consideravelmente, adotando-se novas atitudes metodológicas, que mais ou menos se nutriram da lição dos historiadores antigos. Os acontecimentos começaram a ser julgados à luz de novos critérios e valores. Nas ideias, nos intuitos, nos métodos e no próprio vocabulário, é bem sensível a distância que separa os cronistas do século XV das construções de João de Barros, cuja pena afeiçoou o material histórico a fins nacionais, de Damião de Góis, cuja experiência social lhe aguçou a inteligência crítica, e de Jerónimo Osório, em cujo ritmo de pensamento ressoam preceptivas humanistas.

A nova consciência histórica, porém, só cingiu com originalidade alguns aspetos da vida nacional, assim como a incipiente consciência científica só incidiu com vigor sobre alguns fenómenos suscetíveis de aplicação do cálculo matemático, notadamente na Astronomia, com Pedro Nunes. A história do pensamento como pensamento, científico ou filosófico, não foi sequer apreendida como domínio à parte. Compreende-se.

O investigador do material histórico e da respetiva ordenação com finalidade pragmática passou inadvertidamente pelos problemas implícitos na conceção da História, notadamente a reflexão sobre o pensamento que a pensa; e por outro lado, o ensino das escolas não despertava a problemática histórico-filosófica, orientado como era no sentido dogmático. Os próprios bolseiros que frequentaram aulas de Itália e de França também não encontraram estímulos e condições propícias, tanto mais que os atraíram outras solicitações; assim, Martinho de Figueiredo, que em Florença praticou a latinidade com Angelo Poliziano, Francisco de Melo, que devido, certamente, ao ensino nominalista do Colégio parisiense de Montaigu orientou o espírito para as ciências exatas, João Ribeiro, o discípulo de Juan de Celaya, que se deixou cativar pela dialética, e a multidão dos que no Colégio de Sainte-Barbe e noutros institutos docentes aprenderam as belas-letras.

O estudo dos autores gregos e, sobretudo, latinos recobrou então novo sentido, pois aos fins gramaticais vieram juntar-se os fins estéticos, de exercício do estilo e de apuramento do gosto. Legere, praelegere e interpretari como que se tornaram os objetivos capitais da aprendizagem das Humanidades, trazendo naturalmente consigo o interesse e a compreensão mais profunda de certos livros e de certos autores. Por isso, embora a História da Filosofia não tivesse surgido então, mesmo nas formas mais rudimentares e simples, o conhecimento do pensar antigo tornou-se mais amplo e exato, devido à melhor compreensão das referências histórico-filosóficas de Aristóteles e de Cícero e, sobretudo, à leitura do De vitis et moribus philosophorum de Diógenes de Laércio, que traduzido por Ambrósio Traversari, camaldulense erudito e humanista que dedicou ao Infante D. Pedro, filho de D. João I, a tradução do De Providentia de S. João Crisóstomo, anotado por Benedito Brognolo e publicado circa 1475, constituiu, entre nós como alhures, a fonte capital de informação acerca das doutrinas filosóficas gregas.

Daí, a divulgação deste livro, pois sabe-se ter existido um exemplar da edição, de 1524, na livraria do Mosteiro de Santa Cruz, de Coimbra, e um outro não especificado na de Fr. Diogo de Murça, reitor da Universidade de Coimbra (1543-15), e não escassearem as alusões a ideias ou factos nele narrados, já expressamente, como na Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e na Imagem da Vida Cristã, de Fr. Heitor Pinto, já veladamente, como nalguns versos de Camões.

As traduções para linguagem concorreram também para a divulgação de algumas doutrinas, designadamente, de Cícero, os tratados Da Amizade, Dos Paradoxos e Sonho de Cipião, traduzidos por Duarte de Resende (Coimbra, 1531), e o Catão Maior ou Da Velhice, traduzido por Damião de Góis (Veneza, 1534), o Manual de Epicteto, traduzido do grego pelo bispo de Viseu Fr. António de Sousa (Coimbra, 1594) e a Ciropedia, de Xenofonte, que Diogo de Teive traduziu a pedido de D. João III, e ficou inédita.


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