O século XVII foi entre nós um século sistemático e de mentalidade polémica, desenvolvendo-se a atividade especulativa sob o impulso da Contra-Reforma. Recorreu-se amplamente à autoridade dos antigos, conheceram-se mais profunda e minuciosamente as conceções filosóficas helénicas e medievais, como testemunham os Comentários dos Conimbricenses à obra de Aristóteles, mas a abundância e exatidão das citações não significam verdadeiramente a existência de uma atividade histórico-filosófica, alentada por desígnios próprios, cujos primeiros tentames só aparecem em pleno século XVIII.
Sob o ponto de vista das fontes, jamais houve entre nós atividade comparável à dos decénios em que os jesuítas do Colégio das Artes de Coimbra levaram a cabo o monumental Comentário à obra de Aristóteles, iniciado em 1577 com o de Pedro da Fonseca à Metafísica.
É empreendimento único, sem similar, sequer longínquo, com a obra de qualquer outro filósofo; no entanto, o estabelecimento do texto de Aristóteles, não foi seguido de investigações histórico-filosóficas, porque obedecera fundamentalmente a intenções sistemáticas.
II. — Oficialmente, cabe à reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772) o reconhecimento da existência da História da Filosofia, se assim se pode chamar ao «resumo da História Filosófica» que o lente de «Filosofia racional e moral» devia ensinar na segunda parte da introdução ou «Prolegómenos Gerais da Filosofia », na qual lhe cumpria mostrar « a Origem e progressos dela; as diferentes seitas em que se dividiu; os esforços e os delírios dos Filósofos mais célebres na República das Letras pelos seus descobrimentos e pelos seus erros». Surge, assim, a História da Filosofia, em seu primeiro conceito, oficial, como a história das seitas, dos erros e delírios do espírito humano —, ou se se quiser, como negação da historicidade do pensamento.
A inovação pombalina não era endógena; representou a audiência de ideias que, desenvolvidas na Alemanha e na Itália, haviam captado entre nós a opinião esclarecida e influente, sobretudo pela propaganda vibrante de Luís António Verney (1713-1792), seu audaz importador e robusto defensor.
O âmbito e a metodologia histórica alargara-se e precisara-se notavelmente no primeiro quartel do século com a Academia Real da História Portuguesa, fundada em 1720 e liberalmente dotada por D. João V para «que se escrevesse a História eclesiástica destes reinos, e depois tudo o que pertencesse à história deste e das suas conquistas».
Ao labor de académicos como D. António Caetano de Sousa, Diogo Barbosa Machado, Francisco Leitão Ferreira, é a cultura pátria perduravelmente grata pelos repositórios de factos e instrumentos de consulta que legaram, mas a história das ideias, particularmente filosóficas e científicas, nada lhes deve. Nascida sob o signo da investigação e do apuramento de notícias, e crescendo ao amparo de sentimentos adulatórios, a Academia gravitou ideologicamente em torno de uma conceção centrípeta e providencial da realeza, que despojava a História de correlações e nexos causais para a render aos desígnios da Providência ou ao arbítrio espetacular e pomposo do monarca e dos poderosos.
Só a revelação do alcance, do valor e da consistência intrínseca da História da Filosofia poderia resgatar os conhecimentos histórico--filosóficos ao trato rudimentar das meras referências, mais ou menos biográficas e obedientes quase sempre à intenção moralizante ou corroborativa de teses, e este foi o mérito capital de Thomas Brucker (1696-1770), denominado o pai da História da Filosofia, com os cinco volumosos tornos da Historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram casque aetatem (Leipzig, 1741-1744) e com o manual — Institutiones historiae philosophiae (Leipzig, 1747).
Em Portugal, como nos demais países, o cultivo da História da Filosofia nasceu sob a influência destes livros, cujo método, divisões, classificações e ideias, não isentas completamente da babosice da curiosidade, se projetaram por algumas décadas. É de crer que logo tivessem ecoado, como novidade, em teses académicas, mas é de Verney que ela deve datar-se entre nós, embora, rigorosamente, não tenha exposto a História da Filosofia como disciplina autónoma, mas como propedêutica filosófica.
Lançara esta ideia, primeiramente, à maneira de manifesto, ao criticar na carta oitava do Verdadeiro Método de Estudar (1746-7) o ensino da Filosofia por se fazer desacompanhado do da respetiva história, cujas linhas gerais delineou; e, pouco depois, deu-lhe efetivação publicando em 1751, em Roma, o Apparatus ad Philosophiam et Theologiam ad usum lusitanorum adolescentium, cujas despesas foram custeadas pelo real bolsinho de D. José.
Moveram-no a escrever este livro a «particular ordem da Corte de iluminar a... Nação em tudo o que pudesse» e o propósito de concorrer para desterrar o desapreço em que a lucubração filosófica (e teológica) era tida em relação à investigação da História sagrada e profana.
De objetivo essencialmente pedagógico, acomodado à mentalidade de adolescentes, e escrito sob o império unitário de uma conceção iluminista da Filosofia (cognitio veri et boni recta ratione adquísita et ad veram hominis felicitatem comparara), perante a qual as demais conceções se volviam em erros e aberrações, cuja mutilação se impunha «por justos motivos», o Apparatus não especifica a crítica das fontes, não atenta na génese dos problemas nem entrevê sequer o sentido histórico-cultural das conceções e das teorias. É uma obra normativa e propedêutica aos seus De re Logica, De re Metaphisica e De re Physica, que aliás contêm respetivamente uma parte histórica, publicados pela primeira vez em Roma, o primeiro, em 1751, no próprio ano do Apparatus, o segundo em 1753, e o terceiro, em 1769, e esta feição não facilitava a consideração autónoma da História da Filosofia, da qual, aliás, formava um conceito desprovido de clara historicidade.
Para Verney, a História da Filosofia tinha como matéria a vida e escritos dos filósofos e comportava teoricamente duas partes: a história das doutrinas, isto é, o informe acerca do aparecimento e da transmissão das conceções filosóficas, e a história dos sistemas, isto é, a exposição dos fundamentos e desenvolução das escolas filosóficas. A história dos sistemas, que constitui o livro III, limita-se à exposição de ideias de Platão, Aristóteles, Epicuro, de alguns Padres da Igreja (Ireneu, S. Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio de Cesareia, Sinésio, Arnóbio, Lactâncio Firmiano, Santo Agostinho, Boécio), de Árabes, especialmente de Averróis, de Escolásticos, nos quais se detém passageiramente em relação a Santo Anselmo, Pedro Abelardo, Alberto Magno, S. Tomás de Aquino, Egídio Romano e Duns Escoto, e dos mais «ilustres» filósofos modernos, que em seu juízo eram Descartes, Gassendi, Newton, Leibniz e Cristiano Thomasius, a quem dedica o mais largo artigo deste livro.
A exposição quase obedece exclusivamente a intenções críticas e normativas; por isso só o conspecto do livro I, isto é, a história das doutrinas, pode considerar-se, apesar das limitações, histórico, visto Verney nele se ocupar das origens da Filosofia e das principais escolas (sectae) filosóficas, com referências incidentais à vida e escritos dos filósofos.